Série Contos da Pandemia (11), O Fla x Flu nosso de cada dia, de Cristiano Deveras
13 julho 2021 às 11h11
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“O senador disse: ‘Não é a febre amarela a que reina”. Pois não é que ele morreu exatamente de febre amarela
(Com o apoio do escritor e doutor em História Ademir Luiz, o Jornal Opção organizou uma seleção de contos escritos por autores goianos explorando o tema da pandemia da Covid-19 — que já vitimou mais de 534 mil brasileiros. A prosa curta mostrou-se não apenas possível, mas necessária, durante a pandemia. O jornal vai publicar um conto por dia e espera que, em seguida, alguma editora publique um livro.)
Diário do Isolamento: “O Fla x Flu nosso de cada dia”
Cristiano Deveras
“Diferente da situação da mítica cidade que, tendo existido ou não, acaba por ser vencida no final, em nossa guerra contra o novo coronavírus ainda temos opções, ainda temos tempo.”
À primeira vista, o que chama a atenção é o olhar impotente e ao mesmo tempo desamparado da figura central. Do lado direito, há outro olhar, este de súplica, de um socorro que o outro não pode oferecer. O terceiro olhar se perde por conta do ângulo. Percebemos então que estas figuras humanas estão em luta — e não em uma dança estranha. Seus corpos se contraem e demonstram nos mínimos detalhes que o combate vale suas vidas, que lutam por sua sobrevivência. Músculos saltam em seus corpos demonstrando não só definição, mas também o esforço com que tentam se defender. O grupo compõe-se de um homem adulto e dois jovens, sendo uma criança e outro adolescente.
E então nos damos conta que os três estão enrodilhados por serpentes. A figura da esquerda, o menino, está já a perder o equilíbrio, com as pernas presas e abarcado em um abraço fatal da víbora que lhe morde no torso. Do outro lado, o adolescente se contorce e parece ser o que tem mais sucesso em se desvencilhar, parece estar quase lá. No meio, o homem — já picado a esta altura — se esforça menos para escapar, do que para salvar os outros dois. Pois são seus filhos.
Esta cena, gravada em magnífica escultura, representa um episódio da Eneida, obra do poeta romano Virgílio, poema épico sobre da queda de Tróia. Mostra Laocoonte, sacerdote troiano que, desconfiando que o cavalo de madeira deixado pelos gregos é uma armadilha — como efetivamente era — tenta alertar seus conterrâneos. Mas os deuses estão contra a cidade e Atena envia duas serpentes contra ele e seus filhos, silenciando-os e impedindo que os troianos sejam salvos.
Diferente da situação da mítica cidade que, tendo existido ou não, acaba por ser vencida no final, em nossa guerra contra o novo coronavírus ainda temos opções, ainda temos tempo. Enquanto escrevo essas linhas o diretor geral da Organização Mundial de Saúde, Tedros Ghebreyesus, defende veementemente o isolamento, pede de forma encarecida pelo “isolamento físico, não o social”. É nosso Laocoonte avisando.
E por que estou falando sobre isso? Porque desde o errático pronunciamento do presidente da República, o debate que toma conta de todos é sobre continuar ou não o isolamento. É o novo clássico, no Fla x Flu nosso de cada dia.
Um lado defende o isolamento como forma de evitar a propagação do vírus dando tempo para que os serviços de saúde possam tratar aqueles já infectados e assim “achatar a curva” da epidemia. De outro, há aqueles que pensam que os efeitos de uma futura crise econômica serão tão ou mais nocivos que a atual pandemia. Não percamos tempo falando de grandes empresários nacionais que minimizaram “seis ou sete mil mortes”. Deixemos que Deus, o tempo e os consumidores os respondam para frente.
O coro do “vem para a rua” parece fazer eco a um discurso feito no Senado, durante o Segundo Império, em 17 de abril de 1850 pelo então senador Bernardo Pereira de Vasconcelos. Na época, discursou ele a respeito de uma questão de saúde:
“Eu também estou persuadido de que se tem apoderado da população do Rio de Janeiro um terror demasiado, que a epidemia não é tão danosa como se têm persuadido muitos; não é a febre amarela a que reina.”
Em 1º de maio de 1850, Bernardo Pereira de Vasconcelos deixou de ser senador para se tornar mais uma vítima da febre amarela. Foi enterrado sem ter tido ao menos um discurso em sua homenagem, nem palavras de pesar, na casa onde havia proferido aquelas palavras.
Fiquem seguros.
Cristiano Deveras é escritor.