Série Contos da Pandemia (9): Desde as altas madrugadas, de José Fábio da Silva
10 julho 2021 às 11h43
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O mundo era o mesmo e ainda assim diferente. O gigante não estava mais lá. Tudo que lhe restava era a luz. Com isso, passou a temer a ausência da sombra da noite
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 530 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
Desde as altas madrugadas
José Fábio da Silva
“As asas da imaginação não levantam voo em uma mente fechada.” — Provérbio passeriforme
Vivia atrás daquelas grades a tanto tempo que esqueceu se o botaram ou nasceu naquele lugar. Dia a dia um gigante aparecia pelas manhãs, retirava o manto da noite de sua cela e lhe fornecia doses precisas de água e alimento. Em seguida, limpava o lugar e voltava para o caixote onde vivia. Provavelmente para ser alimentado por um ser ainda maior do que ele. Ao fim do dia, retornava e o cobria novamente com o manto escuro.
A cela ficava pendurada em um lugar alto e balançava junto ao vento. Em dias de tempestade, o gigante a recolhia para um local mais seguro. Daquele ponto alto via o mundo para além das grades, do gramado e das cercas. Assistia a outros como ele cortando livres o céu. Recolhiam as suas porções diárias em migalhas pelo chão e bebendo água dos mais insalubres lugares. A princípio, teve pena deles. Como podiam viver em tais condições? Quem os cobria com o manto da noite? Quem os resgata para um lugar seguro nos dias de tempestade? O mais assustador não era a forma como viviam, mas a indefinição dos momentos. Estava feliz na precisão de suas grades.
Certa manhã, a noite permaneceu sem prévio aviso. Não era a primeira vez. Era questão de tempo e a luz surgiria novamente. Dessa vez, no entanto, demorou mais que o habitual. Era incomum, visto que, quando aquilo acontecia, o gigante lhe deixava doses extras de água e comida. Foi obrigado a sobreviver das migalhas que mal podia encontrar entre as frestas do chão da cela. Sentia o chacoalhar do vento e ouvia o mundo lá fora. Percebia a luz intensa por trás do manto da noite. A cela ficava mais ou menos escura, mas nunca clara de vez.
Pouco entendia sobre o tempo, mas sabia da fome. Seu estômago anunciava a cada momento a emergência da situação. Em meio ao breu, acostumou-se com a falta do alimento. Torcia apenas para que viessem ventos mais fortes para que pequenas frestas de luz rompessem partes do manto escuro. De tanto soprar, o vento desnudou por pura insistência a noite daquelas grades.
O mundo era o mesmo e ainda assim diferente. Tinha algo de descuidado. O gigante não estava mais lá. Tudo que lhe restava era a luz. Com isso, passou a temer a ausência da sombra da noite. Para a sua surpresa, mesmo sem manto ela veio. Estava em todo lugar, mas não tão próxima quanto antes. O céu azul em que só via nuvens, agora era preto e cheio de pontos luminosos.
Nos dias e noites seguintes, se contentou com a morte. Envolto em fome aguardava apenas o seu corpo desistir da vida que a sua consciência já tinha descartado. Foi quando surgiu a tempestade. O vento e a chuva atravessaram as grades e atiraram a cela no gramado. Ali entendeu sobre a satisfação de não prever as horas. Pela primeira vez na vida, matou a fome e a sede sem protocolos.
A tempestade não lhe proporcionou apenas a saciedade. Também lhes abriu portas para fora daquela cela. A queda, apesar de assustadora, partiu algumas de suas grades. Pela primeira vez rompeu aqueles limites. Sentiu que poderia atirar-se no céu e cantar para além de seu lugar seguro. Só então, sob o horizonte infinito e entre tantos iguais a ele, percebeu que não sabia voar. Era apenas um pássaro dentro do ninho.
José Fábio da Silva é escritor.