Sonhus Teatro Ritual faz estreia internacional com espetáculo nos EUA

03 fevereiro 2019 às 00h00

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Nando Rocha apresentou a montagem “Lost in Translation” no Kirkland Performance Center, em Seattle: “A coisa mais louca da minha vida!”

No segundo semestre do ano passado, o diretor de teatro Fernando Rocha viu-se em uma encruzilhada. Estava diante de uma escolha duríssima, porém necessária. O Brasil, àquela altura, sentia os ânimos se inflamarem e as diferenças se acirrarem com a iminência das eleições de 2018 e em Goiás não foi menos problemático. As turbulentas mudanças sócio-políticas atingiram em cheio a cultura no Brasil e, aqui no Estado, afetaram diretamente Sonhus Teatro Ritual, grupo cênico do qual faz parte. Em meio a perseguições e ameaças, Nando, como é mais conhecido, chegou a ser agredido na rua. Foi a gota d’água para ele. Mas seguindo aquela máxima “quando a vida te der limões, faça limonada”, o artista partiu em busca de novos caminhos. E substituiu o pesadelo por um sonho: o sonho americano.
Neste fim de semana, Nando representou a Sonhus Teatro Ritual em sua estreia internacional, durante a encenação do espetáculo “Lost in translation”, no dia 1° de fevereiro, no Kirkland Performance Center, em Seattle, no estado norte-americano de Washington. O grupo já tinha em seu currículo parcerias com Alemanha, Japão e Argentina e se apresentado antes nesses países e também na Itália, Espanha, Portugal, Colômbia e EUA, mas esta é a primeira produção inteiramente produzida e estreada no exterior. “Montar esta peça tem sido a coisa mais louca da minha vida”, comenta, aos risos, o goiano. “Lembra meu começo no teatro, ainda adolescente, sem qualquer patrocínio”, recorda-se.
“Lost in translation”, ou “Perdido na tradução”, mostra justamente a dificuldade de traduzir não só a língua, mas comportamentos e o mundo, mesclando cenas cômicas musicais a expressões como mímica, clown, dança e o stand up comedy. Há também a participação de outros 12 artistas, entre músicos e dançarinos brasileiros e norte-americanos. A comédia musical agrega diversas experiências de Nando desde que chegou aos EUA, como as aulas de Inglês em uma turma de imigrantes e refugiados. Além de ter que se garantir no inglês, Nando também canta em persa, mandarim, espanhol, francês e, claro, português. “Tenho colegas paquistaneses, chineses, iraquianos. Eu me propus a conhecer melhor a cultura deles e eles me indicaram as músicas favoritas de seus países”, comenta.
Ator, cantor, diretor, professor e Mestre em teatro pela Universidade Federal de Uberlândia, Nando Rocha anseia que a apresentação seja um cartão de visita para novas parcerias. Segundo o diretor goiano, a recepção foi excelente e novos projetos já estão “no forno”. “Minha expectativa é que abra portas, não só para o grupo, mas para o teatro goiano e brasileiro em geral. Fora algumas tentativas, não há nada sendo desenvolvido na área aqui”, aspira.

180 graus
Apesar de descontraído, Nando revela que estes poucos meses no exterior não foram nada fáceis. “Chorava todos os dias quando cheguei, meu filho está aí. Eu nunca imaginei sair do país definitivamente, não fazia parte dos meus planos originais. Não tem sido fácil, mas tem sido engrandecedor. Tenho me encorajado com o apoio de várias pessoas que conhecia aqui. Artistas norte-americanos e mesmo de outros países; pessoas muito gentis e solidárias que têm me ajudado com a língua e em me estabelecer por aqui”, diz. Para esse afastamento, o ator precisou pedir licença de dois anos em seu cargo de professor concursado do Estado de Goiás e com o apoio do irmão, que já vivia nos EUA, parte para Seattle (WA) em agosto de 2018.
Desde as ocupações dos movimentos estudantis em escolas estaduais contra as OS em Goiás, em 2015, o trabalho do grupo Sonhus Teatro Ritual passou a ser alvo de perseguição e seu o espaço, localizado dentro do Colégio Lyceu, alvo de vandalismo. Nando deixou o Brasil em agosto do ano passado com medo, insegurança e angústia. O Lyceu foi um dos colégios onde ocorreram as atividades políticas mais intensas. O Sonhus apoiou a ocupação, com diálogos e atividades com estudantes, mas o grupo acabou em fogo cruzado, sendo mal interpretado pelos dois lados. Desentendimentos fizeram com que os movimentos estudantis desconfiassem que o Sonhus atuava como “infiltrado” do Estado. Já o governo passou a ter certa desconfiança da atuação do grupo. Foi quando o tormento começou.
O espaço sofreu depredação: invadiram o local e destruíram figurinos, cenários, refletores, a tenda de circo e chegaram a rasgar o banner com a foto de Nando. De outro lado, denúncias homofóbicas chegavam até a Secretaria Estadual de Educação (Seduce) que passou a endurecer as auditorias no espaço. Foram realizadas denúncias formais, por exemplo, de que o grupo incentivava os alunos a se tornarem gays e lésbicas e que abriam as portas para depravação de eventos LGBTQs (sic). A Seduce procedeu com sindicância interna, mas ao final nenhuma irregularidade foi identificada.
“Sensação horrível”
A fim de evitar as ações vândalas e as invasões, o Espaço Sonhus foi cercado por grades. “Uma sensação horrível. Nós chegamos ali para que o espaço fosse ocupado e não restrito”, diz Nando sobre o incômodo. Mesmo com a não comprovação das denúncias, Nando saiu abalado do episódio, chegando até mesmo a ser agredido nas ruas. O diretor não viu outra saída a não ser se afastar e buscar novas possibilidades para ele e para o grupo, e assim assegurar sua saúde física e principalmente psicológica.

Hoje, Nando está motivado e com muitos planos, mas entende que o momento é urgente para que as pessoas apoiem as iniciativas culturais e também para que a classe artística se una. “O encerramento das atividades da Quasar abalou a todos nós. Essa foi a primeira pedra que rolou dessa avalanche que está tomando todos nós”, compartilha o ator. Permitir que grupos de arte sejam perseguidos e espaços culturais vandalizados é, segundo Nando, permitir que sonhos não sejam mais cultivados.
Nando acredita que há uma tentativa de criminalizar a atividade artística e intelectual, que recorre não apenas à restrição de recursos, mas também à violência, que pode chegar a ser física, a exemplo do que aconteceu com o grupo. Ele também reforçou a importância das leis de incentivo, instrumento que também enfrenta descrédito e críticas da população.
“É lamentável o que acontece no Brasil. As pessoas não entendem o que, de fato, está sendo cortado. Quem nunca vai ao teatro e vê o sucesso de franquias como ‘Rei Leão’ ou ‘Fantasma da Ópera’, muitas vezes não entende que estes são produtos de um mercado milionário e geram muito dinheiro, não precisando de qualquer apoio para se manter. É o que acontece com artistas famosos, como os de sertanejo e funk, que estão na crista da onda, e já contam com patrocínio até de multinacionais, que se interessam pelo que vende fácil. Não há espaço para produções artísticas e intelectuais diferenciadas. É triste ver essa vertente que massacra outras possibilidades. É claro que leis, como a Rouanet, precisam de reformas para se tornarem mais democráticas. Mas acabar com as coisas não resolverá os problemas”, avalia.