Como lidar com o Brexit? Talvez só um grande dramaturgo, da estirpe de William, tem condições de dissecá-lo a contento

De Stuttgart, Alemanha — Despertei aturdido de um sonho. Retrocedera no tempo e tinha viajado a Stratford-upon-Avon, nas imediações de Birmingham, no aprazível condado de Warwickshire, onde passara venturosos anos de minha infância. William, meu companheiro da época, me aguardava. Tínhamos a mesma idade e, nos meses de verão, vagueávamos pelos verdes campos; subíamos as colinas e, lá do alto, espreitávamos o vai e vem das carruagens nas ruelas de Stratford; deleitávamo-nos com o tênue anilado do Avon que se esgueirava pela cidade e seguia serpenteando o seu caminho através da planície até perder-se nos confins do horizonte. Infelizmente o destino nos separou. O contato jamais esmoreceu e a nossa amizade persistiu.

Cedo tornou-se conhecido. Acompanhei sua carreira com interesse. Não demorou tornou-se famoso até nos condados vizinhos e em Londres, Oxford e Cambridge o povo acorria em massa aos teatros para assistir a seus dramas e comédias. Enviava-me sempre um exemplar de sua última obra. Li todas, seus dramas, tragédias, comédias e sonetos. Preservo-as como relíquias, junto com suas cartas nas quais nunca esquecia de lembrar de nossas traquinices da infância. Mantive, durante todos esses anos, a posse dessas preciosidades em segredo para não despertar o interesse de colecionadores e a ganância de antiquários e demais mercadores.

Saí do albergue em boa hora da manhã e caminhei em direção ao Stratford’s Historic Spine, o núcleo antigo da cidade que os espanhóis chamam de “cascuo antigo de la ciudad” ou, simplesmente, “cascuo antigo”. Enveredei pela Henley Street, a mais antiga de Stratford. Quis ver, mais uma vez, a casa na qual o amigo William nascera em 1564 e onde com ele tantas vezes entrara. Lembro-me dos aposentos no andar térreo e da larga escada de madeira que dava aos do andar superior, da fachada em enxaimel e das janelas com vidros quadriculados em várias cores; recordo-me de seu amplo quarto com cama, escrivaninha e  considerável estante repleta com livros até ao teto e outros tantos empilhados no chão e mesmo no parapeito das janelas. Lembro-me das inúmeras vezes que me mostrara alfarrábios em latim, originais de Cícero, Júlio César, Sêneca, Marco Aurélio, Suetonio, Gaius Lucilius e outros autores romanos e gregos que se me escaparam da memória.

Segui perambulando pela mesma rua em cuja continuação ainda restam inúmeras casas do século 15. Passei pela Clopton Bridge, uma ponte de arcos de 1480 que antes tinha sido de madeira, assim chamada em memória de Hugh Clopton — que a financiara.

Demorei-me algum tempo sobre a ponte ouvindo o borbulhar sonolento do Avon ao encontro das colunas. Fascinei-me com os redemoinhos que rodopiavam na superfície cristalina das águas serenas. Um cisne aproximou-se da margem à procura de sua companheira — que em terra firme, protegida entre altas gramíneas e gravetos, cuidava dos filhotes. Ao longe ouvi o badalar dos sinos de uma igreja que ressoavam com os mesmos acordes nostálgicos de minha infância. Devaneei-me em profundas reminiscências subitamente interrompidas pelo tropel de cavalos e o ranger das rodas de duas carruagens que se aproximavam da ponte.

Continuei minha jornada envolto em pensamentos, sempre seguindo a Henley Street. As casas já eram esparsas quando avistei, ao longe, dois vultos sentados num banco debaixo de um frondoso carvalho em cujo fundo se descortinava vasto relvado num verde intenso que parecia reluzir à luz do sol. Ao aproximar-me reconheci-o. Era ele, William, com seu novo secretário que ainda não conhecera.

Abraçamo-nos e cumprimentamo-nos efusivamente. Pediu-me que sentasse, indicando-me um lugar no banco. Notei que ambos mantinham em suas mãos espesso maço de folhas manuscritas. Ao ver um tinteiro, uma régua e demais utensílios de escrita no assento do banco, imaginei que estivessem trabalhando.

— Não quero interromper, observei.

— Estou dando os últimos retoques em uma tragédia que já me custou quatro anos de trabalho. Ainda não tenho título, mas talvez a denomine simplesmente “Macbeth”. Já a teria concluído há algum tempo mas Archibald, este meu novo secretário, vive implicando comigo. Não raro julga necessário alterar passagens inteiras minhas e impor a sua versão. Há pouco repreendi-o: “Caso aceitar a tua versão, não permitirei que o nome de Shakespeare apareça na capa”.

Rimos. Também Archibald esboçou um sorriso disfarçado. Continuamos a conversa relembrando tempos passados. Era quase meio-dia quando William observou: — Se seguires por esta mesma via você vai chegar a Holy Trinity Church na periferia da cidade. Você deve lembrar-se da Trinity Church. Mas o que você não sabe é que é lá que repousam os meus restos mortais. Não fui eu que escolhi o local, mas afinal lá estou sem que eu saiba por quê e nem sei se mereço o sono eterno naquele ambiente cristão. Uma lápide com meu nome indica o lugar. Além disso, você verá um busto que dizem ser meu. Santo Deus! Coisa sem estilo, sem gosto, nem eu me reconheço.

— William, vou até lá. Mas antes de seguir gostaria de lhe fazer uma pergunta que me preocupa: o que você acha do Brexit? Não seria isto um tema para você?

— Brexit! Brexit!, observou William, pondo o indicador na testa ao mesmo tempo que fitava as alvas nuvens que luziam no céu azul sobre Stratford-upon-Avon. Após longa pausa comentou: — Em verdade, já pensei nisso, mas também eu cá tenho um problema com o Brexit!

— Qual é? Quis saber.

— Não sei como abordá-lo! Como tragédia? Ou comédia? O que você sugere? Talvez tragicomédia?

Não respondi. Permanecemos em silêncio. O único ruído que se ouvia era o das folhas do carvalho farfalhando ao vento das colinas de Warwickshire.