O ator Bradley Cooper, conhecido por suas atuações em comédias românticas ou pastelões como da série “Se beber não Case”, dá vida a este contraditório Chris Kyle, chamado na tropa pelo codinome “a lenda”, ou seja, um verdadeiro herói de guerra americano. E Eastwood não perdeu a oportunidade de explorar esta faceta do personagem.

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Frederico Vitor

Atirar contra uma criança iraquiana, que está prestes a arremessar uma granada de fabricação soviética contra uma patrulha de fuzileiros navais americanos, é um drama cuja decisão se divide entre o dever patriótico e o senso de piedade de qualquer ser humano de boa alma.

Este é o dilema central de “Sniper Americano”, do premiado e bajulado diretor Clint Eastwood, que filmou a adaptação do livro American Sniper: The Autobiography of the Most Lethal Sniper in U.S. Military History, escrito pelo atirador de elite da Marinha americana, Chris Kyle.

Morto em circunstâncias trágicas, em fevereiro de 2013, aos 38 anos — foi assassinado por um ex-militar em um campo de tiros —, Chris Kyle nasceu e foi criado no Texas. Integrante da tropa de elite da Marinha dos Estados Unidos, Navy Seals — a unidade mais prestigiada do elenco das forças especiais estadunidenses —, Kyle teve sua vida marcada por idas e vindas ao campo de batalha no Iraque.

Seu maior drama é o protesto de sua mulher, Taya, vivida no filme com grande qualidade por Sienna Miller, que usa seus dois filhos para pressioná-lo a dar baixa do serviço ativo. Ela não suporta a ideia do marido dividir a vida entre a família e o rifle de precisão, seu instrumento de trabalho, com o qual obteve, entre 1999 e 2009, o maior número de tiros bem-sucedidos da história militar norte-americana, confirmado oficialmente pelo Pentágono: 160.

O ator Bradley Cooper, conhecido por suas atuações em comédias românticas ou pastelões como da série “Se beber não Case”, dá vida a este contraditório Chris Kyle, chamado na tropa pelo codinome “a lenda”, ou seja, um verdadeiro herói de guerra americano. E Eastwood não perdeu a oportunidade de explorar esta faceta do personagem, que é imerso nos valores da América do Norte: a caça, os rodeios, o chapéu, a fivela de cowboy e a conservadora formação cristã de uma típica família patriarcal sulista cujo lema é “defender uns aos outros.”

Motivado a entrar na Marinha após assistir duas embaixadas americanas na África serem explodidas por terroristas, Kyle é submetido ao duro treinamento no estágio de admissão no Navy Seals. O filme explora: seus primeiros tiros no campo de provas, onde seu dom de acertar alvos a longas distâncias e com precisão é revelado a seus superiores; o início do relacionamento com sua esposa; e a primeira missão no Iraque invadido por tropas americanas em 2003, dois anos após os atentados de 11 de setembro. Todos esses são elementos importantes do desenrolar da trama.

Taya é a testemunha mais próxima das transformações do marido de um simples cowboy texano numa verdadeira lenda militar. Entretanto, juntamente com a áurea de herói americano, surgem os efeitos colaterais da guerra, como surtos psicóticos e delírios paranoicos. A guerra, a qual Kyle conseguia dominar no início, passou a dominá-lo. Os sons de tiros, gritos desesperados e explosões tomam conta de sua mente.

Os horrores e as brutalidades de um conflito que é travado de casa em casa, de quarteirão a quarteirão, o obceca. Eastwood lança sobre as telas a carnificina de uma guerra perdida. A imoralidade de um extremista islâmico, que mata o filho de um colaborador iraquiano das tropas americanas, perfurando seu crânio com uma furadeira, atesta que a guerra ao terror é justificável, porém uma luta tão suja que, ao final, não poderá ser comemorada por ninguém.

Duelo

O duelo entre Kyle e Mustafá, um radical sírio que ganhou uma medalha olímpica por suas habilidades no tiro, foi outro “lance” do filme, servindo de prato cheio para um diretor que sabe, como poucos em Hollywood, massagear o ego da alma americana. Nada mais excitante do que retratar o confronto entre um cowboy texano e um atirador árabe. Ambos são, para seus respectivos povos, ícones de heroísmo, a personificação da coragem e tenacidade, símbolos de resistência e força.

Na medida em que Mustafá se move como um espectro pelos telhados de Fallujah, Iraque, liquidando um a um os colegas de Kyle, mais o herói americano se deixa sucumbir pela guerra. Para ele, cada morte de um irmão de farda é um motivo a mais para permanecer no Iraque. Afinal, quanto mais estende sua permanência nas areias do deserto, sua casa e a família ficam mais distantes. Nesta altura, o Texas é apenas uma miragem representada pela bandeira da estrela solitária pendurada na parede de seu alojamento no acampamento dos marines — os fuzileiros navais americanos.

A qualidade técnica do filme salta os olhos pela riqueza de detalhes ao ambientar a guerra e o universo militar americano. Os cenários, fotografia e efeitos são praticamente impecáveis; a cena da batalha em meio à tempestade de areia tem uma qualidade magnífica. A atuação de Cooper não chega a ser excepcional, mas dá para notar que o ator cresceu ao se entregar completamente ao personagem, como ter ganhado 18 kg de massa muscular para se assemelhar fisicamente ao corpulento Chris Kyle. Tanto que a interpretação lhe valeu uma indicação ao Oscar de Melhor Ator.

“Sniper Americano” não é a obra prima de Eastwood, não está no mesmo patamar de “Gran Torino” tampouco de “Menina de Ouro”. Porém, o filme que leva sua assinatura teve seis indicações ao Oscar (Melhor Filme, Melhor Ator, Melhor Roteiro Adaptado, Melhor Edição, Melhor Edição de Som e Melhor Mixagem de Som), embora tenha recebido apenas uma estatueta por Edição de Som.

Talvez “Sniper Americano” tenha sido aclamado pelo público por reforçar o já surrado enredo de conflitos morais envoltos a um personagem viril, mas ao mesmo tempo de psicológico frágil. Ou pode ser uma provável justificativa de que os americanos precisam agradecer a Deus por seus soldados combaterem a ameaça real e latente do extremismo, nas montanhas do Afeganistão ou no deserto cercado pelos rios Tigre e Eufrates, mesmo que o saldo da aparente paz doméstica custe a vida de milhares de jovens. Seja lá qual for a interpretação, o longa é um “tiro” preciso de Eastwood nos dilemas americanos das primeiras décadas deste século.