Tradutor da poesia completa de García Lorca e maior dicionarista do Brasil encerra sua carreira
31 março 2019 às 00h00
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William Agel de Mello é o diplomata goiano que traduziu para o português a obra poética completa de Lorca e escreveu 22 dicionários bilíngues
Considerado o maior dicionarista do Brasil e tradutor notável, William Agel de Mello mora em Goiânia, entre pilhas de seus 58 livros publicados e as praças do Setor Sul. O diplomata aposentado nasceu em 1937, em Catalão, se educou na capital goiana, formou-se diplomata pelo Instituto Rio Branco e, aos 25 anos de idade, tornou-se cônsul do Brasil em Barcelona. De lá, sua longeva carreira diplomática o levou a países da Europa, América Latina, Ásia e África.
Em sua bibliografia há romances, contos, ensaios, monografias, 22 dicionários bilíngues (sendo que para 11 desses idiomas sua versão em português é a única existente) e muitas traduções. Do americano Edgar Allan Poe, do nicaraguense Rubén Darío, dos franceses Charles Baudelaire e Jean-Arthur Rimbaud e outros. Entretanto, o diplomata, que fala fluentemente onze idiomas, tem uma língua e um poeta favorito: “O espanhol de Lorca”.
Em Barcelona, William Agel de Mello se interessou por aquele que é considerado o maior escritor espanhol desde Cervantes ao conhecer alguns lugares descritos na obra de Federico García Lorca (1898-1936). Então, começou sua pesquisa escrupulosa que o levaria a traduzir a obra poética completa (publicada no Bras. “A tradução tem de ser vivida”, disse William Agel de Mello em seu apartamento, entre os quadros naïf que ganhou de presente enquanto servia no Haiti.
“Eu consumi tudo que tinha a ver com Lorca. Visitei todos os lugares – todos, sem exceção – descritos na obra dele. Eu ter vivido como ele mudou tudo; passei a conhecer a intimidade do poeta. O fato de eu ter morado na Espanha me ajudou a conhecer o poeta e seus poemas; entender que ele escrevia em espanhol, mas com acento andaluz.”
William Agel de Mello não discorre muito sobre seu método: “olhe o livro, está tudo lá”. Na apresentação da compilação dos poemas de Lorca, publicada pela Martins Fontes, ele escreveu que apenas tentou se aproximar o máximo possível do original, resistindo à tentação de embelezar a obra original, preservando o rigor formal e recriando no português o mesmo espírito e mensagem que o poeta andaluz imprimiu em seus textos.
“Foi duríssimo. Me custou cinco anos de trabalho para terminar a primeira versão. Comecei na Espanha, mas só fui terminar quando servia em Liverpool. Quando trabalhava no Vietnã recebi o pedido da Fundación Federico García Lorca para traduzir os sonetos, que tinham ficado de fora. A tradução, às vezes, é mais difícil que a própria literatura. Por exemplo: no poema ‘Arbolé, arbolé / Seco y verdé’, como se traduz isso? Há coisas que só se pensa em andaluz.”
O escritor
Federico García Lorca nasceu em 1898, em Granada. Foi um dramaturgo e poeta que conseguiu êxito crítico e popular ainda em vida. Fez sucesso inclusive na Argentina, onde suas peças eram apresentadas para multidões entusiasmadas. Nas ruas de Buenos Aires, foi seguido e aplaudido, sendo talvez a primeira grande celebridade transnacional da Espanha. Estudou na Columbia University, em Nova York, e retornou à Espanha, onde retratou as diversas províncias do país. Segundo o crítico literário Harold Bloom, sua arte tem facetas de surrealismo hiperbólico, de elegia lírica e de cancioneiro cigano. Sendo homossexual, intelectual e republicano, García Lorca foi fuzilado por fascistas ligados a Francisco Franco, em 18 de agosto de 1936, durante a Guerra Civil Espanhola (1936-1939).
Embora sua morte tenha dado um tom romântico para a obra (“fuzilado pela poesia”), para William Agel de Mello, García Lorca é o poeta mais estudado da Espanha por mérito próprio. “Ele teve influência de Rubén Darío, que influenciou todos daquela época, e de Lope de Vega, mas foi um poeta único, muito singular. Acho que a maior influência foi dos amigos Salvador Dalí, pintor, e Manuel de Falla, músico, que frequentavam com ele o café Riconcilio. A poesia dele vai do regional para o universal; os temas são espanhóis, mas fazem sentido para todos.”
O tradutor
Ao ser questionado por que se interessou por outros idiomas, William Agel de Mello dispensou a pergunta: “Sei lá. Nasci assim; nasci para as línguas”. Ele se lembra de, quando criança em Catalão, levar caneta e papel ao cinema para anotar palavras de filmes estrangeiros. Recorda-se também de gostar em especial do som do espanhol. As línguas românicas ainda são suas favoritas — sardo, reto-românico, provençal, asturiano, aragonês, mirandês — algumas delas com 15 mil falantes no mundo.
Depois de Barcelona e Liverpool, o diplomata foi transferido à África, onde viu de perto o processo de independência dos países, a dissolução do Apartheid na África do Sul, o chamado socialismo africano, e escreveu três livros sobre os assuntos. De lá, foi à Ásia, retornou à Europa e à América. “O Haiti foi uma experiência interessantíssima. O país mais pobre das américas tem muita cor. Os pintores haitianos de Naif são os melhores do mundo. Aquele quadro ali [aponta para o quadro] é do Préfète Duffaut, um pintor que está exposto na ONU.”
Em seu serviço diplomático, William Agel de Mello foi secretário de João Guimarães Rosa, a quem chamava de “mestre”. Traduziu para o castelhano o romance “Grande Sertão: Veredas”. A correspondência entre os dois foi publicada no livro “Cartas a William Agel de Mello”, que o diplomata exibe com orgulho.
William Agel de Mello agora termina de editar três boxes com suas obras completas, a coleção de 82 anos de produção lexicográfica e literária que será lançada em julho. “Depois disso, chega. Depois disso, terminado. Não quero traduzir nem uma vírgula a mais. Você tem que saber colocar um ponto final. Agora estou em uma fase sensorial: piscina, praia, viagens, mulheres”, ele disse rindo, e se pôs a recitar Antonio De Trueba: “No más, musa, no más! La lira tengo / destemplada y la voz enronquecida / no de cantar, de ver que á cantar vengo / á gente sorda y de alma endurecida!” (“Chega, musa, chega! A lira tenho / desafinada e a voz enrouquecida / não de cantar, de ver que a cantar venho / a gente surda e de alma endurecida!”).
Junito de Souza Brandão aponta tese como revolucionária
“A obra de William Agel de Mello enquadra-se nos seguintes gêneros: ficção, tradução, lexicografia e ensaio.
“Não menos importante é a contribuição de William Agel de Mello no âmbito da tradução. Traduziu — seguindo os parâmetros da tradução a mais fiel possível — os grandes poetas do Ocidente, inclusive a obra poética completa de Federico García Lorca.
“No campo da lexicografia marcou a sua presença de forma indelével e espetacular. Escreveu nada menos que 22 dicionários. Em certo sentido, a maior obra de lexicografia do mundo. Escreveu dicionários bilíngues de todas as línguas neolatinas — uma obra pioneira na lexicografia românica. O português é a única língua da família neolatina que conta com dicionários de todas as línguas congêneres. Coube-lhe a primazia de escrever o primeiro dicionário catalão/português, e ainda hoje, alguns de seus dicionários constituem os únicos dicionários bilíngues existentes no campo da lexicografia em nível mundial: sardo/português/sardo, galego/português/galego, reto-românico/português-reto-românico, provençal/português/provençal, além do monumental dicionário geral das línguas românicas.
“Sua tese sobre linguística — ‘O Idioma Panlatino e Outros Ensaios Linguísticos” — é realmente sui-generis. O latim deu origem a de línguas neolatinas, e as línguas neolatinas, em seu processo evolutivo normal, dão origem à língua síntese — o panlatino. A ideia básica é formar uma superlíngua para cada família de línguas. Ou seja: o pangermânico, o pan-eslavo, o panlatino, etc. Uma nova linguagem universal, ou uma reconstrução da Torre de Babel. Se sua tese tiver validade, poderá até mesmo ser indicado para o Prêmio Nobel, caso contribua efetivamente para uma maior comunicação entre os homens.” (Trechos da introdução de Junito de Souza Brandão para o livro “Obras Completas — Tradução”, Volume 2, de William Agel de Mello)
Traduções de William Agel de Mello
Dança da Lua em Santiago
Federico García Lorca
Fita aquele branco galã,
olha seu transido corpo!
É a lua que baila
na Quintana dos mortos.
Fita seu corpo transido,
negro de sombras e lobos.
Mãe: A lua está bailando
na Quintana dos mortos
Quem fere poldro de pedra
na mesma porta do sono?
É a lua! E a lua
na Quintana dos mortos!
Quem fita meus grises vidros
cheios de nuvens seus olhos?
É a lua! E a lua
na Quintana dos mortos!
Deixa-me morrer no leito
sonhando com flores de ouro.
Mãe: A lua está bailando
na Quintana dos mortos.
Ai, filha, com o ar do céu
torno-me branca depressa!
Não é o ar, é a triste lua
na Quintana dos mortos.
Quem muge com este gemido
de imenso boi melancólico?
Mãe: É a Lua, é a lua
Na Quintana dos mortos.
Sim, a lua, a lua
coroada de tojos,
que baila, e baila, e baila
na Quintana dos mortos!
Panorama Cego de Nova York
Federico García Lorca
Se não são os pássaros
cobertos de cinza,
se não são os gemidos que golpeiam as janelas da boda,
serão as delicadas criaturas do ar
que manam o sangue novo pela escuridão inextinguível.
Mas não, não são os pássaros,
porque os pássaros estão prestes a ser bois;
podem ser rochas brancas com a ajuda da lua e são sempre rapazes feridos
antes que os juízes revelem a teia.
Todos compreendem a dor que se relaciona com a morte,
mas a verdadeira dor não está presente no espírito.
Não está no ar nem em nossa vida,
nem nestes terraços cheios de fumaça.
A verdadeira dor que mantém despertas as coisas
é uma pequena queimadura infinita
nos olhos inocentes dos outros sistemas.
Um traje abandonado pesa tanto nos ombros
que muitas vezes o céu os agrupa em ásperas manadas.
E as que morrem de parto sabem na última hora
que todo rumor será pedra e toda pegada latido.
Nós ignoramos que o pensamento tem arrebaldes
onde o filósofo é devorado pelos chineses e larvas.
E alguns meninos idiotas encontraram pelas cozinhas
pequenas andorinhas com muetas
que sabiam pronunciar a palavra amor.
Não, não são os pássaros.
Não é um pássaro o que expressa a turva febre da laguna,
nem a ânsia de assassínio que nos oprime a cada momento,
nem o metálico rumor de suicídio que nos anima a cada madrugada.
É uma cápsula de ar onde nos dói o mundo todo,
é um pequeno espaço vivo ao louco uníssono da luz,
é uma escada indefinível onde as nuvens e rosas olvidam
à gritaria chinesa que ferve no desembarcadouro do sangue.
Eu muitas vezes me perdi
Para buscar a queimadura que mantém despertas as coisas
e só encontrei marinheiros atirados sobre as varandilhas
e pequenas criaturas do céu enterradas sob a neve.
Mas a verdadeira dor estava em outras praças
onde os peixes cristalizados agonizavam dentro dos troncos;
praças do céu estranho para as antigas estátuas ilesas
e para a terna intimidade dos vulcões.
Não há dor na voz. Só existem os dentes,
mas dentes que calarão isolados pelo raso negro.
Não há dor na voz. Aqui só existe a Terra.
A terra com suas portas de sempre
que levam ao rubor dos frutos.
Walter Whitman
Rubén Darío
(Do livro “Obras Completas — Tradução”, volume 2)
Em seu país de ferro vive o grande velho,
belo como um patriarca, sereno e santo
,
tem a ruga olímpica de seu sobrecenho
algo que impera e vence com nobre encanto.
Sua alma do infinito parece espelho;
são seus cansados ombros dignos do manto;
e com harpa feita de um carvalho vetusto,
como um profeta novo canta o seu canto.
Sacerdote que alenta sopro divino,
Anuncia, no futuro, tempo melhor.
Diz à águia: “Voa!”; “voga!”, ao marinheiro,
e “trabalha!”, ao robusto trabalhador.
Assim vai este poeta para o seu caminho
Com seu soberbo rosto de imperador!