Premiado em Cannes, longa do diretor Hirokazu Koreeda foi um dos destaques na programação da 12ª mostra O Amor, A Morte e as Paixões


O Brasil é o país com a maior colônia japonesa no mundo. Segundo dados mais recentes, há cerca de 1,5 milhão de nikkeis (termo usado para denominar os japoneses e seus descendentes) vivendo em terras tupiniquins, além de mais de um milhão de nipo-brasileiros (cidadão brasileiro com ascendentes japoneses), a grande maioria deles residindo nos Estados de São Paulo e Paraná. Os primeiros nativos da terra do Sol Nascente chegaram aos portos brasileiros há mais de cem anos, em 1908, a bordo do Kasato Maru, para trabalhar nos cafezais paulistas. Mais de 700 japoneses chegaram ao País na época.

Na terra em que sushi é servido em churrascaria e temakeria virou mato, a presença nipônica pode não ser tão grande numericamente quanto nos Estados acima mencionados, mas também é bem significativa. A migração japonesa em Goiás data do ano de 1920 e atualmente temos bastante familiaridade com a cultura e, principalmente, com a culinária. Em Goiânia, o festival anual Bon Odori se tornou um programa tradicional e aguardado no calendário da cidade; sem contar os eventos anime e cosplay que agitam as tribos geek (apesar de que esse espaço vem sendo seriamente disputado pela febre do K-Pop, da Coreia do Sul).

Toda essa volta foi para mostrar que essa pretensa proximidade, aliada às imagens que chegam até nós principalmente por meio do cinema e da cultura pop, ajudam a solidificar uma ideia preconcebida do que seria o Japão. Ao pensar naquele país, de imediato surgem em nossa mente imagens de uma nação próspera, hipertecnologicamente avançada (nem sei se o termo é correto, mas quis caprichar no grau de modernidade, vitrine das engenhocas de vanguardas mais incríveis do mundo). Uma sociedade que transita entre o futuro e o tradicionalismo. Um lugar em que são quase inconcebíveis sujeira nas ruas e pobreza nas cidades, habitadas por cidadãos exemplares. Muitos vão pensar em sushi e yakisobas; alguns em estudantes de minissaia.

Pois prepare-se para rever seus conceitos ao assistir o longa japonês “Assunto de Família”, filme ganhador da Palma de Ouro no Festival de Cannes e que foi um dos destaques na programação da 12ª mostra O Amor, A Morte e as Paixões (inclusive, foi uma das indicações pessoais do curador Lisandro Nogueira). Com direção de Hirokazu Koreeda, a trama gira em torno de uma família pobre (sim, tem pobre no Japão) em um bairro que passa ao largo de toda multidão apressada e dos letreiros luminosos de Tóquio.

Para sobreviver em meio à dureza, além das rendas provenientes de subempregos, o grupo não tem pudor de passar a perna no sistema de assistência social (um “jeitinho japa”) e alguns de seus membros cometem pequenos furtos (daí o nome em inglês do filme, “Shoplifters”).

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A vida do clã segue por muito tempo (muito mesmo, por sinal; quase o filme inteiro) sem sobressaltos. O pai, Osamu (Lily Franky), orgulhosamente ensina táticas de furto e justificativas esfarrapadas para o pequeno Shota (Iyo Kairi) surrupiar comida de supermercados e ‘vendinhas’ de bairro. Ambos sempre voltavam com alguma coisa para completar o jantar em casa, uma mini pocilga dividida com a mãe, Nobuyo (Sakura Andô), a jovem prostituta Aki (Mayu Matsuoka) e a velha Hatsue (Kirin Kiki).

Esse arranjo familiar sofre uma mudança crucial quando, em uma noite gélida, Osamu e Shota deparam-se com a pequena e fofíssima Yuri (Miyu Sasaki), uma garotinha que sofria maus-tratos e que foi abandonada pelos pais. A garotinha é acolhida, mas logo o grupo recebe a notícia de que está sendo procurada pelas autoridades.

A pequena Yuri (Miyu Sasaki): quem resiste a uma fofura dessas? | Foto: Divulgação

Este “detalhe”, no entanto, é ignorado e passamos a acompanhar o dia a dia do núcleo familiar. À medida que suas histórias e personalidades vão sendo mostradas por Koreeda, vamos nos afeiçoando e torcendo para que seus expedientes deem certo. Aliás, é uma reconhecida marca autoral de Koreeda a sensibilidade para apresentar histórias que adentram a intimidade destes círculos familiares, a exemplo de “Pais e Filhos”, um de seus filmes anteriores.

Presenciamos dores, alegrias, piadas, estações do ano que, diferente daqui, transcorrem de forma nítida. O casal aproveitando a ausência das crianças para fazer sexo e muitas refeições. Testemunhamos o carinho que os membros demonstram, ainda que à maneira nipônica, contrapondo aquela imagem de que os japoneses são frios e solitários; especialmente os idosos. Por sinal, é tocante a cumplicidade entre Hatsue e a adolescente Aki, que compartilha sem qualquer moralismo todas as curiosidades do que acontece em seu ambiente de trabalho nada convencional para nós, brasileiros.

Já Osamu está muito mais para amigo do que pai e as crianças se divertem com bugigangas em meio a toda quinquilharia da casa. No entanto, toda essa atmosfera aconchegante rompe-se quando um ‘tsunami’ de reviravoltas engole a todos e faz com que o espectador vá descobrindo a verdadeira face desta “família”.

Não darei spoilers, mas a consciência pesada de um impactará a todos, transformando o drama numa quase história policial e o desfecho com a real motivação dos indivíduos pode quebrar a expectativa de quem assiste. A despeito deste descompasso no ritmo do roteiro – os fatos transcorrem em uma velocidade desproporcional a partir do derradeiro ponto de conflito – “Assunto de Família” é uma excelente pedida para treinarmos o exercício da contemplação.

Mas não espere aquelas belas cerejeiras floridas; a fotografia não é um trunfo do filme, como normalmente se espera de uma produção japonesa. O convite à observação vale para nos transportamos para conhecermos uma outra face de uma cultura, de um país, muito diferente daquela a que estamos acostumados. Quanto à lição que fica é de que família que apronta unida, permanece unida… mas não por muito tempo. Quando não há laços de sangue, os afetivos podem facilmente ser trocados pela lei do ‘salve-se quem puder’.