Como interpretar a utilização transmidiática da mitologia viking? Esse fenômeno possui dois lados. Um é plenamente positivo, pois mantêm viva a mitologia mesmo tendo se passado séculos da Era Viking. O outro, é o perigo de se apresentar todo esse rico cenário de forma simplória, não dando a importância necessária para os documentos históricos

Chis Hemsworth, no papel de “Thor”

Mayara Stephane Gomes
Especial para o Jornal Opção

A mitologia nórdica está na moda. Thor, o Deus do Trovão, volta aos cinemas com o filme “Thor – Ra­g­narok”, dirigido por Taika Waititi, e com o ator Chris Hemsworth novamente como protagonista, dando mar­teladas nos inimigos e balançando a ca­beleira loira de comercial de shampoo. Em nossos tempos pós-mo­dernos, é comum usar temas do pas­sado para se fazer algo novo, um pro­duto para o consumo das massas: fil­mes, games, literatura etc. Atual­mente, a Marvel Comics e a Marvel Stu­dios se tornaram mestres nessa arte de realizar produtos midiáticos a par­tir de inspirações mitológicas. Cri­aram todo um universo ficcional ten­do como referência a cultura viking, a mitologia nórdica e seus personagens, como o poderoso Thor, o ardiloso Loki e Odin, o senhor onipotente de Asgard, a morada dos deuses.

A mitologia nórdica é composta por uma vasta gama de lendas e crenças dos povos escandinavos antigos, um espaço geográfico que abrangia Suécia, Dinamarca, Noruega e a Islândia. Em linhas gerais, podemos afirmar que mitos são histórias de caráter popular ou religioso que têm por objetivo a explicação de temas complexos, que escapavam do entendimento das pessoas comuns na época de seus surgimentos. Por exemplo, a existência do sol, da lua, das chuvas e até mesmo sentimentos e ações humanas, como o amor e a raiva, eram atribuídos a entidades mágicas que os produziam. Nada melhor do que um “deus do trovão” para explicar os misteriosos barulhos nos céus ou uma deidade da fertilidade para se pedir boas colheitas.

Essa utilização dos mitos pelo ci­nema, e também quadrinhos ou ga­mes, pode ser interpretados pelo que o teórico Henry Jenkins chama de trans­mídia. A noção de narrativa transmidiática possibilita adaptações de um conceito único para diversas mí­dias diferentes, permitindo que seu universo narrativo seja expandido. As­sim, utilizando a mitologia nórdica co­mo inspiração, o Thor da Marvel con­­quistou multidões de fãs, tanto a­queles que já o conheciam pela tradição mitológica escandinava, quanto pe­­las pessoas que não possuíam ne­nhum conhecimento da cultura viking.

Um exemplo interessante dessa tendência é o álbum em quadrinhos “Thor, contos de Asgard”, uma coletânea de narrativas curtas escritas por Stanley Martin Lieber, mais conhecido como Stan Lee, e desenhadas por Jacob Kurtzberg, também mais conhecido pelo seu nome artístico, Jack Kirby. Esses trabalhos foram publicados a partir de 1962, na HQ Journey into Mystery 83, revista onde Thor foi introduzido ao universo Marvel. Em 2015 à editora Salvat do Brasil organizou essa edição especial com a junção dessas diversas pequenas histórias secundárias de cinco páginas, incluídas ao final de outras HQ’s como bônus.

Stan Lee afirmou que, vendo que as pessoas se interessavam pelas mitologias grega e romana, apostou em aproveitar elementos da nórdica, procurando fazer algo diferente. Inicialmente, os leitores das aventuras de Thor não se interessaram muito pelas narrativas mais voltadas às raízes mitológicas do personagem. Porém, com o tempo o interesse foi se cristalizando, viabilizando a publicação dessa coletânea, que criou um pano de fundo muito rico para as nar­rativas principais, onde Thor enfrentava vilões poderosos em defesa da Terra. Dava mais sutileza e com­plexidade ao personagem. De um louro grandalhão segurando um martelo, ele se tornava, realmente, um deus antigo, adorado por um povo distante.

Nessas narrativas há reinterpretações de criaturas míticas, deuses e monstros. Apresenta a gênese do mundo, desde a formação de Asgard até Midgard, como é conhecida a Terra. A HQ também destaca outros ambiantes, como o Valhalla, o paraíso escandinavo, e o Hell, o equivalente ao inferno. Mostra os grandiosos Gigantes de Gelo e outras raças que convivem, em paz ou na guerra, com os deuses nórdicos.

O primeiro conto da HQ se refere a criação do mundo. Adapta o livro Gylfaginning, narrativa em prosa de Snorri Sturluson, escrita aproximadamente em 1220. Conta que no princípio não havia nem céu nem terra, mas apenas um enorme abismo sem fundo e vapor, onde flutuava uma fonte, chamada de “o poço da vida”, cujas águas eram convertidas em enormes blocos de gelo pelos ventos boreais. Ao sul, em sua extremidade, sentava-se o demônio de fogo Surtur, que soprando seus vapores quentes derreteu o gelo que havia se formado, e desses vapores formou-se Ymir, o maior e mais perverso gigante de gelo. Em seguida outra figura irrompe, uma vaca, chamada de Audumbla, que alimentou o gigante de gelo. Em seguida vieram os deuses. A vaca lambia o gelo para se alimentar até que um dia viu surgir uma cabeça de homem, ao segundo dia apareceu o tronco e ao terceiro o homem por inteiro. Era o deus Buri, o primeiro aesir (guerreiro), e esse teve um filho chamado Borr, que por sua vez teve três filhos: Odin, Vili e Ve.

Esses três deuses, liderados por Odin, mataram Ymir. De seu corpo fizeram a terra, com o sangue os mares, dos ossos ergueram-se as montanhas e dos cabelos foram feitas as árvores. Com o crânio fizeram o céu e o cérebro tornou-se as nuvens carregadas. Midgard, o nosso mundo terreno, foi formada da testa de Ymir.

O álbum “Thor, contos de As­gard” traz algumas narrativas biográficas, contando as histórias pessoais de personagens como Thor, Loki, Heim­­dall e Balder, todos parte do panteão principal dos deuses nórdicos.

O Thor da Marvel é um deus belo, loiro, cheio de honras e glórias, empunhando seu martelo mágico, chamado Mjolnir. Certamente é uma versão pensada para agradar ao grande público. O Thor da mitologia nórdica aproxima-se mais de uma estética viking histórica. É ruivo, de longas barbas, intelectualmente ingênuo e um tanto grosseiro. Esse Thor ruivo primordial, segundo as eddas, ou narrativas poéticas, guiava uma carruagem puxadas por dois bodes chamados Tanngjóst (“dente triturador”) e Tanngrisnir (“dendê perfurador”). Possuía um cinto mágico que aumentava seu poder e uma luva de metal para empunhar Mjolnir.

Na HQ a interação de Loki e Thor é instigante. Loki é irmão adotivo de Thor, sendo filho de Fár­bau­ti e Laufey, uma deusa simek, que in­teragia com as árvores. Suas origens estão ligadas ao reino dos gigantes de gelo. Loki, tanto na HQ quanto nas eddas poéticas e outros documentos, é sempre malicioso com seu irmão adotivo, tentando derrubá-lo da linha sucessória de Odin de todas as formas. Conhecido como o deus da trapaça e pregador de peças, chega a planejar a morte de Balder, o Bravo, o deus mais nobre e belo da mitologia nórdica. Se conseguisse, provocaria o fim dos tempos.

“Thor, contos de Asgard” apresente uma descrição de Asgard, o lar dos deuses, bastante fiel ao mito nórdico: ambos são parte da árvore do mundo, a Yggdrasill, e estão ligadas aos outros reinos pela ponte do arco-íris (Bifrost), guardada por Heimdall, conhecido por sua visão perfeita, audição apurada e lealdade a Odin. Mostra também o mundo de Va­lhal­la, onde os guerreiros que morriam honradamente em batalha eram conduzidos pelas belas Valquírias (valkyja), nome que significa “aquelas que escolhem os mortos”, ao “salão dos mortos”, onde passavam os dias divertindo-se em jogos de guerra, festejando até o dia do Ragnarok, o fim dos tempos da cultura viking.

A saga de Ragnarok foi muito discutida na HQ, sendo um dos principais eventos da cosmogonia do Thor da Mar­vel. Não por acaso, a Marvel Stu­dios vai lançar o novo filme do Thor ten­do o Ragnarok como pano de fun­do. Nos contos da HQ, o Ragnarok, em­bora seja uma ameaça eminente, não chega a ocorrer. É impedido pela união de Odin, seus filhos Thor e Loki, e os Três Guer­rei­ros: Hogun, o Severo; Fandral, o Ga­lan­te e Volstagg, o Vo­lu­mo­so. Des­ta­ca-se que esse trio não possui equi­va­lente na mitologia nórdica, sen­do uma criação da dupla Stan Lee e Jack Kir­by, com inspiração dos três mosqueteiros dos livros de Alexandre Dumas.

O mito de Ragnarok, diferentemente dos quadrinhos, que aposta na aventura escapista, é uma tradição complexa, ligada a conceitos de destruição e renascimento. Na narrativa mitológica, que se encontra nos textos chamados de Voluspá 44-66 (ou “profecia da vidente”), são relatadas lutas mor­tais onde gigantes de gelo, gigantes de fogo liderados por Surtur, mortos liderados por Loki, atacam violentamente Asgard. Elfos, anões e seres hu­manos também participam da batalha final. O resultado do combate é trágico e violento. Odin é de­vo­rado pelo grande lobo Fenrir. Thor morre ao derrotar a serpente de Mid­gard. Loki e Heim­dall se matam em um combate feroz. Sur­tur incendia todo o Universo. Dos res­tos surgem dois seres humanos e alguns deuses menores. Eles devem co­meçar tudo de novo, a fim de criar uma i­dade de ouro melhor do que as anteriores. Um tipo inusitado de “final feliz”.

Mas como interpretar a utilização transmidiática da mitologia viking? Esse fenômeno possui dois lados. Um é plenamente positivo, pois mantêm viva a mitologia mesmo tendo se passado séculos da Era Viking. Por outro lado, há o perigo de se apresentar todo esse rico cenário de forma simplória, não dando a importância necessária para os documentos históricos. Em todo caso, não se pode ignorar o potencial pedagógico da HQ “Thor, contos de Asgard”. O leitor pode se interessar pela cultura viking a partir de sua leitura, tomando-a como uma espécie de iniciação, indo posteriormente realizar pesquisas mais aprofundadas sobre a cultura e mitologia nórdica.

Mayara Stephane Gomes é historiadora, pesquisadora da cultura nórdica e coordenadora do blog “Irmandade Viking”.