A obra tem 302 páginas, mas conta com uma leitura fluida que logo chega ao fim

Também juiz, o escritor porto-alegrense cinzela com objetividade e certa crueza um mundo de seres humanos deprimidos ou tomados pela incerteza, que tentam se relacionar ou se sobrepor uns aos outros

“As grandes cidades convivem com a divisão entre as ‘zonas vigiadas’ e suas periferias. O uso de drogas e medicamentos é disseminado, sendo controlado por laboratórios. Implantes cibernéticos são uma realidade, aumentando capacidades e aptidões, como a de memória, para aqueles que conseguem arcar com os custos. Religiões e grupos terroristas alimentam-se do descontentamento e das diferenças sociais” – Daniel Nonohay

Nórton Luís Benites
Especial para o Jornal Opção

Já no início da leitura do livro “Um passeio no jardim da vingança”, de Daniel Nonohay, lembrei-me de um especial professor que tive na pós-graduação. Depois de cada raciocínio agudo bem concluído, meio que embalado pelo sentimento de ter provocado dissonâncias cognitivas em seus alunos, esse mestre repetia com voz rouca e sotaque carioca:

– Lembrem-se, meus caros, o mundo é mau, O MUNDO É MAU!

Porto-alegrense, o também juiz Nonohay arquiteta, em sua obra, um sombrio mundo futurista. Cobiça, individualismo, egoísmo, vilania, crueldade, violência, ódio, exclusão social, fanatismo religioso e terror funcionam como pulsões em um meio virtual e tecnológico, que é fundado na internet, ou em algo que ele chama de “rede”. No meio disso, seres humanos deprimidos ou tomados pela incerteza tentam viver/relacionar-se ou se sobrepor uns aos outros. Tem sexo também, claro.

Opa, ficou estranho colocar toda essa maldade no futuro diante do ano de 2016, que acaba de findar, com economia de combustível em avião que cai e mata muita gente, pena de morte de fato promulgada em presídios brasileiros à revelia da nossa Constituição, pessoas morrendo no mar quase no bico da bota da Itália, caminhão jogado contra o povo que se encontra em feira de Natal na Europa e etc.

Pensando bem, faz pouco, pois foi em 1924 que Thomas Mann escreveu, na célebre obra “A Montanha Mágica”, que o “segredo e a existência da nossa era não são a libertação e o desenvolvimento do eu. O que ela necessita, o que deseja, o que criará é – o terror”.

A obra de Nonohay é “buenísima”, como dizem os portenhos. A escrita é cinzelada com objetividade, com alguma crueza, mas sem perder elegância. Fica claro que o autor não quer desperdiçar o tempo de seu leitor. Apesar disso, o livro tem 302 páginas, cuja leitura voa. Sim, é daquelas histórias magnéticas, que fazem o cara varar a madrugada ou gazear a musculação para terminar de ler. A história tem uma galeria de personagens finamente descrita. Alguns logo viram nossos queridinhos, o que faz doer mais ainda quando eles sofrem – e como eles sofrem. Tem Amanda, que mereceu os seguintes pensamentos do Pastor, um homem de fé e com fibra pra resistir ao profano:

A partir de determinado momento, soube que perdera sua isenção. Não tinha como a descrever e analisar em termos absolutamente objetivos. A presença dela era algo que não se podia ignorar. Não se tratava de beleza, embora ela fosse uma mulher muito atraente. Era algo mais. Indefinível. Os homens não ficavam indiferentes a ela; o olhar insistia em voltar para seu corpo, para seus gestos. Ela exigia atenção, mesmo sem o fazer.

Acho que autores não devem gostar de resenhas com spoilers, mas, lamento, da Amanda a gente tinha que falar um pouco. O protagonista é Ramiro, um advogado tomado contraditoriamente pelo desânimo e pelo ódio, que adora tecnologia e que fez um implante cibernético no cérebro, o que lhe permite navegar quase sem limites pela “rede” e acessar e gozar de um imensurável fluxo de informações. Eis sua autoimagem:

Desde garoto, nunca fora um sujeito popular. Não era tímido ou retraído. Conseguia me deslocar bem no meio social, tinha amigos e conhecidos, mas me faltava a capacidade de cativar. Fundamentalmente, não tinha o dom ou desenvolvera a arte de provocar o amor.

Daniel Nonohay: a obra se setoriza como em um roteiro fílmico em “descronologia” | Foto: Reprodução

A tecnologia futurista é um elemento essencial do livro, contudo, ela não parece aliviar muito a doce e dolorosa experiência humana. A propósito, tecnologia “‘é a resposta, mas qual era a questão?’ […] CEDRIC PRICE (1979) […] Frase inscrita num button que se tornou popular na década de 1970” – citação de Eduardo Giannetti, em “O livro das citações: um breviário de idéias replicantes”.

Nonohay fala muito do humano, de suas contradições, sentimentos, das fraquezas e fortalezas. E faz essa coisa – acho que é filosofia – escrevendo ficção policial e científica. E, bem acompanhado, não seria heresia cogitar que foi mais ou menos isso que Ridley Scott fez em “Blade Runner”. Falando nisso, o livro tem uma dimensão cinematográfica latente. Está setorizado como num roteiro em “descronologia”. Parece pronto para ser filmado.
E Nonohay é um cara com senso de humor. Tem uma passagem em que o Pastor aborda Rogério, um pândego ébrio, oferecendo-lhe uma dose de uísque:

– Posso sentar?
– Claro. Quero confessar que, se a tentativa é de me converter, tu começou bem.

Alonguei-me, é hora de finalizar. O que eu queria compartilhar mesmo é que o livro “Um passeio no jardim da vingança” é literatura de qualidade, tem filosofia, mas com diversão, com fluidez (flow). É uma ficção brasileira a serviço do prazer de ler.

Nórton Luís Benites é natural de Porto Alegre. Além de juiz federal, professor e pós-graduado, é autor de artigos e livros técnicos na área do direito