Um passeio pelo centro do Rio de Janeiro colonial
24 setembro 2016 às 10h15
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Arquiteto e historiador Nireu Oliveira Cavalcanti reconstitui em obra as grandes transformações que a cidade viveu ao longo de seus 450 anos
“Minha alma canta
Vejo o Rio de Janeiro
Estou morrendo de saudade”
Tom Jobim
Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção
Um passeio por ruas, praças, largos, caminhos, rocios e becos do centro histórico do Rio de Janeiro é o que oferece o mais recente livro do arquiteto e historiador Nireu Oliveira Cavalcanti, o intitulado “Rio de Janeiro: Centro Histórico Colonial 1567-2015” (Rio de Janeiro, Andrea Jackobsson Estúdio Editorial/Fundação Carlos Chagas Filho de Apoio à Pesquisa no Estado do Rio de Janeiro, 2016), segunda edição revista e ampliada de “Rio de Janeiro: Centro Histórico — 1808-1998” (Anima/Dresdner Bank Brasil, 1998), fartamente ilustrado com fotos, aquarelas de Thomas Ender, imagens da Coleção Maria Cecília e Paulo Geyer do Museu Imperial e desenhos do próprio autor.
Refundindo o livro anterior, desta vez, Cavalcanti procurou reconstituir as grandes transformações pelas quais o centro histórico do Rio de Janeiro passou ao longo de 450 anos, desde a fundação do povoado, passando pela chegada em 1808 da família real, que marcou a elevação da cidade à sede da monarquia portuguesa, até os últimos anos marcados pela realização da Copa do Mundo de Futebol, em 2014, e da Olimpíada, em 2016.
É de se observar que Cavalcanti, pesquisador minucioso e persistente de arquivos brasileiros e portugueses, foi quem contestou a invencionice — repetida indefinidamente por historiadores alérgicos ao pó dos arquivos e limitados à leitura de livros impressos, ainda que antigos — de que, com a família real, teriam chegado ao Rio de Janeiro de 10 mil a 15 mil pessoas, garantindo, depois de compulsar detidamente os registros manuscritos da época, que, na verdade, o príncipe regente viera acompanhado de um seleto grupo que não chegava a 450 pessoas.
De fato, não é preciso ser muito atilado para se concluir que, se o Rio de Janeiro em 1808 reunia 7,6 mil edificações em sua área urbana e uma população ao redor de 60 mil habitantes, com certeza, a instalação abrupta na cidade de 15 mil pessoas haveria de ter causado um alvoroço sem precedentes que, por certo, teria sido relatado em documentos da época. E onde estão estes papeis de que não se tem notícias?
Como observa Cavalcanti na introdução, o Rio de Janeiro dessa época refletia influências arquitetônicas e urbanísticas da metrópole, mas, graças à exuberância de sua paisagem natural e ao isolamento de sua população e ao desenvolvimento de uma linguagem com traços locais, “foi surgindo uma cidade peculiar, dotada de extrema beleza a encantar a todos que nela chegavam”.
Denominações
Cavalcanti acrescenta que muitos nomes dos logradouros cariocas tiveram origem em caminho, estrada, azinhaga, campo, paragens, sertão ou rocio antes de serem denominados por rua, beco, travessia, largo, praça ou praia, à época da passagem do espaço rural ou semi-rural para o urbano. Assim, o leitor terá a oportunidade de saber a origem de muitos logradouros conhecidos — e de outros nem tanto —, cujos nomes chegaram até os nossos dias, e de muitos que ganharam novas denominações ao longo dos tempos.
De início, a primeira denominação de muitos logradouros partia da descrição do local em que se situavam. Assim, uma via perpendicular à orla marítima chamou-se Desvio do Mar. Havia ainda o Caminho dos Arcos (aqueduto da Carioca), da Forca ou da Polé, do Boqueirão e as Ladeiras do Seminário ou do Poço do Porteiro ou ainda o Beco do Cotovelo. Depois, quando o logradouro ganhava uma edificação mais representativa, passava-se a chamá-lo por essa referência urbana, como a Rua da Cadeia, do Aljube, da Ópera, do Guindaste, do Cemitério, do Rosário, da Alfândega, da Candelária, da Boa Morte, do Açougue, do Quartel ou Detrás do Hospício.
As praias também recebiam, às vezes, denominação de acordo com a atividade que nelas seria desenvolvida. Um exemplo é a Praia dos Mineiros, hoje parte da Rua Visconde de Itaboraí, onde havia um cais, entre o Cais do Braz de Pina e o Arsenal da Marinha, no qual ancoravam, principalmente, embarcações originárias dos portos do interior da Baía da Guanabara. Lembra Cavalcanti, na obra, que, como algumas dessas embarcações saíam do Porto da Estrela carregadas de produtos e passageiros oriundos de Minas Gerais, esse trecho ficou conhecido como Cais dos Mineiros e também como Praia da Farinha.
Se se pode acrescentar algum dado, é de se lembrar que foi na Praia dos Mineiros que o alferes Joaquim José da Silva Xavier (1746-1792), o Tiradentes, à época em que ficou ausente de seu regimento em Minas Gerais quase um ano e meio, tentou encetar algumas iniciativas empresariais no Rio de Janeiro. Uma delas foi procurar arrendar oito braças de terrenos na Praia dos Mineiros e seis braças na Praia de Dom Manoel para construir um guindaste de madeira que serviria para o “embarque de animais quadrúpedes e manufaturas” (Arquivo Histórico Ultramarino, Lisboa, seção Rio de Janeiro).
No verbete referente à Praia de Dom Manoel, hoje Rua Dom Manoel, lê-se que, no começo do século 17, formou-se um corredor de prédios que foi denominado Porto dos Padres da Companhia (dos jesuítas), posteriormente mudado para Praia Dom Manoel (Lobo), em homenagem ao governador da capitania do Rio de Janeiro que morreu prisioneiro dos argentinos na defesa da Colônia do Sacramento, em 1683.
Se muitos desses logradouros históricos já não são assim tão visíveis na paisagem carioca, há outros que são conhecidos por todo o Brasil, como a Rua da Alfândega, onde no prédio de número 70 situou-se por décadas, até 2014, a sede da Confederação Brasileira de Futebol (CBF). De início, esse logradouro chamou-se Caminho do Capueruçu e, mais tarde, Rua Diogo de Brito Lacerda, em homenagem a um de seus ilustres moradores, mas depois passou a se denominar Rua da Quitanda dos Mariscos. Com a construção do prédio da Alfândega, na atual Rua Primeiro de Março, cujo portão ficava em frente ao antigo Caminho do Capueruçu, ganhou o nome de Travessa da Alfândega.
Como observa Cavalcanti no verbete referente à Rua da Alfândega, era no número 50 da travessa que vivia dona Inácia Gertrudes de Almeida, amiga de Tiradentes, a quem o alferes recorreu em busca de auxílio para encontrar refúgio, oferecido enfim por um amigo seu, na Rua dos Latoeiros (atual Rua Gonçalves Dias), onde morava num sobradinho o paulista Domingos Fernandes da Cruz. Foi nesta casa que a tropa do vice-rei o prendeu.
Outro logradouro amplamente conhecido por todo o País é o Largo da Carioca, cuja denominação mantém-se até os dias de hoje. No início, diz o autor, esse logradouro era quase todo ocupado por uma lagoa que motivou Antônio Felipe Fernandes, em 1610, a arrendá-la à Câmara de Vereadores para servir-lhe de tanque de lavagem dos couros de seu curtume. Ali perto, os franciscanos construíram seu convento dedicado a Santo Antônio, que acabou por dar nome ao sopé do morro em que estava situado. Foi a construção de um chafariz para aproveitar a água do Rio Carioca, em 1723, que motivou a mudança do nome do sítio para Largo da Carioca.
Além de logradouros que até hoje podem ser localizados na paisagem carioca, há outros que se perderam com as obras de modernização e revitalização do espaço urbano já no século 20, especialmente com a derrubada do Morro do Castelo, onde praticamente começou a cidade, e do Morro de Santo Antônio, e a construção da Avenida Rio Branco, que, inaugurada em 1906, foi em menos de um século praticamente destruída, pouco restando de sua arquitetura original. Sem contar a abertura da Avenida Presidente Vargas, inaugurada em 1942, que fez desaparecer da paisagem quase mil prédios, entre eles várias igrejas setecentistas. Um vandalismo que só se pode atribuir à incúria e à falta de cultura que caracteriza até hoje boa parte dos homens públicos brasileiros.
Minibio
Nireu Cavalcanti (1944), arquiteto formado em 1969 pela Faculdade Nacional de Arquitetura da Universidade do Brasil, é doutor em História Social, com ênfase em História Urbana, pelo Programa de Pós-Graduação do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais do Departamento de História da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), desde 1997. Tem especialização em Planejamento Urbano e Regional e em Metodologia do Ensino Superior pela Universidade Santa Úrsula (1979-1982). É professor de pós-graduação da Escola de Arquitetura e Urbanismo da Universidade Federal Fluminense (UFF), da qual foi seu diretor de 2003 a 2007.
É autor, com Hélio Brasil, de “Tesouro: o Palácio da Fazenda, da Era Vargas aos 450 anos do Rio de Janeiro” (Pébola-Casa Editorial, 2015); e de “O Rio de Janeiro setecentista: a vida e a construção da cidade da invasão francesa até a chegada da Corte” (Zahar, 2003), seu trabalho de doutorado, com o qual obteve o primeiro lugar da 42ª Premiação Anual do Instituto de Arquitetos do Brasil, do Rio de Janeiro, em 2004; “Histórias e conflitos no Rio de Janeiro colonial: da Carta de Caminha ao contrabando de camisinha — 1500-1807” (Civilização Brasileira, 2013); “Arquitetos e Engenheiros: sonho de entidade desde 1978” (Crea-RJ, 2007); “Crônicas históricas do Rio colonial (Civilização Brasileira/Faperj, 2004); “Santa Cruz — uma paixão” (Relume-Dumará, 2004); e “Construindo a violência urbana” (Madana, 1986). Participou ainda, com capítulos, de vários livros.
Adelto Gonçalves é autor de “Os vira-latas da madrugada” (Rio de Janeiro, José Olympio Editora, 1981; Taubaté, Letra Selvagem, 2015), entre outros.