Uma Princesa pra lá de independente
29 agosto 2016 às 22h31
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Segundo disco da Carne Doce fortalece conteúdo de empoderamento feminino no momento em que o prato do dia é a desconstrução do machismo na mesa da tradicional família brasileira
Augusto Diniz
Se em 2014, quando saiu o disco Carne Doce, a canção Passivo dava o tom definido de uma mulher que sabe como gosta de ter prazer (Eu grito sim/É pra você escutar/Que eu quero ver/Você fazer/Eu me calar), o segundo álbum desconstrói qualquer conceito pré-estabelecido de mulher em todos os seus sentidos.
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Princesa, lançado na última quarta-feira (26/8), é o mais novo disco dos goianos da Carne Doce. Fruto de um mês de junho enfurnados no Red Bull Station, um prédio de 1926 no Centro de São Paulo tombado como patrimônio histórico, a gravação das 11 canções do novo álbum do quinteto passaram por um processo embrionário bem maior, muitas delas incluídas em shows em Goiânia que antecederam a viagem para a capital paulista.
O prazer de Passivo dá espaço para uma discussão muito mais ampla em Princesa sobre a autonomia, liberdade, independência e protagonismo da mulher. A música que abre o disco, Cêtápensâno, marca a dobradinha que deu muito certo nas composições do casal Salma Jô (vocal) e Macloys Aquino (guitarra): “Aí, vê! Como eu falei/Co rabo entre as pernas/Taí, como eu previ/Só é macho pras donzela.” “Conheço seu tipin.”
Produzido pela própria banda, para ser mais exato pelo guitarrista João Victor Santana, o álbum continua com outra parceria presente já no disco Carne Doce. A faixa título Princesa foi escrita a quatro mãos entre Salma e o vocalista e guitarrista do Boogarins Fernando Almeida, o Dinho.
Com um tom mais pop do que o primeiro disco, a canção Princesa marca essa diferença com versos como “A vida é curta pra dizer sempre não/Vem cá te ajudo a perder a razão”. Esse amadurecimento da banda fica evidente no trabalho de músicas compostas já com mais tempo de trabalho de Salma e Macloys ao lado do baterista Ricardo Machado, do guitarrista João Victor e do baixista Aderson Maia.
Aliás, já no primeiro disco a diferença de qualidade da banda é gritante da primeira formação, quando a Carne Doce era Salma, Macloys, Gustavo Ponciano (baixo), Eduardo Kolody (guitarra) e Evandro Galo (bateria). A primeira fase parecia a de um grupo que tentava se encontrar. E se achou quando buscou outros integrantes. Essa conexão é clara no disco Carne Doce, mas se mostra mais evidente em Princesa.
De fora da banda e que trabalharam no disco, apenas as gravações foram feitas por Rodrigo Funai Costa e Alejandra Luciani, a mixagem de Funai e a masterização de Felipe Tichauer. O resto é todo fruto de composições, testes ao vivo e o produto final gravado em junho na capital paulista pelos cinco da Carne Doce. A capa foi feita pela artista goiana Beatriz Perini.
Queda
Sereno, terceira faixa de Princesa, é uma canção mais morna e que destoa das anteriores. No geral do disco, ela seria o patinho feito do álbum. Mas logo a boa vibração é recuperada com a tranquila Sombra, que mostra um Carne Doce mais preocupado com a lapidação do produto final gravado. “Não se esqueceu de saltar a janela/Mas lhe faltou a coragem/Auto-sabotagem/Uma virtude dela.”
Até ali, na quarta música, o disco é bom, mas não passa muito disso. Quando chega em Amiga, toda a coisa muda de uma forma absurda. Talvez uma decisão mais bem pensada na ordem das músicas teria melhorado ainda mais o álbum.
Mas Amiga é a canção com cara de balada. Boa, mas que em alguns momentos nem parece o Carne Doce do primeiro disco e evidencia um outro lado mais lento da banda. Mas que não necessariamente é algo alegre: “É sempre tarde, amigo/Que eu vejo que o que amo em você é o que eu odeio em mim”.
E se esse lado mais lento do Carne Doce em Princesa surpreende, Eu Te Odeio se mostra ainda melhor do que Amiga. A calmaria em tom de declaração dos versos cantados por Salma explicita o sentido da união que deu base para a formação da banda, como em “Eu tenho tanto medo de esquecer o seu cheiro/De que você bata o carro”.
Fora de hora
Quando o disco entra em uma sequência calma que começa com Sombra, continua em Amiga e ganha seu ápice em Eu Te Odeio, vem o anticlímax com Carne Lab. São 10 minutos e 31 segundos de uma jam que caberia muito bem em um show do Boogarins ou no final do disco. Essa proximidade entre Carne Doce e Boogarins tem um ponto de união central chamado Luziluzia, com metade dos integrantes de cada um dos grupos nele.
Por isso não é estranho que o Carne Doce se dedique a tanto tempo de viagem no disco. Só seria melhor se tivesse deixado para o final. Quem não gosta tem a opção de pular ao ouvir o álbum na sequência.
Ponto porte
Sabe aquela referência no texto a Passivo, do primeiro disco? Quando você escuta o álbum Princesa na ordem até chegar às canções O Pai, Artemísia e Falo, a coisa fica mais fácil de ser compreendida. Se bem que hoje em dia ninguém escuta mais um disco inteiro do início ao fim. Mas vamos lá…
Depois que a Salma diz no final de Carne Lab “a gente vai evoluir em algum momento? Não? Não. Então tá. Então o que que a gente tá fazendo nesse pedaço? Não tô entendendo. Dez minutos de fritação” e começa O Pai, a discussão nas letras sobre a posição da mulher enquanto pessoa inserida em um contexto machista ganha uma tônica interessante e mais do que relevante.
“Da tua poltrona/Tu regias o mundo/O teu tamanho/Era a medida de todas as coisas” são os versos que dão início a essa discussão, confessional ou não, sobre a figura do pai na vida de uma filha. E que continua com “Ao teu saber profundo/Nem tinha fundo/Mas inda assim tinha sempre razão/Inclusive sobre mim/Principalmente sobre mim”.
Enquanto a música evolui na ideia por meio de versos, a voz de Salma se mostra cada vez mais marcante em uma levada ainda mais cadenciada e distante do primeiro disco. Mas que ainda depende da aprovação do pai (ao menos na letra). “Até hoje quem mais e melhor me serviria de inspiração?/Até hoje o seu não/Até hoje o seu sermão/Até hoje eu espero a sua benção.”
Soco no nariz
Artemísia, que tem seu chá utilizado como regulador hormonal e para evitar sintomas da Tensão Pré-Menstrual (TPM), é também conhecida na medicina popular com uma planta de limpeza do útero, ou seja, abortiva. E é Artemísia o nome de uma das melhores músicas do disco Princesa e que trata justamente do aborto e da liberdade da mulher para fazer o que bem entender com seu corpo, até não ser mãe se entender que não quer.
Primeira música do álbum a ganhar um videoclipe, Artemísia ficou conhecida no circuito independente após a divulgação de um trecho inicial com os três primeiros versos em um vídeo no Dia Internacional da Mulher (8 de março) deste ano: “Não vai nascer/Porque eu não quero/Porque eu não quero e basta eu não querer”.
A ligação com a planta é, na letra, a explicação da liberdade da mulher de ser o deus de seu próprio corpo. “De uma praga a um chá/Sabe a índia, sabe a química/Que o seu desencarnar/É da minha natureza/É da minha arquitetura/É do meu querer.”
Tá bom? Segura essa
Se essa parte do disco já estava maravilhosa com Artemísia, Falo é agressiva em sua melodia e marca posição com uma letra enfática e questionadora sobre a ilusão de uma boba diferença de poder marcada pelo órgão sexual masculino que colocaria o homem como melhor do que a mulher.
“Que tal se agora entrasse um homem aqui?/Pra gente dar aquela variada/Não é um gosto pessoal/Às vezes é o que pede o som”, ironiza Salma ao cantar a segunda estrofe de Falo. “E eu inda posso ser a backing vocal/E posso pagar pau/Enquanto você me diz pra me inspirar nos Mutantes e na Rita Lee.”
“Que é por isso que eu sô histérica, eu não sô histérica eu só tô histérica/Que é por isso que eu sou neurótica, eu não sou neurótica eu só tô neurótica/Que é modinha eu ser selvática, meu bem eu sempre fui selvática/E é bom que você se cuide, não vai ter quem lhe acude quando eu quiser te capar.” Entendeu ou precisa desenhar?
Só por Artemísia e Falo, o disco Princesa já valeria todo o resto, mesmo que fossem apenas músicas ruins as outras. Mas ainda tem Açaí, a receita exata de um sucesso que viria do “E fazer tudo certo/Se eu ralasse/Como os meus pais/Se eu fizesse o que é certo”.
Só que não foi esse o caminho escolhido. “Mas agora já não posso/Pois cansada, acho, mereço um açaí/A ansiedade cobra um preço/Mas eu nunca pago a conta, então, enfim.”
Desconstrução do disco
Essa Princesa do Carne Doce nada tem a ver com aquelas da Disney. Não mesmo! E nem deveria. Nesse discurso que desconstrói a visão machista sobre a figura e pertencimento da mulher no mundo, a ideia é também dar um novo sentido para o disco. E como ninguém mais ouve um disco completo ou respeita a sua ordem, encontrei uma sequência que me agrada mais para ouvir o álbum do início ao fim sem querer parar ou pular alguma faixa.
Eu começo com Cêtápensâno, que dá uma boa impressão inicial do disco, ou inverto com Princesa, faixa título que também seria uma boa abertura. As duas primeiras são essas mesmo. Como achei a sequência Sereno, Sombra e Amiga muito cansativa e quase me fez desistir de ouvir o álbum, resolvi mudar quase que por completo a ordem das músicas a partir daí.
Depois de Cêtápensâno e Princesa, eu coloco Amiga no terceiro lugar da ordem do disco para manter a animação do começo do álbum. Como Sereno é a canção, para mim, mais morta do novo trabalho, a quarta na minha sequência é Artemísia para botar força na primeira metade do disco. Como a quinta já está perto do meio do disco, colocaria Sombra e depois Sereno, já que a boa impressão até Artemísia já estaria construída.
Sem deixar o clima cair demais, entraria com Falo na sétima faixa para retomar o fôlego com uma porrada após duas mais mornas. Açaí, que fecha o disco, é minha oitava música, que dá espaço para um final com a sequência mais lenta Eu Te Odeio e O Pai. Aí vem Carne Lab e quem não quiser ouvir que pare a faixa antes dos 10 minutos e 31 segundos acabarem.
Recepção
No show de lançamento, no último domingo (28) em Goiânia, na Ambiente Skate Shop, as músicas Cêtápensâno, Sereno, Princesa, Amiga, Artemísia, Falo e Açaí foram executadas pelo Carne Doce. A maioria delas foi bem recebida pelo público. Foi o primeiro show de Gabriel Cruz como percussionista da banda.
Liderados pela simpatia e carisma de Salma Jô no palco, a plateia se amontoou como pôde na pista de skate e nas laterais da loja para assistir ao primeiro show do agora sexteto goiano depois de colocar Princesa disponível em plataformas de música na internet. Em alguns momentos a percussão parecia fazer diferença nas músicas. Já em outros era apenas a repetição da bateria. A abertura ficou por conta de mais um bom show da Brvnks, que tocou músicas do seu EP de estreia Lanches e outras novidades ainda sem nome.
Ouça o disco Princesa: