Tradução do livro “Problemas de Defectologia”, de Vigotski, chega ao Brasil
16 julho 2023 às 00h01
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Candice Marques de Lima
Especial para o Jornal Opção
A primeira vez que li os “Fundamentos de Defectologia” de Lev Semionovitch Vigotski foi em 2002, quando cursava o mestrado em Psicologia na Universidade Católica de Goiás (hoje PUC). Sob a orientação atenta do psicólogo cubano Fernando González Rey, Ádria Assunção, Cláudia Barreto e eu, que pesquisávamos educação inclusiva, fizemos a leitura de alguns textos do livro, em uma disciplina com ele e com nossa orientadora Mercedes Villa Cupollilo.
Fernando Rey nos tinha disponibilizado uma cópia do livro em inglês, com letras miúdas, difíceis de serem lidas. Mas que, quando lidas, o mundo parecia se abrir para mim. Vigotski tinha escrito esses textos na década de 1920; entretanto, a mim parecia que tinham sido escritos recentemente. À época, a bibliografia sobre inclusão escolar era escassa. E o detalhe é que o autor bielorrusso — quando escreveu a Defectologia, Vigotski era considerado psicólogo soviético — trazia ideias interessantes e diferentes das leituras que eu fazia sobre o tema. Ele não apenas escrevia em defesa de algo. Apresentava análises e observações que somente quem já o leu sabe da argúcia de seu pensamento.
A partir da experiência de Vigotski com a defectologia, palavra russa que significa estudos sobre as deficiências — até hoje utilizada na Rússia, e com crianças defectivas, ele escreveu textos que tratavam sobre o tema. Algumas de suas ideias eram sobre a necessidade de se colocar alunos com e sem deficiência para estudarem juntos; que a deficiência é um conceito social, pois a pessoa que nasce com alguma deficiência não tem consciência dela. Será somente depois que disserem a ela sobre sua condição e que significarem a deficiência como uma menos valia que ela perceberá sua situação. A criança que nasceu cega não vive em uma escuridão opressiva. Essa ideia é de quem enxerga, pois para aquela criança ser cega e não enxergar é uma condição normal.
Lembro-me de uma das aulas do Fernando que, ao ver que eu tinha entendido o conceito vigotskiano de supercompensação de maneira equivocada, me corrigiu e me explicou do que se tratava. Ali entendi que um mestre deve corrigir seu aluno. Não para que ele não pense por si mesmo. Mas para que compreenda uma teoria de outrem da maneira que aquela pessoa a escreveu. É certo que podemos nos apropriar de uma teoria e criar a partir dela, contudo, para que isso aconteça, é necessário que nos apropriemos adequadamente das ideias de seu autor.
Um parágrafo sobre Fernando Rey. Ele foi um professor especial, que marcou minha trajetória. Lembro-me do seu vozeirão, da sua fala em espanhol — pois, embora dissesse que falava portunhol, falava na verdade um castelhano com sotaque cubano, com as sílabas bem-marcadas. Foi por causa da sonoridade dele que pude ler em espanhol. Afinal, ele foi meu professor de psicologia e de espanhol ao mesmo tempo.
Foi Fernando quem também me apresentou o livro “Os Anormais”, de Michel Foucault. Ele sugeriu que o lesse e logo o adquiri e o li, utilizando-o tanto em minha dissertação, quanto em minha tese, finalizada em 2023. As primeiras aulas de Fernando para mim eram um redemoinho de informações. Eu, que havia terminado a graduação recentemente, a princípio tive dificuldades de acompanhar suas discussões sobre ciência, epistemologia, os conceitos que ele estava a produzir sobre sujeito e subjetividade. Eram verdadeiros seminários que Fernando nos oferecia. Ele falava e pensava e algumas vezes anotava algo em um papel. Talvez seja por isso que para mim seja difícil dissociar a teoria de Vigotski de Fernando, pois posso dizer que tive um mestre que estudou o psicólogo bielorrusso na União Soviética e que as ideias sobre Vigotski que chegavam eram de alguém que o leu em russo e conheceu os pensadores que haviam conhecido Vigotski.
Depois, reli Vigotski junto com Tálita Serafim. Ela estava fazendo mestrado sobre educação inclusiva e eu adquiri o livro em espanhol numa versão e-book, pois assim seria mais fácil traduzir e ler ao mesmo tempo. Tálita, como eu, é encantada com as ideias da defectologia e para ela devem fazer um sentido mais especial ainda.
Uns anos depois, soube que Zoia Prestes, filha de Luiz Carlos Prestes, estava a traduzir a defectologia para a língua portuguesa. Esperei anos por essa tradução, pois assim poderia ler com os alunos aquilo que Vigotski escreveu em russo, que havia sido traduzido para o inglês ou para o espanhol e ainda não tinha chegado por aqui.
Por esses dias, ao conversar com Alba Cristhiane Santana, uma estudiosa de Vigotski, soube que a tradução havia chegado… eu que estava no doutorado não havia me atentado para isso. Imediatamente solicitei o livro que chegou para mim nesta semana. Além da felicidade de ter uma tradução diretamente do russo para a língua portuguesa, é importante enfatizar que a tradução realizada pelas professoras Zoia Prestes e Elizabeth Tunes é de outra versão da defectologia. As edições em inglês e espanhol são oriundas das obras completas de Lev Semionovitch Vigotski publicadas em 1983. Estas obras publicadas na União Soviéticas são criticadas devido a certas imprecisões, cortes e interferências de seus organizadores.
A edição que Zoia Prestes e Elizabeth Tunes traduziram é de 1995, organizada por Tamara Mirrailovna Lifanova, uma incansável pesquisadora dos arquivos de Vigotski. Tal edição é mais fidedigna pois contém “praticamente todos os textos e/ou fragmentos de textos, palestras e livros que tratavam da Defectologia”. São 36 textos ao todo. As autoras da edição brasileira contam que receberam a edição em russo das mãos da neta de Vigotski, Elena Evguenievna Kravtsova. Elena lhes contou que Guita Lvovna Vigodskaia, sua mãe e filha de Vigotski, havia separado a edição para presentear-lhes, mas faleceu antes de poder entregá-la em mãos.
Zoia Prestes e Elizabeth Tunes destacam que queriam ter finalizado a tradução do livro “Problemas de Defectologia” com os 36 textos da edição russa. Todavia, devido a outras demandas com tradução de textos de Vigotski, decidiram publicar o 1º volume com sete textos e se comprometeram a publicar o restante dos textos em volumes com seis ou sete textos. Segundo as autoras, o leitor, dessa maneira, pode escolher quais volumes lhe interessam mais.
Eu, particularmente, espero adquirir e ler todos. Oxalá as tradutoras nos brindem rapidamente com os outros volumes.
Candice Marques de Lima é professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás. É pesquisadora de psicanálise e educação inclusiva.