Um coração com defeito

Sara Tavares

Especial para o Jornal Opção

Olha só, veja bem… quanta loucura. Abri a porta da geladeira e encontrei meu próprio coração batendo em cima de um prato azul.

Azul? Azul era o prato ou o coração? Eu já não sabia. Estava frio como a morte. A geladeira ou o prato? O coração. Era frio, mas ainda batia. Batia forte como chuva no telhado em noite de tempestade. Mas do que adianta bater assim se não tem onde ficar? Era duro pensar que aquele coração não tinha lugar. De onde eu o tirara? Como viera parar ali? Era de fato meu aquele coração?

Olhei para meu peito à procura do meu próprio coração, mas ele não estava lá. Havia um oco visível em seu lugar, dilacerado até o fundo do meu tórax, numa violência tal que não poderia estar de pé. Mas eu estava. Eu andava. Respirava. Meu corpo inteiro funcionando muito bem, obrigada.

Fiquei alguns minutos ali, de pé, em frente à geladeira, tentando entender os fatos. Sim, era um coração, batendo compassado, num prato azul — ou azul o coração? Não importa.

Levei-o para a mesa. Já estava com os talheres na mão. Não. Essa história eu já sei como termina.

***

Ouço um barulho às minhas costas — um arrastar de pés, um roçar de pano. Me viro apenas para presenciar uma cena ainda mais chocante que meu próprio coração na geladeira.

Ora, ora! Um rapaz também sem coração. Seu peito, aberto como o meu. Suas roupas, rasgadas como as minhas, e eu consigo enxergar dentro de seu peito.

Coloco minha mão inteira dentro daquele buraco oco, escuro… vazio. “Veja só como minha voz faz eco dentro dele”.

Ele não se incomoda em me ver gritar e observar o barulho, e colocar minhas mãos naquela parte sem vida de seu peito, como se aquilo fosse nada. Olho para ele e depois para a mesa. Tive uma ideia.

***

Peguei nas mãos o coração, ainda gelado, e coloquei em seu peito. Veja só! Encaixe perfeito.

Ele olha aquela cena como se também não fosse nada. Me vê fuçando seu peito e nada diz, nada tenta. Droga. Será que coloquei errado meu coração no lugar do dele? Vai funcionar perfeitamente?

***

Ele tem um defeito. Não consegue me obedecer. Acho que meu coração não funciona tão bem no lugar do dele.

Retrato de um coração de Christian Schloe
Retrato de um coração, de Christian Schloe | Foto: Reprodução

Não come direito, vive pelos cantos choramingando alguma coisa. Acho que deixei algum fio solto quando coloquei meu coração no lugar. Lava os pratos mecanicamente e nunca me olha com ternura. Ontem mesmo fiz o jantar e ele comeu muito pouco e de mau gosto. Não gosto dele assim. Na verdade eu nem o conheço. O adotei naquele dia apenas pela curiosidade em saber se aquele coração ainda funcionava. Mas pelo visto está quebrado, não funciona tão bem assim.

Vou retirá-lo hoje à noite quando ele voltar do trabalho.

***

Tentei retirar meu coração de seu peito. Ele não deixou, reagiu com violência. Violência tal que eu nunca havia visto antes. Antes era só mecânico, como um robô com algum defeito. Agora ele me olha de soslaio, desconfiado, toda vez que me aproximo. Não quer saber de eu encostar nem tocar nele, ou fazer qualquer menção sobre esse fato. Não me deixa retirar o coração.

É assustador como, de repente, ele parece se importar com tudo que faço. Antes eu podia colocar minha mão inteira dentro de seu peito.

Era para ser apenas um coração com defeito.

***

Tenho a sensação de que aquele coração não é meu. Não é não. Meu coração nunca teve esse defeito. Talvez ele próprio tenha tirado e colocado na geladeira. Eu não sei. Não gosto de contar essa história. Me incomoda profundamente. Prefiro procurar meu coração, talvez esteja escondido em algum lugar pela casa.

***

Eu achei. Achei meu próprio coração.

Estava no banheiro, escondido na caixa d’água do sanitário. Um lugar horroroso para se esconder um coração.

“Como eu sei que é meu próprio coração?” É complicado responder. Senti que era assim que o vi e, quando o toquei, tive certeza.

Ele estava todo molhado e saí com ele pingando pela casa inteira. Sangrava. Não foi somente água que ficou no chão. O rastro que me acompanhou até o quarto trilhou caminho para que ele me encontrasse.

***

Eu tentei esconder. Tentei defender meu coração dos ataques dele. Mas, veja. O que ele fez não se faz com ninguém. Tomou meu coração das minhas próprias mãos, à força, e pisou nele até esmagar por completo. Até ele parar de bater. Então foi embora e me deixou lamentando com um coração morto aos meus pés.

Aquilo me deixou irada. Quanta audácia, quanta má vontade ele tivera. Quanto desdém pelo coração que eu lhe dera. Ele matara o meu, e agora vou pegar o dele de volta.

Esperei ele dormir.

***

Fui até a mesa da cozinha. Peguei a faca que me servira de companhia no jantar. Eu não lavara os pratos nem retirara a mesa, ele tampouco se dera ao trabalho.

Rasguei seu peito ali na cama. Tão pouco sangue se espalhara pelos lençóis que me pareceu ele não ser nada além de um sonho, uma visão que eu mesma projetara.

Mas não. Ele estava ali, e estava novamente com o peito aberto. Seu coração, tão frio quanto ele próprio, já começava a apodrecer. O devolvi à geladeira.

Minhas mãos, ainda ensanguentadas, foram à procura de alguma coisa para se limpar. Meus olhos, no espelho do banheiro, me fizeram lembrar de algo que eu havia esquecido.

A água do sanitário o servira mais uma vez e o mantivera longe de seus olhos. Pude retirar novamente dali o meu próprio coração. Não sei se, por pena ou por amor, o destino devolvera um pequeno batimento ao meu coração.

Ainda molhado e sangrando, eu o coloquei no peito. Talvez, por sorte, ele ainda viva.

***

Agora, veja bem quanta loucura. Abri a porta da geladeira e encontrei meu próprio coração batendo em cima de um prato azul. Como pode isso ter acontecido?