Símbolos da Sacralidade: a rememoração da Paixão de Cristo

07 abril 2019 às 00h00

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Certos vestígios considerados sagrados foram identificados como dos últimos momentos antes da crucificação. Fragmentos são símbolos essenciais do cristianismo
Renata Cristina de Sousa Nascimento
Especial para o Jornal Opção
A Semana Santa tem por objetivo principal rememorar a morte e ressurreição de Cristo, revivendo em outros espaços a dramaticidade das narrativas dos Evangelhos. A Cidade de Jerusalém, palco dos acontecimentos, foi incorporada a partir do século 4 como cidade santa dos cristãos, e neste espaço delimitou-se os locais considerados sagrados.

A peregrinação de Helena (326), mãe do imperador Constantino, foi fundamental para a inventio de uma geografia sublime, ligada à memória épica do cristianismo. A cidade tornou-se um novo centro de santidade cristã, que permitia aos devotos uma espiritualidade táctil e visível. A atração pela santidade de Jerusalém contribuiu para que monges oriundos de toda a cristandade desejassem viver na região. Em toda a Terra Santa foram instituídos espaços de devoção cristã. Foi necessário ao cristianismo, enquanto religião reconhecida e incorporada ao Império Romano, o estabelecimento de uma identidade própria.
A ligação a um passado histórico garantia força e legitimidade, por intermédio de uma aura mística. A construção da Basílica do Santo Sepulcro, que incorpora o local da crucificação e do sepulcro de Cristo, deu vitalidade à arqueologia simbólica. Assim como em Jerusalém, outras cidades imperiais de renome ampliaram as demarcações cristãs. Em Constantinopla e Roma foram edificados diversos santuários. Na cidade eterna ao redor dos supostos locais sepulcrais de heróis do cristianismo (como dos apóstolos Pedro e Paulo), constituíram-se igrejas e centros de peregrinação de prestígio. Homens e mulheres dirigiam-se a estes espaços em busca de uma experiência emocional singular. A espiritualidade abstrata tornou-se concreta.
Cidades recriaram uma toponímia espiritual
Pelo desejo de aproximação a uma sacralidade palpável reinos e cidades recriaram em seu território uma toponímia espiritual, tendo Jerusalém como modelo. A Via Dolorosa foi teatralizada e inserida nas rememorações da Semana Santa em todos os lugares de devoção cristã. Tradicionalmente ela inicia-se na Porta de São Estevão na Cidade Velha de Jerusalém e termina na Basílica do Santo Sepulcro. Esta tradição teria sido fomentada e formalizada na Idade Média, mas sua origem histórica exata é bastante complexa.

No século 4, a viajante-peregrina Egéria nos oferece uma narrativa pormenorizada das festividades ocorridas em Jerusalém durante toda a Semana Santa. Um dos momentos áureos era a oportunidade dada aos fiéis durante a Sexta Feira da Paixão de beijarem a Santa Cruz, debaixo da vigilância dos diáconos.
Segundo a peregrina este cuidado especial com o objeto deve-se a um fato bastante peculiar: “E porque se diz que, não sei quando, alguém deu uma dentada e roubou um pedaço do Santo Lenho, por isso agora os diáconos, que estão à volta, vigiam assim, para que ninguém ao aproximar-se se atreva a proceder-se assim de novo”. Êxtase profundo que levava os fiéis a extremos. A morte e ressurreição de Cristo é a história central e mais sublime da narrativa cristã.
Conforme a Legenda Áurea (escrita no século 13 pelo arcebispo de Gênova Jacopo de Varazze), a humilhação sofrida pelo Messias foi ultrajante por cinco motivos: ter morrido na cruz e na companhia de ladrões; por ser inocente das acusações a ele injustamente imputadas; ter sido traído por seu próprio povo; ter sido flagelado, mesmo possuindo um corpo frágil; sofrer imensa dor, tanto física quanto emocional. De acordo com o texto “em primeiro lugar sofreu os olhos, porque chorou…” A história de dor foi transformada em júbilo, pois a centralidade do discurso cristão é o sacrifício de Jesus pela salvação da humanidade.
Objetos associados à vida terrena de Cristo foram redistribuídos em toda a cristandade, sendo passíveis de falsificações e roubos. Estas relíquias de grande valor espiritual ainda possuem prestígio especial como o Santo Sudário de Turim (Itália), A Coroa de Espinhos (hoje em Notre Dame de Paris); O Volto Santo de Manoppello (Itália); Sudário de Oviedo (Astúrias-Espanha); a Túnica Santa (Alemanha).
Estes vestígios considerados sagrados foram identificados como participantes dos últimos momentos antes da crucificação. Independentemente de sua autenticidade comprovada, tais fragmentos são símbolos essenciais da história do cristianismo. Também partes do Santo Lenho, dos pregos da crucificação, e de diversos outros objetos como o cálice da última ceia se multiplicaram, sendo espalhados em vários santuários.
Os tesouros foram adornados em relicários especiais, e atraem grande número de peregrinos. Para os fiéis estes vestígios constituem um modo de encontrar Deus de forma palpável, no mundo natural. Elo com o passado, o mapa das peregrinações incluía espaços singulares, desenhando caminhos trilhados com fervor pelos fiéis.
Renata Cristina de Sousa Nascimento é professora da UFG, PUC e UEG.