Yuri Baiocchi

Especial para o Jornal Opção

Há tempos observo uma certa constância de goianos em determinadas áreas de atuação. Melhor dizendo: uma recorrência fruto da maior aptidão no que toca ao desempenho de funções públicas e privadas específicas, bem como de algumas atividades artísticas e intelectuais ou domínio de determinados assuntos.

Essa observação se confirma no caso a seguir: o goiano José Leopoldo de Bulhões Jardim desempenhou, ao longo de dois períodos em governos distintos, o cargo de ministro da Fazenda do Brasil; assim como o seu sobrinho-neto Octávio Gouvêa de Bulhões (filho de goianos); seu primo distante Francisco Clementino de San Tiago Dantas (de família goiana); de forma interina, o dr. Sebastião Sant’Anna e Silva (goiano e pais dos escritores Sônia Sant’Anna, Sérgio Sant’Anna e Ivan Sant’Anna) e também Fernando Henrique Cardoso (com origem na velha capital de Goiás) e Henrique Meirelles, este último natural de Anápolis.

Federico García Lorca: poeta espanhol assassinado pelo franquismo, na década de 1930 | Foto: Reprodução

A vocação dos goianos para a gestão financeira não se limitou à chefia do Ministério da Fazenda: Henrique Meirelles e Gustavo Loyola presidiram o Banco Central (o primeiro chegou a ser presidente do BankBoston, nos Estados Unidos). Há de se mencionar as boas publicações referentes à história do Ministério da Fazenda do Brasil, de autoria de Tobias Cândido Rios, Nuno Pinheiro de Andrade e Augusto de Bulhões, todos estes altos funcionários da pasta, que teve outros dois goianos como destaques na primeira metade do século XX: Tobias Cândido Rios Filho e Josino Porto.

Na iniciativa privada cito, de memória, os nomes de Sylvio de Bulhões (no Bank of Tokyo), Mirella Santomé (ex-vice-presidente para investimentos do Credit Suisse) e Ana Carla Abrão Costa (atual vice-presidente da Bolsa do Brasil e doutora em Economia pela USP).

Na área acadêmica temos Leonardo Almeida Bursztyn (ex-guitarrista da banda de rock “Móveis Coloniais de Acaju” e neto do comunista goiano Alberto Xavier de Almeida, que fundou o jornal “Estado de Goiaz”), PhD em Economia pela Universidade Harvard, atualmente professor titular de Economia da Universidade de Chicago e editor do “The Journal of Political Economy”.

Artes visuais

O mesmo acontece nas artes visuais: num curto período de menos de 15 anos, isto é, de 1937 a 1950, nasceram em Goiás quatro de seus artistas mais valorizados no mercado: Mirian Inez da Silva (1937), Ana Maria Pacheco (1943), Siron Franco (1947) e Lúcia Nogueira (1950).

Teríamos aqui apenas uma coincidência de proximidade de datas ou o resultado do ambiente gestado pela Escola Goiana de Belas Artes e seus fundadores? Fico com as duas respostas, visto que o estudo acadêmico de qualquer área contribui sempre para o aprimoramento teórico e técnico.

No entanto, não vimos outra boa leva de artistas goianos (de nascimento) nas décadas seguintes — mesmo com o aumento do número de cursos (inclusive com título de graduação), a criação de museus, a abertura de galerias e a facilitação advinda das inúmeras bolsas e programas de acessibilidade (hoje com genuíno interesse no interior do país). Roos (1947), Leonam Fleury (1951) e Dineia Dutra (nascida um pouco depois, em 1954) são mais exemplos daquela excelente safra, embora tenham trilhado suas carreiras em Goiás num período em que apreciar a arte produzida no interior do país, mais precisamente no Centro-Oeste, não parecia rentável nem se encaixava em nenhuma cartilha político-ideológica — portanto, agora que voltamos a ser (re)descobertos, estes três nomes são fortes candidatos à especulação do mercado.

Afonso Felix de Sousa: poeta e tradutor | Foto: Reprodução

É preciso me fiar, entretanto, à questão central deste artigo, a qual se faz valer ainda na seara dos dicionários. O primeiro dicionário intitulado de “Língua Brasileira” fora publicado pelo goiano Luiz Maria da Silva Pinto (em 1832), seguido depois por outras publicações: “Manual de Anályse Syntáctica Portuguesa” (de Tobias Cândido Rios Filho); “Dicionário Analógico da Língua Portuguesa” (do professor Francisco Ferreira dos Santos Azevedo e cujos originais estão comigo junto com o negativo do mapa de Goiás – também de sua autoria);  “Gramática da Língua Luso-Brasileira” (de Jacintho Luiz da Silva Caldas); “Dicionário do Brasil Central” (de Bariani Ortêncio) e até mesmo o ótimo “Dicionário Tocantinense de Termos e Expressões Afins (de José Liberato Costa Póvoa).

Há poucos dias o historiador Antônio Caldas trouxe ao meu conhecimento um exemplar da “Grammática Latina”, organizada por Francisco Ignácio de Sousa, publicada pelas “Officinas da Livraria Magalhães” no ano de 1920 (em São Paulo).

William Agel de Melo

Merece um parágrafo à parte (aliás, um outro artigo) a saga do diplomata goiano William Agel de Mello, autor de mais de uma dezena de dicionários. Agel de Mello mostra-se um apaixonado pela lexicografia. Foi graças a dois trabalhos de sua autoria, “Dicionário Português-Romeno” e “Dicionário Geral das Línguas Românicas”, que pude desvendar o sentimento fraterno dos meus ouvidos ao conversar com um casal romeno, em Paris, e só depois de muitas frases perceber que o que falavam não era Português.

William Agel de Mello é goiano de Catalão, mesma terra da família dos irmãos Sant’Anna, dos poetas Ricardo Paranhos, Roquinho (autor de poemas eróticos), Gastão de Deus e Alceu Victor Rodrigues. Em Catalão moraram outros dois poetas: Fagundes Varella e Bernardo Guimarães (mais conhecido por seus romances). Foi também na região de Catalão/Ipameri que parte da família síria Cosac se instalara, pertence a esta família (com muitos parentes em grau próximo residindo em Goiás) o editor Charles Cosac (por sinal, a Cosac voltou a editar livros… e o primeiro da nova é sobre Siron Franco). Em matéria de editores graúdos Goiás tem outros três nomes: Moacyr Félix (da “Editora Civilização Brasileira” e de outras), Maria José Rios Peixoto da Silveira (da “Editora Marco Zero”) e Plínio Martins (da Ateliê Editorial e da Edusp).

William Agel de Mello: escritor, dicionarista e tradutor | Foto: Fábio Costa/Jornal Opção

 Como já dito, William Agel de Mello é diplomata — como outros inúmeros goianos o foram: Godofredo de Bulhões (chegou a embaixador e suicidou-se na China, em 1924), Felippe de Santa Cruz Guimarães (serviu em Bombaim quando ainda pertencia ao Império Britânico), Ignácio Soares de Bulhões (também serviu na Índia, em Calcutá, suicidando-se mais tarde ao saltar do cimo do morro do Corcovado, no Rio), Arrhenius Fábio Machado de Freitas (chegou a ministro e foi representante permanente do Brasil na FAO, em Roma, onde faleceu vítima de infarto).

Pedro Ludovico Teixeira Júnior, filho do fundador de Goiânia, foi adido cultural na Embaixada do Brasil em Roma, já Pedro Ludovico Estivallet Teixeira, filho de Mauro Borges Teixeira, foi aprovado em boa colocação para os quadros do Instituto Rio Branco, de onde foi desligado por motivos de saúde, seguindo depois o mesmo destino de seus parentes Godofredo e Ignácio de Bulhões. Estes, juntamente com Santa Cruz Guimarães, curiosamente descendem diretamente de Ângela Ludovico de Almeida, a mulher que se amasiara e tivera filhos com o governador nomeado de Goiás e depois, com a partida deste, casou-se com o próximo governador (o primeiro goiano de nascimento). Ângela é personagem central do romance “Chegou o Governador”, de Bernardo Élis.

Outros três diplomatas, que chegaram a embaixadores, mantiveram estreitas relações com Goiás: o mineiro Hugo Gouthier de Oliveira Gundim (notabilizado por adquirir por uma pechincha o belíssimo Palazzo Pamphili, na Piazza Navova, para sede da Embaixada do Brasil), que se casou com Laís Sayão Gouthier, filha de Bernardo Sayão, cujos laços com Goiás não se desfazem nunca; Sérgio Silva do Amaral, com residência em Pirenópolis, falecido recentemente e, por último, Rodrigo do Amaral Souza, hoje chefe da missão diplomática brasileira em Trinidad e Tobago, também com residência em Pirenópolis por ser casado com a goiana Laís Afonso do Amaral.

E, já ia me esquecendo, o cônsul Alcindo Carlos Guanabara (filho de Alcindo Guanabara, um dos fundadores da Academia Brasileira de Letras), que se casou com as goianas Laíla de Amorim e Marisa de Castro e Silva (filha do professor Colemar Natal e Silva e neta de Eurydice de Bulhões Natal), falecido em Goiânia. Por fim, cito o embaixador Carlos Alberto França, que foi ministro das Relações Exteriores do Brasil no último governo e, muito pelo seu comprometimento e experiência adquirida pelos anos de carreira, a diplomacia brasileira não viu em posição ainda mais desconfortável. Carlos França é natural de Goiânia e sobrinho do artista plástico Siron Franco.

Traduções de García Lorca

Mas vamos ao que interessa: as recorrências. E acontece que William Agel de Mello, além de diplomata e dicionarista, é também tradutor. São famosas as suas bem-acabadas edições da obra de Federico García Lorca para o Português.

Como não podia deixar de ser, temos goianos também no ofício de São Jerônimo: Oscar Sabino Júnior (traduziu Rilke e Joyce), Zilah Xavier de Almeida (com ótimas traduções de filosofia — traduziu Kant), Domingos Félix de Sousa (traduziu poetas italianos para jornais e antologias cariocas), Maria Luiza Borges (a mais premiada dos goianos), Maria José Silveira, Sônia Sant’Anna, José J. Veiga (“Pescar Truta na América”, de Richard Brautigan; “Contos Cortantes”, de Breece DJ Pancake; além de traduções de escritores franceses para a Unesco. Traduziu também contos de Hemingway), Afonso Félix de Sousa (traduziu poesias do inglês, francês, italiano e espanhol), Galeno Machado de Freitas (o primeiro a traduzir “As Veias Abertas da América Latina” para o Português e cujo resultado, segundo Eduardo Galeano, fez com que a versão em Português soasse “melhor do que em Espanhol”; traduziu também “Eu o Supremo”, de Augusto Roa Bastos, que já havia enfurecido o ditador Stroessner. E foi jornalista da “Folha de S. Paulo”).

Vejamos que o ministro Arrhenius Fábio Machado de Freitas era irmão do jornalista e tradutor Galeno de Freitas. Sobre o ministro Arrhenius Fábio, transcrevo aqui um depoimento do também embaixador e ex-ministro Rubens Ricupero à Biblioteca Mário de Andrade: “Agora, eu devo o ingresso no Rio Branco à Biblioteca Municipal de São Paulo. Eu queria até prestar esse meu testemunho de gratidão à Biblioteca. Nesse ano, isso foi em 1957, 1958, eu tive um colega na faculdade de Direito, que já morreu há muito tempo, que era de Goiás, ele chamava-se Arrhenius Fábio Machado de Freitas. Ele era filho de um deputado estadual de Goiás, de Jaraguá, e tinha vindo para São Paulo, porque ele havia saído do seminário, a intenção inicial dele era ser padre Salesiano. No seminário, ele chegou a ensinar latim e grego, mas, quando ele estava para terminar o curso e se ordenar, ele viu que não era a vocação dele. Saiu e veio para a faculdade aqui, onde nós fomos muito amigos. Aliás, eu também na época fui colega, poderia dizer amigo, do Raduan Nassar, com quem eu andava pelas ruas, tomávamos chope e conversávamos sobre a vida. Eu nunca mais vi o Raduan. Eu nunca suspeitei que ele tivesse romances na gaveta e nunca mais o vi, mas o Raduan foi meu colega e companheiro frequente”.

Mais tarde, Rubens Ricupero, enquanto professor na UnB, teria o aluno goiano Leonardo Vieira Lacerda por dois anos como seu monitor. Leonardo Lacerda, influenciado por Ricupero — que assinou a sua carta de recomendação para a School of Advanced International Studies, da Universidade Johns Hopkins, de reconhecida formação mais progressista. Leonardo Lacerda, que também descende de Ângela Ludovico de Almeida, não quis seguir carreira diplomática. Aposentou-se há pouco como diretor global de clima da The Nature Conservancy (TNC) — a maior ong ambiental do planeta. Lacerda desconhecia a relação de Ricupero, que foi seu grande incentivador, com outro goiano (Arrhenius Fábio Machado de Freitas) e se surpreendeu também ao saber que este conterrâneo também se enveredou pelo Latim e Grego. Lacerda se dedica atualmente à tradução de poemas do Grego Moderno.

Afonso Félix de Sousa e William Agel

Arrhenius de Freitas chegou a produzir algumas traduções no tempo de universidade. Estas se encontram publicadas em jornais e antologias paulistas. Os textos, embora fiéis, são duros/sem lirismo — muito diferentes das traduções assinadas por seu irmão Galeno, que jamais seguiu carreira diplomática. Essa comparação entra aqui pois o mesmo acontece ao colocarmos lado a lado as versões de Afonso Félix de Sousa e William Agel de Mello da obra de García Lorca.

Agel me parece preciosista e, ao buscar o significado exato das palavras, sacrifica o verso ou, no pior caso, o lirismo do poema. A crítica e tradutora Bárbara Heliodora (também com parentes em Goiás na família Carneiro de Mendonça), autoridade na obra de Shakespeare, certa vez palestrando em meu colégio do Rio, disse-nos (aos alunos) que toda boa tradução deve respeitar a forma de igual modo que ao conteúdo. Ela criticava a tradução de versos e peças de Shakespeare fugindo à métrica original ou mesmo dispensando as rimas (quando elas estavam presentes). No caso das peças, ela dizia que havia uma razão fundamental para diferenciar as falas dos personagens principais em versos e dos demais em prosa. Ou mesmo para os monólogos ou as reflexões serem quase sempre em prosa.

Maria Luiza Xavier de Almeida Borges, a mais premiada dos tradutores goianos, por sua vez defende que a tradução mais exata é a que preserva a forma e o sentido, sendo que este pode não ser igual à tradução literal do conteúdo. E não recomenda jamais inovar ou dizer mais do que o autor. Tanto Borges como Heliodora são avessas às adaptações. Borges, acostumada a traduzir títulos de Psicanálise, Filosofia e Economia, recebeu inúmeras premiações por traduções de livros infantis. Disse que jamais adaptou nenhuma das traduções pro público infantil, pois isso seria subestimar o leitor (além de desrespeito ao autor).

Em entrevista à Carta Fundamental, Maria Luiza Borges afirmou:  “A questão da fidelidade é complexa. Se o texto soa natural e fluente no original, deve soar assim também na tradução, o que será impossível se o tradutor ficar colado à letra do original. O que interessa é obter o mesmo efeito, ainda que por vezes seja preciso usar recursos um pouco diferentes. Mas creio que se deve ter a fidelidade possível, respeitados os limites da língua-alvo. Quanto à criatividade, seria conveniente não tentar ser mais criativo que Perrault, os irmãos Grimm ou Andersen”.

Vejo na versão de Afonso Félix de Sousa as boas qualidades preceituadas por Bárbara Heliodora e Maria Luiza X. de A. Borges, quais sejam: respeito à forma e ao sentido.

Antes de analisar o poema principal “Romance Sonámbulo”, vamos ao soneto “Noche del amor insomne”:

 Trata-se de um soneto decassílabo, no esquema de rimas: ABBA/ABBA/CDC/DCD. A versão de Afonso Félix de Sousa, além de ser a mais poética, respeita a métrica e a rima do original. A de William Agel não preocupa em seguir nem a métrica (apresenta versos de 10, 9 e oito sílabas poéticas) nem o esquema de rimas (ABCA/AB*BA/DED/EFE). O que mais me chamou atenção, no entanto, foi a literalidade na tradução dos primeiros períodos dos primeiros versos dos quartetos: “noite acima os dois com lua cheia”/”noite abaixo os dois” que, definitivamente, não soam bem em Português. Afonso adotou: “a noite sobre os dois com lua cheia”/”a noite sob os dois”, que, sem dúvida, têm um sentido mais fácil e mais poesia, sem trair ao sentido original nem à métrica e rima. 

No terceiro e quarto versos do primeiro quarteto, entretanto, Agel consegue se sair melhor do que Afonso ao inovar com a palavra “sombrias” para atender à rima, colocando-a de uma forma invertida que, mesmo estando dentro do ritmo, incomoda ao ouvido.

Já nos demais versos do soneto, Afonso Félix de Sousa mostra com todo fulgor as vantagens de ser um poeta tradutor. Afonso adota: “por longes tão remotos tu gemias”, enquanto Agel vem com o duríssimo e estranho “choravas tu por fundas distâncias”. Nos dois tercetos o poeta, sem medo de ouvir os versos originais (e não apenas lê-los), derrota de vez o diplomata (vide acima).

Segue agora o poema “Romance sonámbulo”, sem dúvida o mais conhecido de Lorca não só aqui no Brasil como em todo o mundo, talvez até mesmo em Espanha.

Mais uma vez, fico com a tradução feita pelo poeta Afonso Félix de Sousa. Aliás, sobre ela vale dizer que consta em “Romance Gitano” (Editora Civilização Brasileira, 1957), quando o vate contava com 35 anos. Outros projetos de tradução da obra de Lorca viriam depois: “Antologia Poética” (Editora Leitura, 1966) e “Sonetos do Amor Obscuro e Divã do Tamarit” (Editora Bertrand, 1998).

William Agel de Mello também enfrentou mais uma vez o desafio de traduzir o cantor andaluz: “Obra Poética Completa” (Editora Martins Fontes, 1989), “Antologia Poética” (Editora Martins Fontes, 2001) e, com mesmo título desta, em edição de bolso (Editora L&PM, 2005) — embora a edição de bolsa não traga os originais em espanhol, vem com mais poemas.

Relendo arquivos da década de 1950, pude ver que o a versão de Afonso Félix foi bem recebida pela intelectualidade da época, porém com algumas restrições relativas à insistência da palavra “gitana” em detrimento de “cigana” e outros reparos de menor importância.

Particularmente, admiro a persistência quase heroica do poeta Afonso Félix em lutar com as redondilhas maiores e octassílabos do original. De uma forma impressionante, ele consegue seguir a métrica de Lorca do início ao fim. Entretanto, por mais que sobre lirismo, em alguns determinados momentos (como veremos), não consegue passar a exatidão das imagens originais e por vezes lhe falta precisão. Já precisão é algo que não falta na versão de Agel, o que uma vez mais sacrifica alguns versos. Também neste poema Agel não atende à forma original, isto é, opta por uma tradução sem preocupação com a métrica. Em alguns raros momentos, vale dizer que eles existem aqui, o diplomata se sai melhor do que Afonso.

Até então jamais havia me proposto a traduzir uma linha sequer de literatura vinda do Espanhol. Anos atrás, de forma despretensiosa, traduzi poemas de Lamartine (numa brincadeira de tentar me sair próximo à tradução de meu tio, o poeta Joaquim Xavier de Almeida, e de meu primo Xavier Júnior) e outros poetas de minha predileção, pelo que recebi alguns cumprimentos que, pelos meus 15 anos, não levei a sério. Relendo o que fiz, vejo que não ficou de todo ruim, muito pelo contrário e, quem sabe, eu volte a este jornal com os versos que traduzi de Lamartine. Fui alfabetizado em português, inglês e espanhol — daí a minha pretensão de trazer para cá uma outra versão do poema de Lorca.

Não tem esta minha versão a intensão de ser a mais precisa, quiçá tenho a elegância de Afonso ou o conhecimento de William Agel. Traduzi, unicamente, o que senti e usei em minha versão as palavras que foram tocadas em meu coração, que é goiano de pia.

Na primeira estrofe as diferenças entre as versões de Afonso e Agel são mínimas, mas distantes. O mesmo estribilho foi adotado pelos dois, mesmo havendo outros tradutores que utilizaram a variante “ramos” ou “galhos”. Sem dúvida, prefiro “ramas”.

No terceiro verso, não sei se para fazer cumprir a métrica, Afonso Félix adota: “o barco vai sobre o mar”, o que dá a indubitável ideia de movimento à cena expressa no verso e também no seguinte. Agel, por sua vez, traduz literalmente: “O barco sobre o mar”, que não expressa necessariamente movimento, podendo passar a impressão de que tanto o barco como o cavalo apenas repousam na paisagem.

Vale lembrar que Lorca conta em “Romance Sonâmbulo” a história de um contrabandista que abandona tudo e troca a vida de antes por… (não vou antecipar nada agora). A imagem do barco e do cavalo são um prenúncio do que se seguirá depois. O fato é que em movimento ou não, ambas as cenas podem expressar a mesma imagem do abandono e uma troca de rumo de vida. No verso seguinte, Afonso utiliza “com a sombra pela cintura”, enquanto Agel prefere “na cintura”, o que não me parece tão assertivo, assim como o verbo “olhar” nos dois últimos versos, que de fato não alcançam o “mirar” de Afonso. Nesta mesma estrofe, Agel traduz “baranda” como “balcão”. A tradução é correta, mas se distancia do leitor brasileiro. Enquanto eles abundam em Espanha, eu mesmo conheço apenas um balcão (ou “muxarabi”, do árabe) em Goiás, por coincidência na casa do Leonardo Lacerda, em Goiás Velho. A opção por “sacada” aproximaria os versos do público brasileiro, no entanto não me soa bem. Assim, “varanda”, que foi a escolha de Afonso, não é de todo boa nem ruim, mas passa a mensagem e agrada os ouvidos de quem escuta. Como veremos no decorrer do poema, o próprio Agel passa a adotar “varanda” mais adiante, o que me faz indagar se ele teve dúvidas quanto ao entendimento do leitor.

García Lorca: poeta e dramaturgo da Espanha | Foto: Reprodução

Na segunda estrofe temos a palavra “escarcha”, que em espanhol é exatamente a mesma. Embora exista no nosso idioma, é cada vez menos usada. Afonso e Agel optam por ela: precisão de “escarcha” ou “geada”. Mais adiante, Afonso prefere “nascem com o peixe de sombra”, enquanto Agel vai pela tradução literal. Os confrontos entre lirismo e literalidade se mantém ao longo da estrofe, como por exemplo em “rasga” (Afonso, em referência às escamas do peixe) e “abre” (Agel, tal qual no original); “raspa” e “esfrega”. Merece citação especial a adoção de “gato selvagem” por parte de Afonso. Na Província Ibérica há a ocorrência do “gato-montês” ou “gato-bravo”, um gato silvestre e arredio. Afonso traduz como “gato-selvagem”, Agel prefere “gato larápio”, que pode servir inclusive a um gato doméstico. Enquanto Agel traduz “mar amargo”, tal qual o original, Afonso escolhe “água amarga”, muito provavelmente pela feia sonoridade do primeiro. Em relação a “puertos de Cabra”, a escolha de Afonso por “passagens” e não “portos” (como Agel) foi mais acertada no que toca à tradução. Lorca refere-se aqui aos caminhos por entre as serras. Um pouco depois, “trato” (adotado por Agel) parece mais condizente eafinado com o personagem do que “negócio” (de Afonso). No estribilho dessa estrofe, Agel é bem mais certeiro ao utilizar “lar”, pois “mi casa” não é apenas uma casa, mas a casa do personagem. Em Espanhol, lembra-me o amigo Lacerda, diz-se: “mi casa es su casa” com o sentido de lar. Um pouco depois, “morrer com decência” (de Afonso) soa melhor do que “morrer decentemente” (de Agel). A variação de cama “de ferro” ou “de aço” não representa algo imporante. Vale mencionar os “lençóis de cambraia” adotados por Afonso em detrimento dos desusados “lençóis de holanda”. Já mais adiante, quando Afonso traduz “pechera” como camisa, fico com a versão de Agel que traz “peitilho”, muito mais assertivo embora também desuso. “Camisa” altera muito a imagem original. Já “balaustradas da lua” (de Afonso)  para “barandales”, mesmo também sendo um pouco antiquado, é sem dúvida melhor do que “corrimões da lua” (de Agel) que, além de tudo, é uma variação vulgar em Português.

Na terceira estrofe, “pequenos faróis” (de Afonso) pareceu uma solução para a métrica. Já “candeeirinhos” (de Agel), embora candeeiros costumem ficar fixados às paredes (o que se opõe ao trecho do poema), é mais a proposta de Lorca.

Na quarta estrofe, nem “raro gosto” nem “gosto esquisito” parecem bons correspondentes. Mais uma vez, atenção para o ouvido do poeta Afonso que alternou a ordem “hiel, menta y de albahaca”, que resultaria em “fel, menta e alfavaca”, para “menta, fel e alfavaca” a fim de extirpar o desagradável “fel+menta”, que parece não ter incomodado William Agel de Mello. Em “su niña amarga”, Afonso opta por “sua filha amarga”, já Agel escolhe “sua jovem amarga”. Nunca vi alguém perguntar cadê “o jovem” ou “a jovem” de outra pessoa, mas sim a filha, a menina, a mocinha – mas nunca “a jovem” de alguém.

Na última estrofe, pela primeira vez o poeta Afonso adota a literalidade. É que há nessa literalidade muito de poesia, embora também haja imprecisão. Obviamente, o “rosto da cisterna” se trata da superfície. Agel adota “boca da cisterna” que, embora certeiro, sacrifica a poesia do verso. Versos depois, em “carámbano de luna”, nenhum dos dois parecem ter encontrado correspondentes à altura do original. Nem “ponta gelada de lua” (palavroso e sem poesia) , nem “carambano” (tirado de alguma catacumba). Mais adiante, prefiro “a noite se fez tão íntima” do que “a noite tornou-se íntima”, esta já não parece intimista ao fim da leitura do próprio verso. Fico com o Afonso. E, por fim, creio que faltou ao Agel a citação de “guardas-civis” e não apenas “guardas”, isso como sabemos faz toda a diferença para os espanhóis.

 Quanto a minha versão, é bem possível que “braços”, “salmoura” e “hortelã” não agradem a todos. Mas os mantenho sob a mais íntima convicção. O restante do julgamento deixo a cargo dos leitores.

 Como vemos, a famosa recorrência dos goianos para determinados assuntos também me fisgou ao me interessar pela obra de Lorca e intentar traduzir seus versos. Isso certamente não me despertaria o mesmo ímpeto se Afonso Félix de Sousa e William Agel de Mello, meus conterrâneos, não tivessem palmilhado este caminho com galhardia, cultivando o respeito das grandes editoras e a admiração dos milhares de leitores. Diante disso, a eles primeiramente o meu muito obrigado.

Agradecimentos

Meus agradecimentos a minha prima Maria Luiza Xavier de Almeida Borges e a minha tia-avó Regina Lacerda, bem como aos amigos Antônio Caldas, Leonardo Lacerda, Maria Lúcia Félix Bufáiçal e Filipe Soares pelas conversas que têm sido bastante instrutivas nessa minha brincadeira séria de traduzir poemas de Federico García Lorca. Só Deus sabe quantas vezes tenho ligado, a cada nova tradução de poema, a fim de lhes pedir sugestões.

Yuri Baiocchi é pesquisador e crítico literário.