Kamilly Barros

Especial para o Jornal Opção

Naquela época (agora sei: uma época “mística”) frequentava muito o Obelisque, esse pedaço da terrinha no Goiás do latifúndio. Fiquei viciada em bolinho de bacalhau. Na verdade, meu vício era o combo bolinho+molho+cervejinhaestupidamentegelada (essa perfeita ode luso-brasileira ao ócio em forma de refeição). Num fim de tarde. Ali pras 6, 6 e meia: aquela hora “mágica”, que não é isso nem aquilo, estilo Twilight Zone. O negócio era mesmo a suspensão do cotidiano, a evasão. Era a fissura pelo primeiro gole de tempo livre, pela primeira mordida de sossego; era o capricho (de mulher) de ser naquele lugar e àquela hora, de preferência à mesma mesa. Até eu achava engraçado esse certo rigor com o que nomeei, numa dessas piadas interníssimas que temos de nós pra nós, de “fuga para as colinas”. Porque sempre fui muito despachada, vou pro lugar que for, me ambiento fácil, tenho estômago de avestruz; diria que “qualquer paixão me diverte”. Mas naquela época, não. Era um momento tempestuoso (diria mesmo “bravio”, em que eu me lançava numa espécie de “épico interno”) e eu resolvi bater o pé. Obelisque, sim, mesmo que meio caro; fim de tarde, mesmo que às vezes meio cedo pra beber; sozinha, mesmo que não faltasse os “miga, bora pra…”. Pois “bora naum” que era “a minha hora” e eu achava que merecia (mesmo que distanciada desse pensamento e no fundo rindo desses mecanismos psíquicos de compensação). Se não tinha colina tinha fuga e fugir é sempre melhor sem companhia. Pra ser justa era mais “refúgio”, esse eufemismo mais adequado à suavidade do crepúsculo e àquela atmosfera de tradicionalismo que circunda o ambiente e as presenças.

Esse fado tropical durou uns meses, enquanto houve estio e algum dinheiro dos meus fundos de emergência (e sem dúvida esse far niente – nem tão doce mas quase psicanalítico e sempre subversivo – era prioridade absoluta, emergência emergencíssima). Uma ou duas ou três vezes por semana eu batia ponto: fiquei conhecida dos garçons, que, ao me avistar, já traziam a Heineken emendada com a pergunta retórica: “uma porção de bolinhos?”, ao que eu respondia, me sentindo importante: “sim, por favor, Fulano; e molho extra”. Esse curto diálogo era o abracadabra da minha happy hour: ao terminar de dizer “extra” abria-se um portal e eu adentrava um tempo atávico com cheiro de mar (in the back of my mind, Lou Reed cantando Perfect day; no ambiente, a voz perfeita da Gal acendendo a noite; os dois rimando com “navegar é preciso”).

Mas é claro que não foi só isso, senão não haveria estória, ou pelo menos uma digna de ser contada. Houve um turning point, por assim dizer, que tensionou as colinas.

Agora que não preciso mais reter a informação, digo que o fado tropical durou enquanto houve estio, dinheiro e “milagre” (por falta de palavra melhor pra explicar o que começou de repente a acontecer). Digo também que ficou sério o lance do abracadabra e que a hora passou a ser menos happy que misteriosa. E que com o ponto tenso fazia-se à vera um tipo de portal; o tempo virava oracular; o mar continha uma Atlântida; Lou Reed trazia era o wild side (Gal, a sorte). No fechar das contas, o que houve pareceu mesmo um daqueles episódios do seriado americano e a evasão, fora de toda economia, deslocou-se para além da imaginação. Digo ainda, como forma de esclarecimento, que a tensão não era de forma alguma incompatível com a liberdade, o sossego, o refúgio. Ao contrário: ela destacava a magia escondida em cada momento e transformava capricho em spell. Eu acolhi com naturalidade e sem medo os fatos milagrosos que se deram nesses meses, sem buscar outra justificativa que não a mera engenharia das coisas que sucedem, por si só fantástica (se pensarmos bem).

Com a (boa) tensão veio “A Personagem”. Aliás, A Personagem trouxe a tensão: o turning point foi o Miguel Jorge dobrando a esquina. Antes de desenvolver um pouco essa dialética, peço perdão se meu modo autoficcional fez parecer que a estória era sobre mim. Absolutamente não. Pois repare: se não fosse o Miguel Jorge em sua ida (ou vinda) – ou seja, sua “aparição” – seria nada mais que uma mulher que por alguns meses frequentou semanalmente, à mesma hora, um restaurantebar de Goiânia, entretida com seus botões. Eu só interesso nessas páginas como narradora. E a narradora nasceu com A Personagem e a tensão que carregou em seu caminhar.

Até aqui, apenas situei o leitor no cenário (esse charmoso casarão azulejado do charmoso Setor Coimbra), familiarizei-o com os moods que modulam a mirada que gera o contar e advoguei pelo uso de aspas, sinais pelos quais tenho particular afeição. Sobre elas, Adorno, em seu belo ensaio “Sinais de pontuação”, afirma que “só devem ser usadas quando algo é citado, ou quando o texto quer se distanciar do sentido de uma palavra a que se refere”. E ainda: que “devem ser rejeitadas como meio de ironia, pois dispensam o escritor daquele espírito que está no cerne da pretensão irônica, violando assim o próprio conceito de ironia, na medida em que esta é separada do assunto e impõe um juízo predeterminado sobre ele”. A serem irônicas, as aspas preferem ser “marotas e satisfeitas”: elas “lambem os lábios” (e essas deliciosas imagens também trago do filósofo) ao dizer que basta a ironia do destino; ao dizer que a memória contida nas citações tem sempre um retrogosto, seja bom ou mau. Porque essa lembrança tem um sabor insólito muito necessitado de citações (ponto de apoio na memória coletiva e, portanto, em algum tipo de “senso”), muito necessitado de distanciamento (sem o qual o pudor impediria a narração), as sapecas seguem até o ponto final comandando graficamente essas mal-traçadas linhas. No entremeio, ajudam a “afastar” a contadora; deixam passearem os passos de Miguel, central e verdadeira ignição da narrativa (e do eu-que-narra): toda a “intenção em ato” do contado vem daí.

A intenção de dizer nasceu da centelha. E tudo faiscou assim: transitou como em footing o Autor do outro lado da rua, meio transeunte ordinário meio entidade (aparecido “do nada”, um ethos meio mítico, uma certa “aura”…) e deu-se um choque. Claro que houve surpresa, afinal era o Miguel Jorge, pô!; Miguel Jorge de estrada longa de livros filmes crítica, de veias e vinhos que foram pulsar em outra língua, de prêmios, de imortalidade tals… E era a primeira vez que eu via esse habitante ilustre do pioneiro Coimbra, celebridade pra quem gosta de Literatura. Mas não foi isso. Quando digo choque digo choque mesmo: sentimento do corpo, bioquímica, alteração das paisagens. E não só no meu corpo (por isso reafirmo Miguel como A Personagem, como o trigger de tudo o que houve; da história, portanto). Todos os corpos ficaram inquietos, subitamente transformados. Os clientes falavam alto, levantavam-se das cadeiras sem porquê, iam aos banheiros e paravam à porta, sem entrar (aludiam aos movimentos absurdos das personagens d’O Anjo Exterminador), perambulavam meio tontos e sentavam-se em mesas alheias, bebiam de outros copos, comiam de outros pratos que não os seus. Os garçons estabanavam-se, trocando pedidos, derrubando bandejas. As crianças corriam, endoidecidas, eufóricas. Os cães e gatos pulavam nos colos, roubavam nacos de bacalhau das travessas, desaforadamente atrevidos. Até as boêmias pombas pareceram mais ousadas em seus ciscares, algumas aventurando-se sobre ombros e cabeças.

Espantou-se também o corpo do ar: houve um esvoaçar de ventos, poeira e folhas formando túnel, pétalas jogadas como dados sobre os balcões (segurei com força os papéis onde escrevia um poema), sons sussurrados que se distinguiram, num relance, em além-palavras. AvarmasUrubandaMorosinhoProfugusKybuiLacrausMarbrasaWatáu”… esses feitiços ditaram as correntes, em voz grave, e ouviu quem teve ouvidos de ouvir. Assim como quem teve olhos de ver testemunhou o pairar breve de uma borboleta azul sobre o céu, em contraste com as mais puras formas do branco. Os com tato sentiram um pequeno frio azul sob os sonhos.

Foi misericordiosa a beleza daquele momento, que durou apenas alguns minutos (o tempo do trajeto d’A Personagem entre as ruas 229 e 235). Aparentemente, o flâneur tensionador não percebeu o abalo que causou; seguiu indiferente seu caminho. Isto deduzi porque a despeito do arrebatamento que me envolveu, mantive os olhos fixos nele até seu sumir na curva (como se rio, se pedra). Tudo o que houve de “surreal” pareceu ter se dado apenas nos limites do Obelisque e entre os presentes ali. Tenho certeza que as pessoas perceberam a anormalidade do evento; isso vi em suas caras, em suas carnes. Mas num instante elas se desanuviaram desse extraordinário e voltaram a se comportar como se nada houvesse ocorrido: como dantes no jardim de Abrantes. Olhei em volta perscrutando, forçando como nunca a atenção. Ninguém paralisado como eu, ninguém colhendo frutos noturnos de estranheza. Ninguém retendo o risco da aventura da paisagem com perigo. Pra eles foi transe: de novo tudo como era. Pra mim foi tudo como nunca se tinha visto antes: gen de linguagem nova, a janela de um insight. (Nesse dia não comi os bolinhos. E precisei de uma dose de “John Daniel’s” (talvez duas)).

Por dentro eu mudei; senti-me em calada nudez. E bastaria essa manifestação da hora e da noite, em que o céu de um só astro não se aclara, pra eu afirmar categoricamente: isso quem trouxe foi o Miguel Jorge; tenho certeza de que isso desencadeado no tempoespaço foi coisa do Miguel Jorge. “Isso”: esse quase-estar em Beirute, ou numa caverna, ou na décima quarta estação, ou debaixo de brasa, ou nos ombros do cão; esse fosso, esse angélico… foi coisa da passagem do Miguel.

Mas houve algo a mais, além do além: minha sorte mudou. E isso significa que coisas e pessoas mudaram, que acontecimentos se deram ou não se deram, que mesmo memória e expectativa refizeram-se. Ou seja: cadeia de choques a partir de choque inicial. Desde aquela noite (noitinha; recém-entrada na claridade) até o fim do estio, do dinheiro e do milagre, houve mesmo o milagre. Milagre completamente associado à passagem d’A Personagem, esse ato corriqueiro ao qual injustamente não atribuímos maior consideração. Por isso reafirmo reitero ratifico: Miguel foi o gatogatilho, o estopimamuleto do enredo; foi tudo mesmo o Miguel. Porque foi assim: foram aS passagenS de Miguel; aS idaS (ou vindaS). Toda vez que ele passava era a mesma coisa (e claro que descobri esse “padrão” da segunda vez que ele passou, ainda que pra mim, que sou muito crédula em inacreditáveis, uma única aparição fosse suficiente pra caracterizar o “paranormal”): vendaval e palavras xamânicas; Obelisque e seus vivos transtornados, depois retornados como se nada ao cotidiano goianiense; eu guardando no corpo o impacto; meu destino (e o de outros ligados a mim) mudando inexplicavelmente depois de algumas horas (às vezes no fim da noite – lá pras 11 (como foi da primeira vez); às vezes na madrugada; às vezes na dura manhã seguinte, de orvalho e algumas libélulas; às vezes ao longo do dia ainda umedecido de lua).

O que mudou no meu destino não vou contar, porque não é relevante para a fábula. Ademais seriam variações sobre o mesmo tema. Mas digo que foi sorte. Digo mais: foi fármaco, foi farmacotécnico, ao mesmo tempo ancestral e contemporâneo (por exemplo, tinha dias que minha sorte era em high-tech; em outros, era em ervas). Sobretudo foi mudança e destino – fate, fato consumido e consumado. Antes de qualquer entendimento racional foi o disparo de Miguel Jorge: Deus (deuses? deusas? aliens? inconsciente coletivo? randomness?) em ânsia, talvez tédio, inventando desculpas pra transformar a realidade, brincando sério de tensionar a vida através dos caminhos do escritor. Se “a arte imita a vida”, é porque muitas vezes a realidade carece de verossimilhança… O único que peço ao leitor é momentânea suspensão da descrença fundadora do “tempo líquido”.

Quis assim o irônico destino: que Miguel Jorge pisasse os nervos dos telúricos, descolasse as placas dos imóveis e semoventes daquela esquina; que eu carregasse pra outros cantos da cidade, dentro de mim, esses abalos sísmicos; que seu percurso alterasse minhas rotas (e as dos meus); que fosse clara a ligação entre o “misty” e A Personagem; que isso perdurasse por um tempo definido; que isso marcasse, com um gosto particular, minha memória; que um dia a memória disso viesse à tona a partir do contato com uma criação engendrada pelo próprio Miguel. … que isso tudo de encantamento e sortilégio fosse apenas um átimo de mistério, uma partícula recortada do fluxo da vida…

Porque do mesmo jeito que veio, foi: sem mais, um dia Miguel passou e não houve alvoroço. Ficou tudo no lugar no Obelisque e nos corpos que o ocupavam, inclusive no meu. Não digo que não senti nada, mas não teve choque. Foi uma vaga sensação de nostalgia o que experimentei, como se adivinhasse que era mesmo o fim daquele mergulho no coração do espanto. Era sábado à noite, perto das 8. Coincidentemente, choveu de leve. Coincidentemente, o Banco do Brasil enviou uma notificação de que eu acabava de entrar no vermelho. (Pra ser honesta e marcar a irremediável partida do sobrenatural, digo que nem a chuva nem a notificação pareceram ser “coisa do Miguel”, embora tenham sido motivos suficientes pra “fechar a Gestalt” do meu fado tropical e buscar refúgio nas colinas de meu lar doce lar, entre pães com ovo e algumas (poucas) garrafas de Catuaba Virtude). Também não aconteceu nada de “sortudo” naquele dia. E nem nos próximos. Tinha mesmo acabado o estranho poder d’O Visitante.

Não lamentei nem tive azar. Ao contrário: senti-me estranhamente eleita por essa fugacidade, a sorte como uma estrela cadente um meteoro um cometa. De resto, estava dado o mergulho – o espanto trouxe pharmakon em ambivalência de dias profundos e asas de moleque e uma cura que perdurou em buona fortuna (e vice-versa).

Não voltei ao Obelisque desde então. Nem tanto pelo dinheiro, que vem e vai (mesmo que mais vá); nem pela chuva, porque (cito passagem de filme famoso:) “i don’t mind getting wet”. Receei mesmo foi a repetição do milagre. Receei que eu mesma fosse, afinal, personagem, e que minha presença ali, em conjunção astral com o trânsito de Miguel, fosse também elemento detonador daquela metafísica sucessão de eventos. Por via das dúvidas, não quis arriscar. Não por medo, mas por respeito ao enigma. Mas minha intuição diz que foi mesmo de Miguel Jorge o pulling; de seu passaredo passar, de sua quase-felina aparição, de sua passagem esfíngica… E se não como prova, ao menos como forte indício (de “autoria”), depois de anos de latência essa história despertou com um outro passo seu: um livro, cujo título fez disparar a memória & o coração.

Kamilly Barros é escritora e doutora em História.

P.S.1:

recomenda-se duas “mandingas” para melhor fruição da leitura: 1) ler ao menos o sumário de “Em busca do coração no sábado à noite” (Arribaçã Editora, 2020), romance mais recente do Autor; 2) inteirar-se de alguma biografia & da cinebibliografia d’A Personagem.

P.S.2:

Sabadou em têxtil a la mode greco-goiana

5 da tarde,

Supermercado Tatico

(aquele em frente ao Mutirama)

corredor 42,195 (exato número da Maratona)

rodeada

por toalhas panos de prato

forros de cama

alojo no carrinho

entre o bacon e a banana

um ditado reciclado dos gregos

(aqueles que os pró-brazilian tacham de cafonas)

“o tear mais ático é o que desfaz a trama”

se me sobra um troco alfineto e afirmo

(detrás das cortinas, dedo dionisiacamente em riste)

“mais tarde junto retalhos no Obelisque”

“se tiver sorte vejo passar o Miguel Jorge”

“se der a louca alinhavo ali mesmo minha roupa”

já sem grana e meio alta

o que me vale é a saia quase-pronta

(embora haja ainda uma ponta solta…)

pra desentortar a rima tonta e a fuga total do helênico

só me resta sob pequis fazer a Cinderela:

enfio um camelo abóbora por uma agulha neurastênica;

costuro em doses essa barra no Breguella’s