Depois do Modernismo, as fronteiras entre imaginação e sua concretização na arte, entre o que era considerado certo e errado, ruíram. O Modernismo tudo permite

O Jornal Opção vai publicar, com a curadoria do presidente da UBE-Goias, Ademir Luiz, 22 contos de 22 autores evocando de diferentes formas a Semana de Arte Moderna de 1922 — que completa 100 anos em fevereiro, ou seja, nunca acabou — como inspiração. As mais diferentes possibilidades estilísticas foram exploradas. Contos modernos, contos tradicionais, contos pós-modernos. De homenagens assumidas a severas reflexões críticas; narrativas evocativas, narrativas memorialísticas, narrativas ensaísticas, narrativas desconstrutivas. Algumas com humor, outras com amor, mas também com vaias, aplausos e mesmo com o som do coaxar de sapos antropófagos.

Simone Athayde

Pintura de Anita Malfatti

Eu sabia que eu ia chegar chegando, que iria abafar! Nem sei se essas gírias ainda estão na moda nesse começo de 2022, no ultrarrápido século XXI, mas de quando eu vim, há cem anos, minha chegada foi mesmo um arraso (no bom e no mau sentidos)!

Cem anos! Nossa, como o tempo passa rápido! Eu quase posso sentir a relatividade preconizada por Einstein como algo vivo passando por meu corpo (se eu tivesse um)!

Você deve estar curioso para saber quem sou.

Cheguei para colocar um novo foco na arte, um olhar diferente e irreverente, mesmo que muitos o tenham dito “estrábico”. Naquela época, reuni-me com meus amigos, todos ansiosos por liberdade criativa, em busca de uma arte liberta de paradigmas que considerávamos ultrapassados, por uma nova forma de expressão caracterizada pelo subjetivismo, em que a arte não fosse ela mesmo considerada sinônimo de beleza, posto que a beleza, na nossa visão coletiva e revolucionária, não é experenciada de forma igual para todos.

Anita Malfatti e o quadro “A boba” | Fotos: Reproduções

Por falar no belo, um dos estopins para o nosso encontro foi a exposição de Anita Malfatti em 1917, na qual minha amiga, influenciada por seus estudos na Europa e nos Estados Unidos, trazia de lá as referências expressionistas. Anita era uma mulher corajosa, à frente de seu tempo, e resolveu mostrar aos brasileiros sua arte, bela sim, mas cheia de um estranhamento que a maioria ainda não estava preparada para receber. Oh, qual foi a decepção dessa artista quando leu a crítica corrosiva de Monteiro Lobato no jornal O Estado de São Paulo! Sim, aquele mesmo Lobato criador dos simpáticos personagens que ela tanto admirava, como a peralta boneca Emília e a amorosa Tia Nastácia, usava cruéis adjetivos para descrever a exposição de minha amiga. Acostumado a pensar que só havia uma forma de representação na arte, que fosse fiel ao real, o escritor viu as distorções produzidas pela pintora como aberrações sem fundamento, uma nova espécie de “caricatura”. É certo que ele ainda tentou apaziguar um pouco as duras críticas ao dizer que Anita era dona de um “talento vigoroso, fora do comum”, e que havia marcas dele em “qualquer daqueles quadrinhos”, mas o estrago já estava feito. Anita foi execrada, seus quadros foram devolvidos e vilipendiados, e isso tudo lhe causou desânimo e uma profunda tristeza.

Se nossa pintora não desistiu de seus ideais, forjados nas Vanguardas Europeias, foi porque ela encontrou apoio em outros artistas brasileiros que, assim como ela, pensavam que a arte precisava se expandir, ir além do academicismo, do padrão clássico, das ideias totalitárias e desses ultrapassados paradigmas.

É aí que começa a minha história.

Quando esses artistas maluquinhos e desbravadores, tendo à frente Oswald de Andrade, Menotti Del Picchia, Tarsila do Amaral, Mário de Andrade e a própria Anita, resolveram se unir e fazer um evento barulhento, um grande manifesto pela arte moderna, eu nasci. Eu sou a Semana de Arte Moderna de 1922.

Querido leitor, está estranhando que eu, uma velhinha extravagante de cem anos, uma abstração, possa estar me dirigindo a você neste texto? Se não estranhou, esse é um dos legados do Modernismo e, é claro, meu também. Depois do Modernismo, as fronteiras cambetas entre imaginação e sua concretização na arte, entre o que era considerado certo e errado no fazer artístico ruíram de vez. O Modernismo tudo permite! A sensação do artista ao objeto que ele retrata e, consequentemente, de quem observa a arte gerada, passa a ser mais importante do que a retratação fiel desse objeto. Além disso, o falar “errado” do povo brasileiro e os mitos primordiais passam a ser retratados sem vergonha ou maquiagens, mas com direito a roupagens extravagantes, como fez o Mário de Andrade em seu livro “Macunaíma”.

Por isso, depois do Modernismo, e aqui no Brasil, depois que eu aconteci, vocês puderam aprender a apreciar, por exemplo, os quadros de Anita, ou o Abaporu de Tarsila do Amaral, sem os olhos enviesados do preconceito. O intuito era que a visão fosse libertada, como muito bem disse Graça Aranha no meu segundo dia de evento: “Cada homem é um pensamento independente, cada artista exprimirá livremente, sem compromissos, a sua interpretação da vida, a emoção estética que lhe vem dos contatos com a natureza. Cada um é livre de criar e manifestar o seu sonho, a sua fantasia íntima desencadeada de toda regra, de toda sanção”. Que lindo manifesto! Eu, por exemplo, sempre me achei bonita, mas não tenho a mesma beleza da Vênus de Botticelli, e sim sou mais parecida com “A mulher sentada” de Pablo Picasso. Será que lhe agrado? Se não, agradarei a outros, e está tudo bem.

O que muitos não compreendem é que eu não vim com o objetivo de destruir ou derrubar o velho. Talvez meus amigos, na ânsia de romper de vez com tais paradigmas e preconceitos, assim o quisessem naquele momento, mas eu, especialmente com a experiência dos anos, posso dizer que desconstruir seja a palavra mais certa. Hoje eu amo toda forma de arte, amo o clássico, amo o parnasiano, amo o que veio antes de mim e as rupturas que me forjaram. E se você, amigo leitor, pensa que estou sendo contraditória, também lhe digo que essa é uma das características da Modernidade. Eu posso aglutinar tudo em mim, eu posso desconstruir, eu posso revisitar e reformular, posso especialmente criar o novo, o até então não visto, não escrito, o original, eis a mágica da Arte! Amo, por exemplo, A Divina Comédia, de Dante, que em 1300 e pouco já era moderníssima ao fazer o poeta Virgílio visitar os nove círculos do inferno! Amo Cervantes e seu Dom Quixote de La Mancha, pois a partir dele modificou-se e definiu-se o que era o gênero romance! Amo Machado de Assis e seu Memórias Póstumas de Brás Cubas, de 1881! Apesar de ser classificado como uma obra do Realismo, quer algo mais moderno do que um defunto autor que faz sua dedicatória ao “verme que primeiro roeu as frias carnes do meu cadáver?”

Eu vejo beleza nisso tudo, assim como vejo beleza no poema Dualismo do parnasiano Olavo Bilac, que é uma verdadeira descrição poética e clássica da alma e da experiência humanas! Amo tudo o que me emociona, me encanta, me assombra ou me causa estranheza, porque é da Arte ressignificar a vida, seja de que forma for, sem formas (leia-se formas com o ô fechado). E às vezes, irá acontecer de alguém perguntar “mas isso lá é arte?” ou questionar se a qualidade artística não está decaindo com o tempo, agora que os parâmetros clássicos não são mais obrigatórios. O certo é que o moderno sempre virá, e sempre causará estranhamento num primeiro momento. Não há como conter essa expansão, o tempo não volta, por mais que os saudosistas assim o queiram. Afinal, não foi um talentoso músico brasileiro na década de setenta que disse que “o novo sempre vem?”

E enquanto não vem nenhum novo movimento que seja ruidoso e necessário, vou aproveitando as comemorações do meu centenário. Quem diria que cem anos depois, ainda falariam tanto de mim?