Um romance apenas regular
27 dezembro 2014 às 13h15
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Com erotismo chulo, personagens sem densidade psicológica e narrativa construída entre idas e vindas, “O Irmão Alemão”, de Chico Buarque, é um romance fraco, longe da capacidade criativa do compositor
Salatiel Soares Correia
Especial para o Jornal Opção
Um dos parâmetros que alçam uma obra literária ao patamar de grande se centra na capacidade desta de induzir o leitor a uma gama variada de sentimentos que compõe algo fundamental que nos torna humanos: a emoção.
Só os grandes autores despertam emoções plantadas no âmago de nossa alma. Quem não se sente emocionado ao entender a profundidade metafórica que está por trás de Ulisses no poema de Homero? Neste, o guerreiro é tentado pelo aparente canto sedutor das sereias. Conta-nos Homero, em sua empolgante narrativa, que as sereias com seu canto sedutor atraíam os marinheiros para sua ilha. Quando estes chegavam lá elas, na verdade, transformavam-se em monstros, assim, devorando os marinheiros. O canto das sereias era sedutor e Ulisses — ciente de sua fraqueza — quis ouvi-lo amarrado ao mastro do navio que comandava. Para isso, ordenou que seus marinheiros tapassem seus ouvidos com cera. Dito e feito. E assim passaram incólumes pelos perigos da ilha das sereias. A beleza no poema se encontra no que está implícito: Ulisses era ciente de sua própria fraqueza. Quis escutar o canto. Quis passar pela tentação humana para dela sair mais forte. Só a narrativa de um grande escritor como Homero para nos conduzir, por meio de seus escritos, a refletir a respeito das profundezas da vida. A vida e suas várias tentações a que todos os mortais estamos submetidos durante nossa travessia por ela.
Gabriel García Márquez é outro autor de primeira grandeza. Pessoalmente, fiquei magnetizado da primeira a última página com aquele que, a meu juízo, será o livro que o tornará eterno. Falo de “O Amor nos Tempos do Cólera”. O talento de Gabo construiu uma eletrizante história de amor vivenciada por três personagens. Firmina Daza se apaixona, na juventude, por Florentino Ariza, mas se casa com o médico Juvenal Urbino. Destinos que se separam, convivem a distância e finalmente reencontram-se com a morte do marido de Firmina Daza. Amor reprimido por 50 anos, mas finalmente concretizado nos tempos do cólera.
O final do romance é emocionante: Florentino Ariza e Firmina Daza se reencontram na velhice. Florentino leva a amada para um passeio no navio que vaga por um lado e outro no rio com a bandeira do cólera. Só assim ele pode navegar, pois ninguém ousaria a pará-lo. “E até quando acredita o senhor que podemos continuar neste ir e vir do caralho?”, pergunta o comandante. “Florentino Ariza tinha a resposta preparada havia cinquenta e três anos, sete meses e onze dias com as respectivas noites: — toda a vida — disse”. Era o amor que se eternizava na velhice. Era o amor de uma longa espera, de um grande desencontro que não podia acabar. Só um grande escritor como Gabriel García Márquez para fazer nosso coração acelerar, nossa pele causar calafrios, nossos pés levitarem no final do romance.
Mario Vargas Llosa é outro dos meus escritores preferidos capaz de prender o leitor da primeira a última página. Fez isso no seu livro “A Festa do Bode”, romance que versa a respeito de uma das mais sanguinárias ditaduras que já se teve no continente americano, a de Rafael Trujillo, na República Dominicana. Nessa obra, Urania guarda um grande segredo. Depois de muitos anos ausente da República Dominicana, ela volta a seu país com um rancor muito grande do pai, este já muito velho e decadente, um antigo senador, membro da corte de aduladores do ditador. Confesso que, em certos momentos, cheguei a ter raiva de Urânia ante a indiferença, a frieza, os maus-tratos e a repulsa velada que sentia pelo pai. Coisas de um grande escritor, incutindo em seus leitores um sentimento. No final do romance, vê-se enfim revelado o segredo de Urânia e novamente vai-se a um novo revoar de emoções dentro dos leitores. Urania tinha suas razões de odiar o pai. Em desgraça na corte de aduladores, o ditador exigiu uma prova de fidelidade do pai: que ele entregasse a filha virgem de 15 anos para uma noite de prazer. As cenas eróticas descritas pela poderosa narrativa de Llosa provocam um turbilhão de emoções nos leitores: nojo, ódio e, compaixão. Coisas que só um grande autor como o Nobel peruano consegue provocar na psique de seus leitores. São coisas como essas que fazem grande um romance, são coisas como essas que fazem de um romance uma obra-prima.
Fiz todo esse preâmbulo para, agora, falar do novo livro lançado por Chico Buarque de Holanda: “O Irmão Alemão”. Falemos resumidamente da história para, em seguida, emitirmos nossa opinião a respeito do romance. O irmão alemão, Sérgio Ernst, é resultado do relacionamento amoroso do pai do Chico Buarque com uma alemã quando este, ainda solteiro, foi correspondente dos “Diários Associados”, na Alemanha. Nem o autor, nem sua família conheceram o meio-irmão, apesar de muitas vezes tentar encontrá-lo. A história desse romance gira em torno da procura do autor pelo meio-irmão. Irmão que Chico, por acaso, ficou sabendo da sua existência já adulto, numa conversa informal que teve com o poeta Manuel Bandeira.
O romance é todo ambientado na São Paulo dos anos 60 do século passado chegando aos dias atuais. Construída entre idas e vindas, a narrativa não deixa de trazer certa confusão a quem se propõe a ler. Confesso que, no começo, fiquei meio zonzo com o zigue-zague da narrativa.
Outro ponto que me parece falho no romance do nosso maior compositor se relaciona à maneira estereotipada com que é construída a figura de seus pais. O pai, Sergio de Hollander, sempre distante, enfurnado, entre livros, na biblioteca e preocupado em escrever o maior livro do mundo; a mãe Assunta, uma típica “mamma” italiana voltada para os afazeres da casa e suas preocupações culinárias. No meu entender, faltou densidade psicológica a esses personagens.
Outro ponto a destacar é o erotismo. O erotismo, numa obra literária, deve ser sempre usado se inserido num propósito maior. Veja-se o exemplo de “Festa do Bode”. Nesta, Vargas Llosa usou fortes imagens eróticas no momento em que o ditador seduziu Urania, uma adolescente de 15 anos, oferecida ao bode pelo próprio pai. Com isso, o autor teve o propósito maior de denunciar até que ponto chegava a barbárie de uma ditadura.
O erotismo usado por Chico Buarque em seus escritos me parece chulo. Sem muito propósito. Não leva a lugar nenhum. Reduz-se a uma reles rivalidade sexual entre dois “comedores”. No caso, o autor e seu único e virtual irmão alemão. Digo virtual, porque, ao que tudo indica, o irmão brasileiro do romance parece ser o alter ego do irmão alemão. Ao que se soube, depois, sobre ele é que, como Chico, foi um cantor de relativo sucesso — e mulherengo (casou-se quatro vezes).
Outro ponto que me parece demasiadamente exagerado no romance é o excesso de imagens de ficção que leva a uma série de coincidências que trazem certo ar de irrealidade à narrativa.
Mas o romance tem também seus pontos positivos. É bem-escrito e com parágrafos bem-construídos, sem nada fora do lugar. A história ganha corpo da metade para o fim. A leitura do “Irmão Alemão” não me fez levitar como nas grandes obras que li. Fiquei o tempo todo com os pés no chão. Chico Buarque é, sem dúvida, o maior compositor vivo da música popular brasileira, no entanto o livro que acaba de publicar é apenas regular.
Salatiel Soares Correia é crítico literário e mestre em Planejamento Energético pela Unicamp.