Samanta Schweblin: as estranhezas na sala, na cozinha e no jardim
08 outubro 2023 às 00h01
COMPARTILHAR
Cezar Santos
Especial para o Jornal Opção
Há alguns anos os cadernos culturais dos países de língua espanhola na América Latina falam de um novo “boom feminino” na literatura. Mulheres têm se destacado com textos ousados, numa variedade de vozes que exploram temas complexos e perspectivas únicas. São exemplos as argentinas Ariana Harwicz, Mariana Enriquez e Samanta Schweblin, a chilena Paulina Flores, a boliviana Liliana Colanzi, a equatoriana Mónica Ojeda, as mexicanas Laia Jufresa, Gabriela Jáuregui e Brenda Lozano, entre tantas outras.
Na maioria são autoras na casa dos 30, 40 e 50 anos, mas também veteranas que continuam publicando textos de primeira linha, como a argentina Maria Morenos, de 76 anos. Atestam a qualidade do trabalho dessas mulheres o sucesso de crítica e premiações importantes. Não muitas delas foram publicadas no Brasil. Uma das exceções é Samanta Schweblin, nascida em Buenos Aires, em 1978, uma das expoentes da literatura que se faz na América Latina e que já tem reconhecimento em escala internacional (ela mora na Alemanha).
Samanta Schweblin emergiu como uma das mais promissoras autoras da literatura contemporânea de língua espanhola. Seu estilo distintivo mistura o real e o surreal, cria atmosferas inquietantes que continuam ressoando na mente do leitor muito depois que ele fecha seus livros. A qualidade de seus textos está chancelada por críticas elogiosas em jornais importantes e um punhado de prêmios conquistados ou em que foi semifinalista ou finalista, como Casa de las Américas, International Booker Prize, Tigre Juan de Espanha, entre outros.
Mergulho profundo na psique
Os textos de Samanta Schweblin frequentemente desafiam as fronteiras entre o mundo físico e o psicológico, num mergulho profundo na psique humana para explorar medos, ansiedades e desejos ocultos. Mesmo quando a narrativa é realista, a autora deixa pelo menos um calcanhar tocando firme o chão da surrealidade.
Samanta já tinha sido publicada no Brasil em 2012, com a coletânea de contos “Pássaros na Boca”, pela Benvirá, em tradução de Joca Reiners Terron. Em 2014, a Record deu à luz a tradução de Ivone Benedetti para o curto romance “Distância de Resgate” — adaptado pela Netflix como “O Fio Invisível”. Em 2018, foi a vez de outro romance, “Kentukis”, pela editora Fósforo, uma narrativa fragmentada de questionamento da relação nem sempre amigável que o ser humano trava com a tecnologia; portanto, como se vê, roteiro pronto para uma adaptação à série “The Black Mirror’s”…
No ano passado, a Fósforo presenteou o leitor brasileiro com um volume que reúne (e repete) o cultuado “Pássaros…” (Prêmio Casa de las América de 2008) mais “Sete Casas Vazias”, também em tradução de Terron. É esse volume que me chegou às mãos, me proporcionando uma das melhores leituras nos últimos anos, me nocauteando — conforme Julio Cortázar, o conto vence o leitor por nocaute, enquanto o romance ganha por pontos.
Os 18 contos de “Pássaros na Boca” e os sete de “Sete Casas Vazias” exploram aspectos mais sombrios da experiência humana. Em cada narrativa, Samanta Schweblin penetra nas profundezas dos medos e anseios de seus personagens, revelando suas vulnerabilidades mais íntimas. Sua prosa habilidosa cria uma atmosfera de suspense e tensão que mantém o leitor cativado e imerso num clima de estranheza até o fim.
Nesse ponto, é necessário registrar que a autora resiste um pouco ao enquadramento de ser uma buscadora da estranheza. “Querer quebrar a realidade nem sempre implica a intenção de ir em direção ao estranho ou ao fantástico, mas, acima de tudo, demonstrar até que ponto o que consideramos ‘real’, ‘normal’ e ‘estabelecido’ também é outra forma de ficção”, disse em entrevista ao jornal “Estado de Minas”, quando do lançamento da coletânea no Brasil.
Além do pleno domínio narrativo, a autora argentina dá um interessante tratamento de normalidade ao inusitado, que acontece principalmente no ambiente doméstico, nas situações corriqueiras, nas relações familiares que se esgarçam. Os jardins das casas são recorrentes espaços onde a desordem se estabelece. Samanta desdramatiza o drama — por sinal, essa é talvez uma das maiores qualidades dos bons ficcionistas.
A escrita da autora argentina é eivada de referências da literatura e do cinema. Em alguns textos há ecos dos brasileiros José J. Veiga (goiano de Corumbá) e do mineiro Murilo Rubião, do patrício Robert Arlt, do cineasta mexicano Alejandro Iñarritu… Nem de longe se está insinuando plágios, mas evidentemente há semelhanças na exploração de mundos parecidos, daí a sintonia com os autores citados.
No conto inicial, “Irman”, dois homens param num bar de estrada, pedem lanche, mas o dono do local não pode servi-los, por não alcançar os ingredientes no alto da geladeira e quem fazia isso era a mulher que acaba de morrer na cozinha. Numa reviravolta, os homens tentam roubar o quitandeiro. Puro nonsense tragicômico a la Quentin Tarantino.
“Pássaros na Boca” é título homônimo de um conto em que uma criança passa a se alimentar de pássaros vivos, o que leva os pais ao desespero. Uma esposa assassinada pelo marido após 29 anos de casamento tem o corpo colocado em uma mala e vira… uma obra de arte (“A mala pesada de Benavides”). Uma ironia à contrafação nas artes modernas e, sem dúvida, denúncia sem panfletarismo da violência contra a mulher, tema que a autora retoma em outros textos.
“Matar um cão” traz um candidato a assassino de aluguel que tem de passar por teste para ser aprovado. A incursão noturna e sinistra pelas ruas e praças de Buenos Aires lembra muito do tema e da atmosfera que Iñarritu criou no filme “Amores Brutos”. Um conto forte, inquietante, desconcertante, que a autora disse ter escrito em apenas quatro horas, o mais rápido de sua lavra.
Mulheres abandonadas por seus homens vão para um lugar esperar que eles voltem para buscá-las… um herdeiro milionário se infantiliza numa loja de brinquedos… o homem que atua como “bala-humana” de circo se preocupa por estar perdendo velocidade… um marido corneado, inebriado de amor pela mulher, conta sua história…
Os tipos estranhos, as situações inusitadas, tudo é costurado em um clima meio onírico, que às vezes exige atenção dobrada do leitor, para que não se perca o fio narrativo. Numa coletânea com 25 contos é normal que haja certa irregularidade, um ou outro texto mais fraco, não tão bem resolvido. Mas não há dúvida de que, em “Pássaros na Boca” e “Sete Casa Vazias”, Samanta Schweblin oferece ao leitor um refinado cardápio literário que incomoda e emociona.
Para terminar, e sem dar spoiler, “Um homem sem sorte” é uma história magistral, simplesmente magistral. Os ministradores de oficinas de escrita criativa, uma atividade que virou moda no Brasil nos últimos anos, podem dá-lo a seus alunos como exemplo de conto perfeito.
Cezar Santos é jornalista e mestre pela Universidade Federal de Goiás.