André Kondo

Após excursionar por terras estrangeiras, pela França, Bélgica e Itália, em “A Descoberta de Tales”, e pelo passado, ambientando o romance “O Aprendiz de Tiradentes” durante a Inconfidência Mineira, Simone Athayde se aproxima de sua terra goiana e de tempos assustadoramente contemporâneos em seu novo romance “O Chão Sobre as Águas” (Alcaçuz e Telucazu Edições, 220 páginas). Mas, antes de chegarmos a este lançamento, é preciso falar um pouco sobre seus trabalhos anteriores, começando pelas suas obras infantis.

Em “A Pescaria dos Sapos”, uma malograda pescaria se torna uma divertida confraternização entre os sapos. Tanto em “A Missão de Florbela” e “O Girassol “Que Só Olhava Para Baixo” vemos o protagonismo dos girassóis, com o ciclo da vida que se renova no primeiro e a inclusão do girassol “diferente” no segundo. Também há “O Espelho Amalucado”, em que nos defrontamos com o reflexo de nossas ações. Em todas estas obras, observamos uma escritora que conhece as decepções, as tristezas e as maldades do mundo, mas que, mesmo assim, extrai de tudo isso algo positivo e edificante. O idealismo de Simone encontra terreno fértil em suas obras infantis, mas também se expande em sua literatura para, digamos, os adultos.

Em “O Aprendiz de Tiradentes” Simone nos empresta a vida de Hélio, para que nos tornemos parte de um importante momento histórico para a nossa identidade nacional. Mais do que isso, para a nossa identidade humana. Assim, somos nós os aprendizes de Tiradentes, em busca da liberdade para nossas existências. O romance histórico, fruto de minuciosa pesquisa e engenhosa habilidade ficcional, é entremeado com realidade e ficção, com uma urdidura tão convincente que não há mais como separar um do outro. Somos nós os inconfidentes, mas também os acovardados, os que se envergonham por se submeter a um sistema corrupto sob o jugo de uma exploração desumana.

Assim, morremos um pouco ao fim do romance. Aliás, é incrível como Simone consegue capturar nossa atenção, em um enredo cujo desfecho já é bem conhecido e documentado em todos os livros de história, que estudamos nas escolas. Sua escrita ultrapassa o frio relato histórico, como se pudéssemos sentir na pele a gratidão do personagem Tempestade, o amor entre Joana e Tiradentes, entre Hélio e Anna, entre Tomás e Maria Dorotéia/Marília, a arrogância de Luís da Cunha, o egoísmo de Silvério, a crueldade de Parada/Padela, e características várias de  tantos personagens inesquecíveis, todos reais, mesmo os criados pela mente de Simone, pois que ela nos entrega cada um deles com uma alma, e a alma é o que confere veracidade à vida.

Todos que já passaram pela histórica imersão de “O Aprendiz de Tiradentes” podem pensar que sabem bem o que esperar do novo romance de Simone, mas até estes irão se surpreender com a qualidade narrativa de “O Chão Sobre as Águas”.  

O novo romance é demarcado por três partes: “O Continente”, “A Ilha” e “A Nova Terra”. Em cada etapa da jornada testemunhamos a vida em constante transformação, acompanhando o subir das águas de uma represa que aprisiona (mas também liberta) o improvável casal Jorge e Fabiana, junto com a “Vó”, entidade quase ancestral de sabedoria sobre as coisas do chão, das águas e do céu. É uma ruptura do continente, a sociedade com suas ganâncias e vícios coletivos, para a ilha, representado pelas individualidades do casal, pontos antagônicos, a alma do campo de Jorge contra o espírito citadino de Fabiana, conjurados a ocupar a mesma porção de pó cercada por solidão por todos os lados. A “Vó”, por sua vez, é a alma universal, a representação humana da mãe-terra, que cuida de tantos filhos, sejam pródigos ou não.

No começo do romance, Simone proclama que “vez por outra, na vida de alguém, há um momento de revelação, ao qual poucos, pouquíssimos, darão alguma atenção. É como um resquício de algo sobrenatural, se é que se queira acreditar em tais coisas mágicas, um momento sutilíssimo que anuncia uma mudança, boa ou ruim, mas sempre profunda nas engrenagens do destino.”

E é assim. “O Chão Sobre as Águas” é um romance que traz o líquido destino, que tanto pode saciar nossa sede de vida, quanto nos afogar em sua morte. A vida a que me refiro é a sua, a minha, a de qualquer cidadão que percorra a existência com sua bagagem de sonhos, de lutas, de alegrias e de tristezas. E a morte é a transformação inevitável, o ponto em que esta bagagem nos é roubada, em alguma estrada cujo destino desconhecemos, é a perda de nossas convicções, nossas certezas e nossos desejos, diante de algo maior, inominável, alheio a quem somos (ou fomos). É o temor da mudança, que, por vezes, nos leva ao nosso destino real, seja ele bom ou mau, como nos lança a autora desde o início do romance. 

Há livros que existem apenas no papel, cumprem sua missão de nos trazer histórias. Mas há outros que retornam à sua essência à medida que são lidos. O papel se torna celulose, volta à textura da madeira, abre os galhos sobre nós, proporcionando sombra, perfumando nossas vidas com suas flores, alimentando nossa imaginação com seus frutos. Ao final, enraízam-se em nossos peitos, assim, nós, leitores(as) nos tornamos o substrato de uma história que viverá em nós até o fim de nossas existências. E além. Quando o chão já estiver sobre nós, esta história continuará enquanto houver uma viva alma que possa se encantar com este eterno “O Chão Sobre as Águas”.