Tradução é a arte de naufragar com dignidade e nobreza
09 dezembro 2017 às 09h13
COMPARTILHAR
Dirce Waltrick do Amarante
Especial para o Jornal Opção
A proposta do livro “Palavras de Escritor – Tradutor: Marco Lucchesi” (Escritório do Livro, 184 páginas), organizado por Andréia Guerini, Karine Simoni e Walter Carlos Costa, todos professores do primeiro Programa de Pós-Graduação em Estudos da Tradução a ser criado no Brasil, na Universidade Federal de Santa Catarina, é discutir o conceito de tradução a partir de um diálogo com o escritor e tradutor Marco Lucchesi, escritor, membro da Academia Brasileira de Letras e tradutor de literatura italiana, alemã, russa etc.
Antes de entrar propriamente no tema da tradução, Lucchesi é convidado pelos organizadores a revisitar seu passado, numa espécie de arqueologia que busca explorar os vestígios culturais do escritor. As memórias de Lucchesi, filho de italianos, mas nascido no Brasil em 1963 e vivendo entre duas línguas e duas culturas, são cercadas de citações literárias: lembra da avó, que lhe narrava “Orlando Furioso” (Ateliê Editorial, 660 páginas, tradução de Pedro Garcez Ghirardi), poema épico de Ludovico Ariosto; do pai, que lhe recitava cantos da “Divina Comédia”, de Dante Alighieri; e da mãe, que amava poesia e tocava piano.
Aos 18 anos, questionou a ausência de disciplinas como arte, literatura ou filosofia nas aulas do curso de História, que frequentou na Universidade Federal Fluminense, na década de 1980, que, apesar dos excelentes professores, como frisa em seu depoimento, parecia só tratar de balancetes e gráficos.
São as línguas, contudo, as grandes protagonistas de sua história pessoal. Lucchesi estudou francês, russo, esperanto, alemão etc. e via nas línguas uma forma de aproximação com o outro, com a cultura do outro, necessária, antes de mais nada, ao menino, filho único, que precisava ampliar a ponte que, como ele diz, “vai de mim ao outro”.
Potência criativa
A respeito do exercício da tradução, Lucchesi começou cedo, traduzindo cartas de primos e tios, além das óperas, estudadas no colégio durante o antigo ensino médio. Por ser bilíngue, lembra que “a translação de palavras, significantes e sinais se tornou praticamente automática”. Mas, na tradução literária, logo percebeu que o tradutor não é “apenas um operador neutro, movendo maciços blocos semânticos e sintáticos a partir da taxionomia vocabular”.
Afastada, segundo Lucchesi, a “primitiva esperança de simples comutação de palavras, tomadas como primas ou irmãs distantes” e, portanto, a ideia de tradução como equivalente, ela passa a apresentar-se como potência criativa. Torna-se, então, diz o tradutor, “necessário rever o papel subjetivo da tradução, da imaginação e da sensibilidade […], em que a aproximação entre culturas já não atenda a um maquinismo vazio, limitado ao dicionário e a uma lógica fuzzy, mas a um gesto cultural, impregnado de rumores, estranhamentos e fortes desvios normativos […]”.
No seu processo de tradução, Lucchesi conta que se vê “cercado por mil dicionários e retortas, tradutor-boticário, experimentando sais, fórmulas e palavras, com destempero e melancolia”. Ele seria uma espécie de tradutor manipulador, de que fala o estudioso francês Cyril Aslanov, que se encontra num “laboratório linguístico localizado na terra de ninguém entre a língua-fonte e a língua-alvo”, um lugar onde o público não pode penetrar.
Mas é a melancolia que parece ganhar destaque na reflexão do escritor acerca da atividade da tradução, que ele vê como “a arte de naufragar com dignidade e nobreza — e sobreviver ao mar profundo, aos saberes e dissabores corsários […]”, ou “nomadismo obstinado”.
Para Lucchesi, o tradutor, entre duas línguas, é “animal bifronte, exilado de uma terceira, marcado pelo não lugar, em círculo de incerta adequação, de que se torna prisioneiro”. E também antes de mais nada “um leitor à procura de uma voz”. Voz que o escritor irlandês Samuel Beckett procurou incessantemente não só quando escrevia ora em inglês ora em francês, mas quando se traduzia ora numa língua ora noutra e que está registrada em toda sua obra ficcional.
Dirce Waltrick do Amarante organizou e traduziu “Conversando com Varejeiras Azuis” (Iluminuras), uma antologia em prosa e verso do escritor inglês Edward Lear.