“Ulisses” está nas bases de nossa modernidade. Uma modernidade que espelhava a tradição, continuava a tradição ao mesmo tempo em que a desafiava e atualizava

Ademir Luiz

Especial para o Jornal Opção

“Ulisses”, o mitológico romance de James Joyce (1882-1941), foi lançado no dia do aniversário de quarenta anos do autor: 2 de fevereiro de 1922. Completou-se, na semana passada, exatos cem anos de sua publicação. O projeto começou como um esboço de conto escrito em 1906, chamado “Ulisses em Dublin” e que seria incluso na coletânea de contos “Dublinenses”. Daí evoluiu para uma pequena novela em 1907 e, finalmente, expandiu-se para o romance grandioso que começou a ser escrito em 1914. Foi terminado em 1921, com um endividado e quase cego James Joyce peregrinando entre Itália, Suíça e França em plena Primeira Guerra Mundial (1914-1918).

Conseguir publicar foi uma saga por si só. Ao longo do processo de escrita, prévias foram saindo em diversas revistas literárias, alimentando os debates sobre as novidades estéticas propostas por Joyce, atiçando a expectativa pela obra completa e, principalmente, criando uma série de detratores. Uma das mais ferozes foi a escritora inglesa Virginia Woolf. O romance foi recusado por editoras do Reino Unido e dos Estados Unidos, acusado menos de ser ilegível do que de ser pornográfico. Exemplares contrabandeados chegaram a ser queimadas por autoridades alfandegárias. O “perigoso” livro só seria liberado no Reino Unido três depois do lançamento e permaneceu ilegal nos Estados Unidos até 1934.

Edição de “Ulisses” em Portugal | Foto: Reprodução

Depois de muita controvérsia, o romance foi oficialmente editado pela livraria parisiense Shakespeare & Company (nome de uma livraria cult), de propriedade da americana Sylvia Beach, uma grande admiradora de Joyce. O sucesso de crítica e de público foi absoluto, chegando a gerar edições piratas do livro do momento. Momento que perdurou. James Joyce transformou-se na personalidade literária mais celebrada de seu tempo, fenômeno de popularidade facilitado pela morte precoce de seu maior concorrente, Marcel Proust, autor de “Em Busca do Tempo Perdido”.

Hoje em dia parece absurdo, mas numa época em que o cinema ainda não havia gerado seu subproduto chamado “cinéfilos”, não existia TV e o rádio engatinhava, escritores considerados importantes em vida eram, necessariamente, escritores famosos, dentro dos limites do que era fama antes da era da mídia de massa. Em outras palavras, James Joyce era lido. Obviamente, é ingenuidade imaginar que foi equivalente a um best-seller nos moldes atuais, mas ler “Ulisses”, um livro reconhecido como difícil e de vanguarda desde seu aparecimento, fazia parte do checklist dos indivíduos que almejavam ser elegantes e cultos na década de 1920. Numa sociedade muito mais fechada, onde a população alfabetizada era comparativamente muito menor, isso representava uma imensa projeção.

Ler “Ulisses” era sinônimo de inquietude intelectual, significava estar aberto às novidades estéticas e sociais, significava repúdio ao puritanismo. Foi o tempo que transformou a rebeldia de James Joyce em cânone. Sua paródia, e duelo, com a tradição tornou-se também tradição. Atualmente, ninguém separa James Joyce de Homero, sua inspiração primordial, ou de Shakespeare, Goethe, Camões, Cervantes ou Dante. Ele faz parte do mesmo clube VIP de gigantes da literatura. Como afirmou Jorge Luis Borges, sua existência justifica toda uma geração.

Todo esse peso simbólico, que é justo e verdadeiro, teve o inconveniente de afastar James Joyce dos leitores. Pelo menos dos leitores comuns. Ninguém mais lê “Ulisses” para comentar em mesas de café parisienses ou nas confeitarias cariocas. Hoje não é mais necessário ler boa literatura para ser considerado elegante e culto, basta assistir a série da moda. “Ulisses” se transformou em leitura de eruditos, de pesquisadores e de leitores particularmente esforçados. Não é mais normal ler “Ulisses”, quem se dispõe a ler essa “saga mundana de um dia na vida de um homem comum” é considerado anormal. No bom e no mau sentido. Essa leitura “chata e parada” não é mais coisa de rebelde, é considerada elitista até mesmo pela maioria dos membros da comunidade dos leitores. “Ulisses” ficou tão fossilizado quanto “Odisseia”, de Homero.

Tradução de Antônio Houaiss

O que essa visão preconceituosa e anacrônica esconde é que da mesma forma que “Odisseia” está nas origens da Civilização Ocidental, “Ulisses” está nas bases de nossa modernidade. Uma modernidade que espelhava a tradição, continuava a tradição ao mesmo tempo em que a desafiava e atualizava. Não é mais assim. De certa forma, deixar de ler “Ulisses” é condenar a Civilização Ocidental à morte. Obviamente, para alguns, esse é um projeto deliberado. Faz parte do plano. Esses não contam.

Por tudo isso, ler “Ulisses” hoje é um ato de rebeldia e resistência. A alta cultura é a nova contracultura. Precisamos devolver para “Ulisses” as cores divertidas e instigantes com as quais James Joyce o adornou. É um livro difícil? Sim, mas também é muito, muito engraçado. Exige tempo e dedicação? Sim, mas não mais do que uma dúzia de séries inúteis que são esquecidas logo depois que acabam. É um desafio estético? Sim, mas garanto que vai sair melhor dele. Não existe política melhor do que a popularização da cultura e da elegância. Não como era em 1922, mas como poderia ser em 2022, se algo não tivesse se perdido no meio do caminho.

Tradução de Bernardina da Silveira Pinheiro

Não podemos esquecer que “Ulisses” é, sobretudo, sobre as belezas e as dores de ser um homem comum que percorre uma cidade real ao longo de um dia e pouco. Só isso, e tudo isso. James Joyce escolheu Odisseu como modelo para seu Leopold Bloom por considerá-lo o único personagem completo da literatura. Era rei de Ítaca e herói da Guerra de Tróia, mas também era marido, pai e filho. Como o prudente, curioso, levemente pessimista, subestimando, divertido e lascivo Poldy também era. O leitor de “Ulisses” poderia ser um primo, amigo, vizinho ou colega de trabalho do protagonista. Mais ainda, o herói joyceano pode ser o próprio leitor. O homem comum, digamos.

Se nada disso te interessa, paciência. Esse desafio não é para você. Ser rebelde de verdade não é fácil. Sobretudo em uma época dominada por revoltados a favor e hordas de gente “diferente” onde são todos iguais.

Ademir Luiz, escritor, doutor em História, professor da Universidade Estadual de Goiás (UEG) e presidente da UBE-Goiás, é colaborador do Jornal Opção.

Um poema de James Joyce

Cordas na terra e no ar

Meiga música compõem;

Cordas junto ao rio, lugar

Onde se unem os chorões.

 

Há música pelo rio —

É amor, vagueando à toa;

Pálidas flores no manto,

Folhas negras em coroa.

 

Suavíssimo tocando,

A fronte à música pendente,

E os dedos deslizando

Num instrumento.

[Do livro “Música de Câmara”, 155 páginas, Editora Iluminuras, tradução de Alípio Correia de Franca Neto]