Romance mistura Tolstói, Larsson, Nietzsche, Sartre, Divina comédia, Shakespeare, erotismo e Bob Esponja
24 outubro 2015 às 11h20
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No livro “Que fim levou Juliana Klein?”, o paranaense Marcos Peres tripudia com os gêneros, a fim de construir um enredo de suspense contagiante e ótimos diálogos
Sérgio Tavares
Especial para o Jornal Opção
Pode parecer, à primeira vista, um tremendo disparate buscar qualquer conexão entre “Guerra e paz”, do russo Liev Tolstói, e “Os homens que não amavam as mulheres”, do sueco Stieg Larsson. Todavia, tanto no maior épico de todos os tempos, publicado nos anos 1800, quanto no thriller policial que inaugura a aclamada série Millennium, há um elemento em comum: o conflito entre dinastias.
Tolstói e Larsson selam destinos de personagens, a partir de suas cepas, frigindo ódios, fraquezas, amores e assassinatos entre gerações, de modo a recriar a História sob a pele de uma história doméstica e autorretratista, porém tão intensa quanto. Vida e morte decorrem da ventura de sobrenomes em ambos os livros; obviamente, respeitando suas ambientações e relevâncias literárias. Não se pode ombrear uma obra-prima secular, que remonta um período de batalhas que reconfigurou o mundo, com uma trama contemporânea de investigação, mistério e crime.
Ou será que pode?
O paranaense Marcos Peres entende que sim. Em seu livro de estreia, “O evangelho segundo Hitler”, ganhador do Prêmio Sesc de Literatura, um vórtex conspiratório reformula o que se sabe do germe do nazismo, liando-o ao escritor argentino Jorge Luis Borges. Agora, em “Que fim levou Juliana Klein?”, Peres mistura Tolstói, Larsson, referências religiosas e filosóficas, Nietzsche, Sartre, “A divina comédia”, rivalidade entre clãs, Shakespeare, uma dose de erotismo e Bob Esponja. O produto dessa colagem é uma literatura pop, no melhor dos sentidos, que tripudia com os gêneros, a fim de construir um enredo de suspense contagiante e ótimos diálogos, no qual o “porquê” tem mais importância que o “quem”.
Tal qual uma boa narrativa de mistério, a condução fica a cargo de um investigador. Irineu de Freitas, delegado maringaense que “conserva um charme de homem experiente”, é convocado a Curitiba, com o propósito de resolver uma sucessão de crimes que está na genealogia de duas famílias arquirrivais: os Koch e os Klein. A inimizade data a Alemanha ancestral, a Frankfurt de onde derivam conflitos de naturezas religiosa, imobiliária e, sobretudo, filosófica, manchando de sangue a história das linhagens e sua herética fusão, num caso de resultado trágico a la Montéquios e Capuletos.
As gerações presentes dominam os campi universitários curitibanos: “Os kleinistas da UFPR e os kochianistas da PUC”. É neste ambiente de ideias que ocorre o primeiro assassinato, no ano de 2005: a filósofa Tereza Koch é morta a tiros pelo professor Salvador Scaciotto, casado com a também filósofa Juliana Klein. Durante os trâmites do inquérito, Irineu se estima pela pequena Gabriela Klein, a qual passa a presentear com objetos com motivos do Bob Esponja. No entanto, uma relação mais íntima com outro membro da família põe sob suspeita o curso de sua investigação.
Avançamos, então, para 2008, quando acontece o desaparecimento de Juliana Klein. Gabriela vê um homem em sua casa, cuja aparência lembra Franz Koch, marido de Tereza Koch. O conceituado professor, um sujeito intragável que persegue em suas alunas interesses além dos acadêmicos, vale-se de três delas como álibis para se livrar da acusação. Entretanto, em 2011, quando Mirna Klein, tia e guardiã de Gabriela, é assassinada, Franz Koch volta ao radar de Irineu, agora afastado do caso, decadente e odiado pela menina a quem ainda guarda apreço. “O que falar a Gabriela?”, tortura-se.
Peres assenta a complexa tessitura de sua trama nesses três planos temporais, alternando-os em capítulos que se conectam por meios de frases ou de elementos de cena. Apesar de densa, a colocação dos fatos (que reconstrói em detalhes a origem das dinastias) não atrapalha o ritmo ágil, fundamental para o interesse do leitor pelo desvendar do mistério, facilitado sobretudo pelos diálogos caprichados e, tantas vezes, divertidos. A piada sobre vampiros, fazendo troça com o mais famoso dos curitibanos, é ótima. Aliás, as reproduções de cenários (e espírito) locais é também um dos pontos altos do livro.
“Todos os caminhos levam a Curitiba, impreterivelmente. (…) Curitiba é um rio, nesta Curitiba viajo, viajo e retorno para um lugar conhecido, para o lugar que me faz ser o que sou, o que, de fato, eu sou”, reflete o delegado. “Na cidade de haicais arlequinais, de eternos filhos e de vampiros tímidos, ninguém interviria a seu favor”, mais à frente ele próprio conclui.
Regressar, fincar a existência num movimento contínuo de aposição entre passado e presente, tem a função de servomotor para a estrutura, bem como para a motivação das intrigas, das traições, dos (auto)enganos, da reviravolta, do ato derradeiro. “A gaia ciência”, obra de Nietzsche, marca a origem da rivalidade entre as famílias e cruza gerações, com o mesmo efeito retumbante e funesto, provocando a mesma crença cega no famoso aforismo do eterno retorno, do tempo circular, de que “tudo o que foi, voltará a ser”, de que os filhos serão os pais dos pais.
Peres consegue construir uma boa trama policial, a partir de abstrações filosóficas. E, ainda que esbarre num excesso de repetições, não sabota o prazer da leitura. No ano passado, o escritor B. Kucinski lançou “Alice –– Não mais que de repente”, em que também situa crimes e investigações no campus universitário, envolvendo o corpo docente. Será que, com “Que fim levou Juliana Klein?”, temos uma nova tendência? Tomara.
Sérgio Tavares é escritor e crítico literário.
Leia trechos do livro “Que fim levou Juliana Klein”, do escritor paranaense Marcos Peres
Sinto em meu sangue. Vejo os fantasmas do passado e sei que o futuro tende a repetir –– não é preciso ser um Klein ou um Koch para saber isso. Estudei Nietzsche e aprendi duas coisas. A primeira é que o livre-arbítrio é uma falácia, um argumento covarde dos que não conseguem perceber que o mundo, para o bem e para o mal, está escrito no passado. Nietzsche escreveu em uma parábola: “Esta conversa, os detalhes desta conversa, o que somos, o que fazemos, tudo já foi feito.” A história é finita e cíclica. O fim gera um novo começo. E se o passado inevitavelmente se repete no futuro, devemos compreender, portanto, que o livre-arbítrio é um argumento não dos otimistas, mas dos hipócritas e dos estúpidos, que não conseguem ler o mundo à sua volta. Assim como na literatura: Montecchios e Capuletos, Klein e Koch, quantos não existiram, quantos ainda não existirão? Quantas vezes um delegado do interior não conversou com a filha de um estrangeiro, em busca de solucionar um caso? Somos arquétipos intemporais, Irineu. O que somos, já o foram muitas vezes, e o serão outras tantas, infinitas…
(…)
A conversa era remetida com facilidade ao novo preso da Penitenciária Central do Estado, em Piraquara, Salvador Scaciotto. E ainda que ele constantemente fosse lembrado, Irineu fazia forças para não entrar logo no assunto. Ladino, via o chá fumegante e o sorriso de sua interlocutora, mas sabia que aquela finíssima camada de confiança poderia ruir para nunca mais ser refeita. Foi assim que decidiu abordar o assunto “dinastia”, pedindo à mulher que contasse sobre o sangue que pulsava em suas veias. Então, enquanto Juliana falava palavras como “Klein”, “Frankfurt” e “dinastia”, seus olhos pareciam ganhar uma estranha coloração –– um argumento que soava clichê, mas era verdadeiro. Não era o verde de seus olhos que ganhava novo matiz, portanto: era a maneira como a moça reagia quando indagada sobre Arkadius, Gunda e Derek, o modo como, inconscientemente mais receptiva e atenta, erguia os ouvidos, arqueava as sobrancelhas, franzia o vermelho lábio e acendia os olhos, que, ao se abrirem, permitiam que mais luz incidisse sobre eles, alterando, afinal, sua coloração. Mudava a luminosidade do olhar, abaixava os longos cílios e logo aquela metralhadora de inquisição cessava fogo, enquanto sua dona fingia mexer o chá. Recuava, a seu modo. Falar dos ancestrais parecia assunto pesaroso, invocava fantasmas de Frankfurt am Main.
“Não me disse de sua família”, retomou o assunto Irineu, ao ser pego em flagrante contemplando sua beleza.
“Claro que disse”, retrucou a mulher, sorrindo, novamente na ofensiva. “Sou a caçula de Derek, neta do grande Arkadius Klein e de Gunda Graub, que são famosos na Alemanha…” Parou, corrigiu: “Ou melhor, foram célebres. A fama foi repentina, apenas fruto de seus atos. Hoje, ninguém mais se lembra de nenhum Klein em Frankfurt. São todos fantasmas…” Parou a frase no meio, coçou a cabeça, pediu desculpas, estava novamente errada. “Ah, meu tio Konrad foi herói na guerra e virou nome de rua! É o único Klein sobrevivente. Mas isso não muda nada, é apenas uma rua com o nome de um fantasma. Hoje em dia, em Frankfurt, minha família é ponto de referência para padarias e farmácias, só isso: ‘Passe a Konrad Klein e vire à esquerda.’ ‘Siga pela Klein até o número 300.’ Para isso servem os fantasmas: para referenciar padarias e butiques…”
No livro, o delegado-narrador é convocado a Curitiba com o propósito de resolver uma sucessão de crimes que está na genealogia de duas famílias arquirrivais: os Koch e os Klein