Série Contos da Pandemia (6): O Enfermeiro, de Delermando Vieira
06 julho 2021 às 13h20
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“Ei, tem alguém aí”! Mas nada, ninguém naquele lugar. O vazio era avassalador, desastroso. Vendo-se assim, imaginou, quase adivinhando, estou habitando o Nada
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 525 mil brasileiros). A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
O Enfermeiro
Delermando Vieira
Este é para todo aquele profissional da saúde, verdadeiro herói na linha de frente contra a covid-l9, com a minha profunda e sincera admiração.
No fim do verão de 2019, Stanislaw Cosmovic estava internado sobre um leito hospitalar, ali no Hospital das Clínicas, devido a um princípio de infarto no miocárdio. Há dias estava deitado naquele leito, sendo cuidadosamente tratado. Tudo acontecera antes, ou seja, naquele amanhecer de uma segunda-feira. Enfermeiro, que era, estava pronto para o trabalho naquele dia. Eram sete horas da manhã, assim que ele estava sentado, junto à sua mesa, tomando café. Foi, realmente, um inesperado. De repente, se viu caído ao solo. Felizmente, fora socorrido, imediatamente, por sua esposa Eurídice, que estava ao seu lado. Há dias estava sobre aquele leito. Medicamentos e mais medicamentos foram ministrados. Naquele exato instante, ele estava um pouco sedado, sob efeitos de remédios fortes, que certamente lhe faziam dormir; e ele naquela hora estava dormindo. Em seu sono, quase profundo, sonhava; e seu sonho lhe dizia que ele estava, agora, numa velha cidade do faroeste, cidade essa que estava imensamente vazia, deserta. Caminhando solitário em busca de alguém, de alguma pessoa que lhe pudesse dar atenção, eis que nada encontrou. Não havia ninguém ali. Tudo era absolutamente vazio. A cidade, localizada dentro do Grand Canyon, próxima ao Rio Colorado, fora abandonada. Ele, então, sentindo-se inseguro e vazio, buscou a presença de alguém. Por isso, desceu pela rua principal, à procura de alguma presença humana. Porém, não havia ninguém. Mas eis que, desconfiado, saiu em busca de algo que pudesse ter vida. Lentamente, dirigiu-se na direção da barbearia. Contudo, ao aproximar-se do local, percebeu que o barbeiro não estava lá. Em seguida, volveu seus passos na direção da casa-de-ferradura do ferreiro. Esse também não estava lá. Havia, ali, somente alguns cavalos esbaforidos, escavando o solo. Depois, com a ansiedade lhe turvando amente, a alma, o ser, caminhou rumo ao saloon, imaginando que lá estavam alguns homens bebendo uísque seco ou, então, jogando pôquer, coisa que de fato ali não existiam. Esses também não estavam lá; e isso fê-lo recordar de uma canção, muito conhecida, de Raul Seixas, que fala sobre o dia em que a Terra parou. Já estava ficando desesperado com tamanho vazio, tamanha solidão e abandono. Ninguém, mas ninguém mesmo, na cidade vazia, deserta. Aquela ausência de todos, inclusive de tudo que se possa ter vida, deixou-o mergulhado numa solidão imensa, doída, sem fim. Mais do que nunca, sentiu-se abandonado, perdido na escuridão do Mundo. Seu coração doeu, e doeu muito, enquanto seu ser, sua alma, se viram vestidos de uma amargura irredutível. Um nevoeiro álgido corria, por ali, enquanto um vento árido soprava rua abaixo, empurrando feixes, gravetos e areias. Um velho chapéu, com um furo de projétil na aba, também rolava num beco ao lado. Stanislaw, já intumescido pela ansiedade descomunal, louco, “varrido”, ao fito de abraçar alguém, alguma pessoa, que naquela cidade pudesse existir, desceu mais ao fim da rua. Na cidade, as casas, o comércio, quase tudo estava lacrado. Foi, então, que ele abriu sua boca, gritando desesperado: “Ei, tem alguém aí”! Mas nada, ninguém naquele lugar. O vazio era avassalador, desastroso. Vendo-se assim, imaginou, quase adivinhando, estou habitando o Nada; e bateu-lhe, enfim, o medo terrível. De repente, eis que, lá nas alturas, nos céus, um bando de corvos passou voando e crocitando infernalmente. O sol já estava se pondo, assim que ele avistou na porta de um boticário, sentado sobre um banco, um boneco, trajando à moda de palhaço; e esse parecia ter vida, pois mexia. Ao se aproximar do boneco, Stanislaw ouvia de sua boca o seguinte: “Isso tudo, este vazio, esta ausência enorme, não são uma palhaçada. Ao contrário, é tudo muito sério. Uma lição, às vezes. Assim me parece. Porém, chegou a hora final: veja bem lá no final da rua”. Stanislaw, ao volver seu olhar, em direção ao fim da rua, vislumbrou uma figura iluminada, toda alva, cuja luminescência quase lhe cegava os olhos. Ao ver aquela figura, percebeu que era um anjo, com quase três metros de altura; e esse anjo parecia estar esperando alguém; e brilhava, e como brilhava! Sua imagem era como se fosse um écran inextinguível. O vento zurrava, ali, cada vez mais forte, enquanto lá atrás alguns equinos relinchavam. Cosmovic sentiu seu coração abrir-se com tamanha felicidade. Mas, ao contrário de avançar na direção do anjo, recuou, timidamente, ao perceber que mais além vinha caminhando um outro anjo; e esse era enorme, com quase quatro metros de altura, cuja vestimenta era um camisolão da cor do âmbar e do roxo. Tinha ele uma aparência escabrosa, grotesca e perversa; e seu nome era Set*. Esse, então movido por uma lucífera fúria, caminhou rumo ao outro anjo, aquele do écran. Começando por blasfemar, dizer coisas torpes. E prosseguiu: não adianta pelejar, vou acabar com tudo. Temendo algo maior do que sua solidão, o vazio em si, inclusive a ausência de calor humano, Stanislaw buscou esconder-se atrás de um tonel, que se encontrava recostado a uma parede de tábuas de um velho empório.
O sol já ia se pondo no horizonte, eis que o anjo do écran disse a Set: “Chega de brincadeira, acabou o brinquedo, seu anjo maldito! Dizendo isso, avançou sobre o anjo de camisolão em âmbar e roxo; e a luta fora gigantesca, um verdadeiro duelo de gigantes. Enquanto se digladiavam, o céu enrubesceu-se e a ventania fora voraz. Uma tempestade colossal caiu sobre aquela velha cidade do faroeste. Estrondos, faíscas e raios relampejavam no ar. Uma névoa ardente se acometeu sobre aquela rua toda; e já não se podia ver nada mais, nem um vulto sequer à frente. De repente, um silêncio imortal desceu sobre o Mundo, tudo fora se clareando, enquanto ele, Stanislaw, permanecia calado e tomado de medo, atrás daquele velho tonel; e tremia, e como tremia
A noite já vinha chegando. Inopinadamente, eis que a imagem do anjo do écran surgiu, lá embaixo, no final da rua, caminhando na direção do Rio Colorado; e esse levava nos braços o anjo perverso abatido. Finalmente, tudo acabara. Na beira do rio, o anjo do écran jogou o corpo do anjo perverso no rio, fazendo Stanislaw lembrar de um poema de Carlos Drummond, cujo nome é Poema da Purificação, onde se diz: Então, o anjo bom matou o anjo mau e jogou seu corpo nas águas do rio, e as águas ficaram tintas de um sangue que não descorava.
O anjo do écran vinha subindo a rua, lentamente, dentro de sua luminosidade fantástica. Ao aproximar-se de Stanislaw, lhe disse em bom tom: “Tudo o que a Humanidade estava passando, fora preciso para que o Homem aprenda a ter mais amor ao próximo, a ser mais solidário e, sobretudo, compreender, como bem o disse o poeta John Donne, ou seja, “Ninguém é uma ilha”. Mas, para a Glória do Senhor, tudo agora chegou ao fim, acabou-se essa praga”. Dizendo isso, se foi num estalo enormemente esbranquiçado, alvo como os Montes Alpinos no inverno.
Àquela hora, Stanislaw despertou-se de seu sono quase profundo. Enfermeiro que era, retirou dos braços a agulha do soro e, logo em seguida, desceu da cama, seguindo em direção ao corredor, corredor esse que ele muito bem conhecia; e saiu, então, à procura de alguém. Assustado, percebeu que ali não havia uma alma sequer. Caminhou em direção ao refeitório, ao diretório, bem como ao pátio no fundo do hospital. Na verdade, não havia ninguém ali. Foi, então, que gritou: “Ei, tem alguém aí.” Nenhuma resposta. Um silêncio profundo, imortal, era o que havia ali. Ensimesmado, dirigiu-se à porta da frente. Quando fora chegando, começou a escutar sirenes e mais sirenes de ambulâncias chegando, uma atrás da outra. Eram várias. Um tumulto vasto tomou conta daquele hospital. Então, ele indagou a um outro enfermeiro: “Mas, afinal, o que está acontecendo”? Ao que o outro lhe respondeu: “É a tal da praga, da pandemia. Vamos, ajude aqui, vamos levar esse paciente! Vai ser preciso entubar.
Ali na entrada do hospital, Stanislaw percebeu, naquele exato momento, a razão de seu sonho. Mas, uma coisa ele sabia, o final, com certeza, viria, sobretudo com ele, o anjo do écran.
Dias depois, lá estava ele, como um verdadeiro herói, na linha de frente batalhando, sendo solidário, servindo, dando amor e carinho, aos acometidos por aquela praga.
Delermando Vieira é poeta e prosador.