Livro de Wendy Guerra faz uma radiografia íntima e nada lisonjeira da vida das pessoas sob o regime comunista em Cuba    

É possível sugerir que a paixão matou o presidente Juscelino Kubitschek. Em 1976, apaixonado pela socialite carioca Maria Lúcia Pedroso, JK viajou para o Rio de Janeiro, num Opala não muito bem conservado, e morreu num acidente, supostamente “armado” por agentes da ditadura civil-militar, embora não exista prova de que não tenha passado de um acidente comum nas estradas brasileiras.

A história da paixão do político mineiro pela bela Maria Lúcia apareceu até em minissérie da Globo, ou seja, foi universalizada para os brasileiros. Na democracia é assim mesmo: vida privada de políticos e artistas não deixa de ser pública, com ou sem escândalo.

Em Cuba, maior campo de concentração dos trópicos — com o acréscimo de que todos vivem, espionados, no mesmo espaço —, é muito diferente. O ex-presidente Fidel Castro manteve uma série de amantes, mas nenhum jornal ou revista do país pode publicar uma linha a respeito.

Dom Juan com um quê de dom Quixote, chegou a cantar jornalistas, artistas e intelectuais cubanas e de outras nações. Mas suas histórias de alcova não podem ser publicadas e quem tentar pode ser preso ou deportado. É crime “contra a pátria” descrever a amoralidade do fauno-ditador.

Albis Torres era amiga de Celia Sánchez, secretária pessoal de Fidel Castro, e decidiu escrever um romance sobre sua vida para que não fosse esquecida.

Celia Sánchez não foi primeira-dama, oficialmente, embora tenha sido “decisiva” para a consolidação do regime cubano e por alguma serenidade do líder dinossáurico. Ao saber da pretensão, Fidel fez as pressões de praxe, e Albis Torres teve de abandonar o projeto e, mais do que isto, deixar o país.

Desde então, na República Machista dos Castradores Castros de Cuba, Celia Sánchez se tornou um esquecido retrato na parede para o qual os cubanos olham, quando muito, uma vez por ano, em homenagens sem muita importância.

Sua história e a de Albis Torres — chegaram a dizer que tinham um relacionamento homossexual — teria sido esquecida não fosse o romance “Nunca Fui Primeira-Dama” (Benvirá, 255 páginas, tradução de Josely Vianna Baptista), de Wendy Guerra. O comunismo, quem diria, é misógino.

Celia Sánchez: líder comunista de Cuba | Foto: Reprodução

Proscrito em Cuba, o romance, não exatamente à clef, porque os nomes são mantidos — exceto o de Wendy Guerra, que se torna Nadia Guerra —, foi publicado em oito países e a autora consagrou-se internacionalmente. Tornou-se colaboradora do jornal “El Mundo”, um dos principais diários da Espanha.

Wendy, talvez para chocar a moralidade amoral dos ditadores cubanos, posa nua e fala desabridamente de sua vida pessoal, tanto em entrevistas quanto em “Nunca Fui Primeira-Dama”.

O título “Nunca Fui Primeira-Dama” sugere uma (auto)biografia, o que o romance não é, pois o objetivo não é contar tão-somente a vida de Celia Sánchez (morta em 1980, de câncer), a preferida do Chefão — o Corleone do comunismo.

Sutil, Wendy conta — ao relatar seus dramas, os de sua mãe e os de Célia — a história de todos os cubanos, seres humanos aprisionados numa ilha cercada e vigiada pelos tubarões comunistas.

O uso da imaginação de modo refinado, sem apelar para o discurso engajado, faz do romance uma pequena obra-prima.

Nadia, alter ego de Wendy Guerra, diz, de cara, que não se pretende “heroína”, e, no final, explicita: “Não quero um livro esquemático”. O romance denuncia, e não apenas nas entrelinhas, as misérias do socialismo, mas sem fazer, em nenhum momento, apologia do capitalismo e das ideias liberais.

“Estamos boiando num ideal flutuante, um não lugar, utopia incrustada no centro do Caribe”, filosofa Nadia. “Chega de adorar santos. Não devo nada aos heróis, não posso, nem mais um dia de minha vida, jurar-lhe lealdade com a mão na testa, pois não poderei cumpri-lo. Desde menina repito seus sonhos como um robô.”

Um dos motivos de o regime dos Castros vetar Wendy Guerra em Cuba é que, no geral, faz um retrato de duas gerações, a mais velha e a mais nova, desencantadas e desencontradas.

Prometerem que o futuro seria radioso e, sessenta anos depois, o presente é miserável e tedioso. Se puderem ler os livros de Wendy Guerra, os jovens, principalmente, se identificarão com sua história de uma vida amputada e, não fosse a literatura, quase que totalmente destruída. “Talvez a amnésia seja a melhor saída”, sugere Nadia. Centenas de cubanos preferem o suicídio, outros escaparem do país.

Wendy Guerra e García Márquez, seu suposto protetor | Foto: Reprodução

Crueza e delicadeza

A execrada Albis Torres, “acusada” de práticas homossexuais e de não seguir fielmente a linha justa do Partido Comunista, foi, sustenta Nadia, uma das principais responsáveis pelo registro da “velha música cubana, isso que é hoje o Buena Vista Social Club”.

Em 1980, Albis Torres saiu do país e perdeu contato com Nadia, que tinha 10 anos, e com o marido, um homem (bissexual) do meio cinematográfico. Teve de escapar de Cuba porque, no país, “as verdades podem ser bombas”.

Certa vez, um homem, tido como “anormal”, disse para Albis Torres: “Tire esta emissora do meu rádio, não a suporto, companheira, não a suporto mais…!” Pode ser louco alguém que não quer ouvir a voz e as notícias unidimensionais de uma ditadura? Nadia pontua que ele é corajoso.

Vilma Espín, Fidel Castro, Raúl Castro e Celia Sánchez | Foto: Reprodução

Em busca da mãe expurgada por Fidel e cia, Nadia fala de sexo com energia, de forma desabrida, sem hesitações: “Desci de minha crista escondida até a escarcha ardente de seu sexo [Nádia está falando de Saúl]. ‘Palavra de esquimó’, eu gosto deste homem, eu o desejo, poderia acreditar nele se não mentisse. Verdade é seu sexo moreno, mediterrâneo, forte, impulsivo como essa ressaca do mar batendo contra as pedras; arrancando algas, despedaçando troncos. Verdade é a mistura desta cubana delicada com o catalão fibroso como o ébano, iluminado como os antigos”.

Nadia fala, com crueza e delicadeza, uma contradição em termos, de sua vida sexual, mais ativa do que promíscua, e isto deve desagradar profundamente o moralismo dos velhos comunistas. Fazem tudo aquilo que Nadia faz, mas contar é pecado, ainda que sejam ímpios.

Wendy Guerra: narradora poderosa e provocativa | Foto: Reprodução

Acossada pela pobreza material, Nadia conta com a ajuda de bolsas de instituições do exterior para procurar sua mãe. Busca-a em Paris e na Rússia, onde a descobre desmemoriada, supostamente com Alzheimer.

Quando seu pai morre, Nadia escuta os elogios e, descontente, pensa: “Em vida, ele foi condenado ao mutismo”.

Em Cuba, e em qualquer ditadura, intelectual refinado e independente só é bom quanto está morto. Alguns (como Guillermo Cabrera Infante), se muito livres, nem mortos. “Aqui ninguém é dono nem da dor. (…) Neste país nunca acontece nada, mas quando acontece, segure a onda, acontece tudo ao mesmo tempo.” Será? Em Cuba o tempo parece congelado.

Celia Sánchez e Vilma Espín | Foto: Reprodução

Ao reencontrar a mãe, Nadia a leva para Cuba. Albis Torres leva junto uma caixa preta, com retalhos da história sobre Celia Sánchez e fotografias familiares. É o mundo pequeno mas significativo de uma desmemoriada.

“O dia em que perdemos a memória não é o dia em que as lembranças se apagam, mas quando não conseguimos organizá-las ou situá-las junto aos afetos. Seus entes queridos começam a ser estranhos para você. O íntimo se torna alheio. No dia em que perdemos a memória, viajamos à deriva. (…) Tudo vai embora com a memória: a vergonha, o recato, o medo. Em compensação, recupera-se a inocência.”

É a situação de Albis Torres e, claro, dos cubanos. A “doença” dos cubanos resulta da proibição de cultivar uma memória singular. Há os resistentes como Nadia, mas a maioria, e mesmo Nadia, em alguns momentos, parece ter um inconsciente castrista, como se tivessem implantando um chip no cérebro dos cubanos.

Ao sugerir um socialismo de face humana, desde que Celia Sánchez tivesse sido mais ouvida, Nadia demonstra certa ingenuidade, mas não a dos néscios, e sim a dos fantasistas. Sugere que os artistas do país, ainda que com a opinião controlada pelo regime, exprimem a dor particular e a dos outros pela música. É uma artista, não uma política.

Ao final, fica-se sabendo que Nadia está só, solteira, sem pais. Talvez tenha ganhado muitos parentes simpáticos — os leitores. Menos em Cuba, é claro.