Aluna de Mário de Andrade, Nelly Novaes Coelho reúne mais de meio século de pesquisa em 976 páginas, sem classificar quais os melhores

Doutora em Letras pela USP, a paulista Nelly Novaes Coelho já publicou dezenas de livros. Aposentada atualmente, se dedica à pesquisa e análise da literatura contemporânea brasileira e portuguesa
Doutora em Letras pela USP, a paulista Nelly Novaes Coelho já publicou dezenas de livros. Aposentada atualmente, se dedica à pesquisa e análise da literatura contemporânea brasileira e portuguesa | Divulgação

Adelto Gonçalves
Especial para o Jornal Opção

Resultado de mais de meio século de pesquisas, leituras e releituras de obras apresentadas em cursos universitários, “Escritores brasileiros do século XX –– um testamento crítico” (Taubaté-SP: Letra Selvagem, 2013), de Nelly Novaes Coelho (1922), doutora em Letras pela Universidade de São Paulo (USP), reúne estudos e notícias bibliográficas de 81 autores que se destacaram no panorama literário do País, mas não tem por objetivo estabelecer uma classificação daqueles que seriam os melhores.

Por isso, se pode sentir a ausência de alguns escritores –– muitos ainda com a obra em construção –– ou ficar surpreso com a presença de um ou outro nome menos conhecido, mas, de qualquer modo, trata-se de um inventário do que a literatura brasileira produziu ao longo do século XX, ainda que não tenha uma pretensão totalizadora nem se apresente para fins de marketing como um levantamento completo.

O livro não só analisa as obras de nomes consagrados como Guimarães Rosa, Lins do Rego, Graciliano Ramos, J. Veiga, Veríssimo e, dentre outros, Élis, como também analisa autores mais antigos, esquecidos pelas editoras
O livro não só analisa as obras de nomes consagrados como Guimarães Rosa, Lins do Rego, Graciliano Ramos, J. Veiga, Veríssimo e, dentre outros, Élis, como também analisa autores mais antigos, esquecidos pelas editoras

Por isso, se não encontrar determinado nome neste livro, como diz o editor Nicodemos Sena, ele mesmo incluído na obra como romancista e contista, não dá para concluir que se trata de lacuna ou mesmo falha do crivo crítico da autora, mas apenas diversidade de escolha, o que constitui um fenômeno salutar e até mesmo natural, levando-se em conta “o universo plural e riquíssimo em pos­sibilidades como o é a literatura brasileira, a qual deve expressar uma extensão geográfica e cultural com dimensões continentais”. Portanto, sorte do autor cuja obra teve pelo menos a condição de atrair os olhos da pesquisadora em determinado momento.

Dessa maneira, o livro, monumental, de 976 páginas, não só analisa as obras de nomes consagrados como Lima Barreto (1881-1922), José Lins do Rego (1901-1957), Jorge Amado (1912-2001), Câmara Cas­cudo (1898-1986), Oswald de An­drade (1890-1954)), Aníbal Machado (1894-1964), Graciliano Ra­mos (1892-1953), Gui­ma­rães Rosa (1908-1967), José J. Veiga (1915-1999), Autran Dourado (1926-2012), Otávio de Faria (1908-1980), Érico Veríssimo (1905-1975), Ber­nardo Élis (1915-1997), Josué Montello (1917-2006), Fernando Sabino (1923-2004), Murilo Rubião (1916-1991), Moacir Scliar (1937-2011) e João Ubaldo Ribeiro (1941-2014), como traz outros mais antigos que estão esquecidos em razão do desinteresse de editoras que seguem as tendências do mercado, tais como Cornélio Pena (1896-1958), A­do­nias Filho (1915-1990), Campos de Carvalho (1916-1998) e Gustavo Corção (1896-1978).

Sem contar autores que ainda são conhecidos apenas num círculo restrito de leitores, como Ricardo Guilherme Di­cke (1936-2008), Everaldo Mo­rei­ra Veras (1937-2011), Vicente Franz Cecim (1946), Victor Giudice (1934-1997) e Xavier Marques (1861-1942), além de Alaor Barbosa (1940) e Antônio José de Moura (1946), ambos em atividade e ligados à literatura produzida em Goiás. E vários outros que ganharam visibilidade a partir dos anos 70 como Antônio Calado (1917-1997), João Antônio (1937-1996), Ignácio de Loyola Brandão (1936), Deonísio da Silva (1948), Edilberto Coutinho (1933-1995), Haroldo Maranhão (1927-2004), Osman Lins (1924-1978), Oswaldo França Júnior (1936-1989), Samuel Rawet (1929-1984) e Raduan Nassar (1935).

Élis e Haroldo Maranhão

Como exemplo do fazer-crítico da professora Nelly Novaes Coelho, pode-se, aleatoriamente, transcrever aqui o que diz, por exemplo, do romance “Quarup”, de Antônio Calado, escrito nos anos de 1965-66, época da instauração do golpe militar de 1964 e de todas as iniquidades que trouxe à vida nacional com perseguições, torturas e mortes: “(…) por um lado, [o romance] exorciza a incomensurável frustração de um Brasil traído em seus sonhos de transformação político-social, e por outro escava os ‘subterrâneos’ do homem pós-moderno (pós-Darwin), aquele que, perdendo sua origem sagrada, pergunta por si mesmo (…). Romance essencialmente complexo, ‘Quarup’, tal como o simbolismo do título, se constrói sob o signo da transformação, da metamorfose”.

Já a respeito de “Ermos e gerais” (1944), de Bernardo Élis, a ensaísta observa que os contos que o compõem, surgindo à época da Era Vargas e da Segunda Guerra Mundial, quando o ro­man­ce do Nordeste já chegara ao auge, com a denúncia do sistema patriarcal –– ou melhor, feudal, que, aliás, ainda persiste em muitos Estados brasileiros, até hoje dominados por clãs familiares ––, “se revelam, como arte maior, ao testemunharem a trágica alienação do homem que vivia (ou desvivia?) nos sertões do Centro-Oeste”. Para Nelly Novaes Coelho, Ber­nar­­do Élis cria uma nova linguagem, “cujo tom aparentemente lú­dico e descompromissado, como a de um “mero contador de estórias”, põe nua a situação do “ho­mem moldado/dominado, ora pela natureza em bruto, ora pelo despotismo desumano dos poderosos”.

De “O tetraneto del-Rei” (Rio de Janeiro, Francisco Alves, 1982), de Haroldo Maranhão, Prêmio Guimarães Rosa de 1980, reinvenção da saga da formação do povo brasileiro no século XVI, a professora destaca, sobretudo, “o singular domínio da escrita novelesca” do seu autor. Considerando este livro um “verdadeiro desafio lançado ao leitor”, a professora afirma que o romance é daqueles que “exigem uma prévia e substancial leitura de mundo, que possa servir de guia aos que se atrevem a percorrer suas labirínticas veredas”.

O romance reinventa a história de Jerônimo d´Albuquerque (c.1510-1584), irmão de Brites d´Albu­querque, mulher de Duarte Coelho Pereira (c.1485-1554), primeiro donatário da capitania de Pernam­buco. Atingido por uma flecha, Jerônimo perdeu um olho e passou a ser conhecido como o Torto. Teve decisiva participação na implantação dos primeiros engenhos de açúcar e na pacificação dos índios tabajaras. Apri­sionado pelos indígenas, teria sido salvo pela filha do cacique Uirá Ubi, Tindarena ou Tabira, com quem se casaria.

Em nome da verdade, diga-se que, quase ao mesmo tempo, “O tetraneto del-Rei” obteve também menção honrosa do Prêmio de Romance José Lins do Rego de 1980, da Livraria José Olympio Editora, ao lado de “Os vira-latas da madrugada” (1981), deste resenhista, e de “Póvoa-mundo” (1981), de Dirceu Lindoso (1932). O primeiro lugar do Prêmio, que marcou o retorno dos tradicionais concursos promovidos pela José Olympio depois de alguns anos de interrupção, ficou para “Trilogia do assombro”, de Helena Jobim (1931-2015). Os livros premiados foram publicados pela José Olympio no ano seguinte, menos o de Haroldo Maranhão, que optou pela Livraria Francisco Alves Editora e por reconhecer apenas o Prêmio Guimarães Rosa de 1980.

Autora

Nelly Novaes Coelho, nascida em São Paulo, foi aluna de Mário de Andrade (1893-1945) na disciplina História da Música no Con­servatório Dramático e Musical de São Paulo, pouco antes do escritor modernista se desligar do cargo de professor catedrático. Dedicou-se aos estudos de piano, mas não pôde fazer um aperfeiçoamento na Itália, depois de vencer um concurso internacional, em razão das circunstâncias adversas provocadas pelo início da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

Quando a Guerra acabou, já casada, seus planos eram outros: fez licenciatura na Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da USP na área de Letras Neo-Latinas (1959). Iniciou em 1960 a carreira de docente universitária, como assistente do professor Antônio Soares Amora (1917-1999). Foi professora também na Faculdade de Letras de Marília (SP). É doutora em Letras (1967) e livre-docente pela USP (1977). Atuou como crítica e ensaísta no antigo “Suplemento Literário” do jornal O Estado de S. Paulo. Aposentada desde 1992, ela se mantém em atividade, dedicando-se à pesquisa e análise da literatura contemporânea brasileira e portuguesa.

Publicou dezenas de livros sobre Literatura Contemporânea, Teoria Literária, Estratégias de Ensino e Educação, além de dicionários. Entre esses, destacam-se “O ensino da literatura” (1966); “Mário de Andrade para a nova geração” (1970); “Gui­marães Rosa” (1975); “Literatura: arte, conhecimento e vida” (2000); “Dicionário crítico de escritores brasileiros” (2002); e, dentre outros, “Escritores portugueses do século XX” (Lisboa, 2007).