Everaldo Leite

Especial para o Jornal Opção

Nem sempre uma ‘dívida histórica’ se paga com dinheiro, mas com grandes gestos, que a cidade de Goiás não foi capaz de cumprir

A história de um povo acontece lenta e longamente no tempo e, se por algum motivo esquecemos muitos dos seus detalhes, raramente perdemos de vista os seus símbolos. Os monumentos, emblemas, insígnias, cancioneiros avigoram a própria identidade desse povo, gerando valores a serem defendidos e sentimento cívico de pertencimento. As pessoas de um lugar, que estimam sua história e sua identidade, portanto, abraçam e rememoram os seus símbolos.

Nesse sentido, a longa história do município de Catalão, 300 anos, rica em histórias e estórias, vê um dos seus símbolos mais importantes retornar ao seu lugar, após 109 anos, a chamada “Cruz do Anhanguera”. Símbolo histórico, cristão, cultural e topográfico. Indubitavelmente, enquanto o povo catalano se admira com o marco, o povo goiano o aplaude. Todos sabemos o quão longe a cruz esteve do seu berço natal, esperando um novo amanhecer, e como isso fez ressentir a tradição daquele município. Não por acaso, as antigas famílias foram as primeiras a comemorar esse regresso.

Luís Estevam: escritor, economista e membro da Academia Catalana de Catalão | Foto: Arquivo pessoal

A urgência de recompor o símbolo em seu local original foi motivada pela iniciativa de Luís Estevam, presidente da Academia Catalana de Letras, da Fundação Cultural Maria das Dores Campos e membro efetivo do Instituto Histórico e Geográfico do Estado de Goiás. Estevam é doutor em Economia pela Unicamp-SP e foi professor na PUC-GO, onde aposentou. A sua volta à cidade de Catalão suscitou grandes pesquisas sobre os fatos mais relevantes da formação antiga e contemporânea do município, o que já resultou em dois excelentes livros: “Catalão — Fragmentos do Passado” (2021) e “Catalão — Memórias Esparsas” (2022).

As comemorações pelos 300 anos do município, em 2022, também foram essenciais para que a cidade desse atenção a tal iniciativa. Como lembra Estevam, “desde o momento em que foi arrancada do solo, em 1914, a chamada ‘Cruz do Anhanguera’ se tornou objeto de cobiça e de controvérsia historiográfica”. Na época, a maçonaria de Catalão e o juiz de Direto do município a reconheceram como valiosa, associando aquele símbolo à passagem do bandeirante Anhanguera Filho, em 1722, e a retiraram do local original, conduzindo-a para as dependências da maçonaria, onde ficou por dois anos.

Cruz de Catalão que foi levada para a Cidade de Goiás | Foto: Reprodução

Na realidade, é importante dizer que a origem da Cruz é misteriosa, o que se sabe é que esteve fincada, por cerca de 170 anos, próxima ao Sítio dos Casados, propriedade da família Mariano, “local antigo de pouso e hospedagem na estradinha que vinha de Catalão rumo a São Paulo”. Pode ter sido obra das bandeiras ou não. A data inscrita ao pé da Cruz ficou ilegível com o tempo (1722 ou 1746?), apesar disso o juiz Couto a batizou como “Cruz do Anhanguera” e, em 1916, ordenou sua transferência para a Cidade de Goiás. Uma inconsequência lastimável. “Evidente que, a remoção da cruz não foi pacífica e criou mágoas na comunidade catalana”, afirma Estevam.

Por ser reconhecida como parte da história do Anhanguera, até o Governo de São Paulo tentou por duas vezes, mas sem sucesso, se apropriar da Cruz. Da última vez, para levar ao Museu do Ipiranga. A Cruz, em 1918, foi implantada em um monumento na antiga capital do Estado de Goiás, por ocasião das comemorações de seu primeiro centenário. Aos catalanos restou o desconsolo pela perda daquela preciosidade, mesmo que nem todos compreendessem o valor daquele marco histórico e religioso da cidade. Luiz Estevam descreve o acontecimento de despedida da Cruz pelos Catalanos.

“Os moradores compareceram à estação ferroviária, no dia da transferência da cruz, mas poucos entenderam o que estava acontecendo. Presenciaram lances dramáticos de choro, lamento e raiva, assim como também demonstrações de euforia, satisfação e ardor cívico. Sob um foguetório intenso e ao som da banda de música, a cruz foi acomodada em uma prancha do vagão e o trem partiu rapidamente.” De trem até Ipameri, de carro-de-boi até a Cidade de Goiás.

Aos responsáveis pelo (mal) feito, a Cruz seria um presente de Catalão ao patrimônio e memória do Estado. O certo é que, em 2001, uma forte chuva gerou uma grande enchente no Rio Vermelho e a Cruz do Anhanguera foi arrancada de sua base e mergulhada nas águas. Após o lenho ser encontrado, foi depositado no Museu “tumular” das Bandeiras e no lugar monumental onde ficava foi instalada uma réplica. Evidentemente, também é uma réplica simbólica a Cruz do Anhanguera que no último domingo, dia 26 de março de 2023, foi festivamente levantada no local original no município de Catalão.

Como numa última cruzada medieval, os catalanos retornaram o seu maior símbolo histórico à fazenda da família Mariano, com acolhimento espetacular de pessoas de todas as classes sociais, com festa e cantorias. De fato, os pedidos do presidente da Fundação Cultural Maria das Dores Campos foram muitos para que a Cidade de Goiás reparasse essa “dívida histórica” com o município de Catalão, infelizmente nunca atendidos. Ora, nem sempre uma “dívida histórica” se paga com dinheiro, mas com grandes gestos, que a cidade de Goiás não foi capaz de cumprir.

Everaldo Leite é economista.