Ronald Bicca, procurador de Goiás, acha a certidão de nascimento do Brasil

02 abril 2023 às 00h42

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Nilson Gomes
Especial para o Jornal Opção
O advogado e pesquisador Ronald Bicca tem humor tão sutil que o prêmio, o riso, costuma ser dele mesmo. Quer encontrar gargalhada? Busque “Breve história da advocacia pública, do Ministério Público e da advocacia de Estado — Uma investigação luso-brasileira”, quarto livro de Bicca, que está sendo lançado internacionalmente desde o fim de março pela Livraria Resistência Cultural Editora, de São Luís, no Maranhão, a Coimbra, em Portugal. É possível fazer graça com tema árido desse tanto? Parta pra dentro e confira, pois na vasta coleção de documentos descobertos por Bicca na Europa o principal foi a certidão de nascimento do Brasil — do volume constam os espertos, os bobos, os inteligentes, os formadores de uma nação nos trópicos.
Pelo nome se deduziria que o livro, um passeio de mil anos pela trajetória do direito público, é um enfadonho desfile de termos ininteligíveis. Nada disso. A obra começou como dissertação com que o autor conquistou o título de mestre em Ciências Jurídico-Históricas pela Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra. De seu programa de mestrado, dois trabalhos receberam láureas — um deles, o livro de Bicca, com o Prêmio Pedro Gordilho.
A surpresa é inteiramente esplêndida. Tem histórias saborosas, como a do primeiro procurador designado para o Brasil, Afonso Garcia Tinoco, no início do século XVII. Tinoco era juiz de fora em Tomar, cidadezinha no centro do país que 400 anos depois tem 20 mil habitantes, parentes de templários em longínquos graus. O juiz esperava ascensão para o Porto. Suas articulações falharam e foi mandado para este lado do Atlântico. Deu piti, mimimi, escreveu ao rei, apelou para a baixaria. Fracassou novamente, desgraçadamente.

Tinoco, que não é antepassado do sertanejo que fez dupla com Tonico, “tentou de todas as formas escapar” da transferência para o Brasil. Alegou “diversas razões, algumas curiosas, como o temor de que a nomeação fulminaria suas pretensões matrimoniais”. Medo duplo: “Já estava com 50 anos e ainda solteiro” e, “como membro do Tribunal da Relação, não poderia se casar no Brasil”. Suas desculpas se revelaram esfarrapadas. Rejeitadas. Por fim, insistiu para “voltar a Portugal após três ou quatro anos”. Conseguiu o “degredo” de seis anos. Mas gostou tanto do novo mundo que hibernou durante 14 no solzão quente da América. E ficou rico com o negócio de pessoas escravizadas. A solteirice lhe rendeu bem.
João das Regras: uma figuraça
Outra figuraça do livro é João das Regras. Ninguém tem alcunha dessas à toa. É como se o jurista gaúcho Lenio Streck fosse chamado de Lenio do Vade Mecum. A Universidade de Coimbra funciona há 800 anos onde antes era o Paço Real, uma espécie de Palácio do Planalto chique. Num conclave ali, em 1385, João das Regras brilhou com discurso de dividir a história de Portugal, com a aclamação do Mestre de Avis, substituindo a Dinastia de Borgonha. A turma estreante permaneceu dois séculos no poder. Ou seja, João só tinha de folclórico o apelido.
Bicca informa que João das Regras, que viria a morrer apenas em 1404, era doutor pela Escola de Bolonha, na Itália, com ótima oratória e competência jurídica. Se com um pronunciamento transformou a política portuguesa, com a dinastia que ajudou a compor “possibilitou o surgimento da Advocacia de Estado e do Ministério Público em Portugal e, consequentemente, no Brasil”. João das Regras pilotou com bons resultados o que hoje seria chamado de República dos Bacharéis, plantando servidores públicos de primeira qualidade, preparados, no concurso somente de provas testemunhais nas instituições de ensino. Na próxima vez em que for cumprimentar o promotor de justiça de sua comarca, exiba erudição falando que o pai do ofício do nobre órgão do MP é João das Regras. Se não for pedir muito, dê o crédito a quem tem: Ronald Bicca.
Xará de João das Regras, o príncipe regente João VI emerge muito maior da obra de Bicca, consertando a injusta imagem espalhada pelo filme “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati. Grandes líderes europeus rodaram e João VI derrotou Napoleão Bonaparte sem matar um único francês – a menos que algum tenha morrido de raiva ao observar as naus sumindo no horizonte rumo ao Brasil naquele fim de 1807. O príncipe salvou a família real, garantiu a existência de Portugal e ainda manteve o nível dos antecessores, celebrados inclusive pela qualidade das leis elaboradas em seu tempo, ao contrário da atabalhoada codificação republicana.
A obra é um festival de escolhas acertadas não somente nos protagonistas. A parte visual foi encomendada à Oficina de Livros & Casa de Artes Lord Jim, que caprichou nos detalhes, capa, cores, fontes, ilustrações, índice onomástico, aquele que lista em ordem alfabética de sobrenomes os 167 personagens encontrados no texto, do rei Afonso III ao ditador Getúlio Vargas. O prefácio, então, é um de intelectual do primeiro time na Europa, Rui de Figueiredo Marcos, professor catedrático de História do Direito em Coimbra. A orelha, do nunca assaz louvado Ibsen José Casas Noronha, mestre e doutor na quase milenar instituição. Noronha foi vítima de perseguição por militantes fanáticos da esquerda quando lecionava na Universidade de Brasília. O banditismo acadêmico chegou a tal ápice que a UnB, gerida por catástrofes lulistas, extinguiu a cátedra de História do Direito Brasileiro para vetar em definitivo a presença do professor na sala de aula.
Portanto, há maravilhosos personagens no texto e no contexto. Resta aguardar, ansiosamente, que algum roteirista inspirado leia o material de Ronald Bicca e negocie com empresas de streaming. A melhor alternativa seria a Globoplay, do grupo que exibiu a minissérie “O quinto dos infernos”, pois o produto a nascer do livro de Bicca faria contraponto a ela com humor refinado, embasamento histórico e autoridades tão poderosas quanto engraçadas.
Para chegar à deliciosa mistura de história, direito e literatura, Ronald Bicca leu com lupa centenas de documentos inéditos guardados em Portugal. “Busquei as fontes primárias”, diz o autor. Na bibliografia, mais uma enormidade de títulos: cem autores de livros e artigos científicos, numerosa legislação, com alvarás, constituições, decretos, Estylos da Casa de Suplicação, Leis Extravagantes, regimentos, códigos, emendas, regulamentos e medidas provisórias, Ordenações Afonsinas, Manuelinas e Filipinas, além de vasta consulta na jurisprudência do Brasil República (o atual) e em sites de documentos (o futuro).
Falar em futuro, o próximo lançamento de Bicca será “Noções fundamentais de Direito e Teoria do Estado”, com o instigante subtítulo “O demônio socrático”. A obra está pronta desde 2009 e será atualizada para a edição, prevista para ainda este 2023.
Ronald Bicca é professor em duas universidades, procurador do Estado de Goiás de categoria especial, há duas décadas lotado de serviço em Brasília. Foi procurador-geral do Estado de Goiás e presidiu a Anape, a associação nacional da categoria.
“Breve história da advocacia pública, do Ministério Público e da advocacia de Estado” pode ser adquirido no site da editora, resistenciacultural.com.br