Renato Tardivo: “Não faz sentido transformar em ficção afetos que vivencio na clínica”
11 abril 2021 às 00h00
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Psicanalista-doutor em Psicologia Social da Arte pela USP estreia no romance com o livro “No Instante do Céu”
Márwio Câmara
Especial para o Jornal Opção
Renato Tardivo é escritor e psicanalista. Mestre e doutor em Psicologia Social da Arte pela Universidade de São Paulo (USP), professor e supervisor da Universidade São Judas Tadeu e membro do Psia-Laboratório de Pesquisas e Intervenções em Psicanálise (IPUSP). Autor, entre outros, de “Porvir Que Vem Antes de Tudo — Literatura e Cinema em ‘Lavoura Arcaica’” (Ateliê/Fapesp) e “Silente” (7Letras). Publicou recentemente o romance “No Instante do Céu”, editado pela Reformatório.
Anseio pelo romance
Desde a publicação do meu primeiro livro, “Do avesso” (contos, Com-Arte/USP, 2010), vinha flertando com – e perseguindo – o gênero romance. Fiz algumas tentativas, que não posso considerar malogradas, porque foram publicadas. O conto “Silente”, incluído no livro de mesmo nome (7 Letras, 2012), foi escrito inicialmente com o intuito de ser um romance. O narrador chega a explicitar essa condição durante a trama.
Mais uma tentativa de escrever um romance resultou na narrativa-breve “Castigo” (E-galáxia, 2015). E, naquele mesmo ano de 2015, lancei “Girassol voltado para a terra” (Ateliê), livro de mini e microcontos.
Então, após a publicação desses livros, comecei a escrever uma história em que o narrador revisita sua adolescência. “Dessa vez concluo o romance”, eu pensava. Mas, depois de meses me dedicando ao projeto, constatei que, no máximo, teria uma novela, ou um conto longo, o que no fim das contas daria no mesmo. Mas, como ocorrera com “Castigo”, o resultado me agradava. Algum encaminhamento ao texto, que não a gaveta, haveria de ser dado.
Camadas narrativas
Quando terminei a primeira versão dessa narrativa sobre a adolescência é que surgiu a ideia de inseri-la em um projeto no qual o mesmo narrador revisitaria seu passado recente e escreveria sobre o presente, ambos traumáticos, e apresentaria uma perspectiva de continuidade. A essas duas camadas, decidi inserir uma terceira – com postagens do narrador nas redes sociais (WhatsApp, Facebook, Instagram). Pronto: tinha os elementos para compor “No instante do céu”, meu romance de estreia, que antes da leitura e edição de Marcelo Nocelli, da Reformatório, por onde o livro saiu, ainda contou com as leituras críticas de Juliana Caldas, Sérgio Tavares e João Carrascoza.
“No instante do céu” é um texto que se tematiza e aborda uma adolescência sofrida, uma história de amor (e desamor) por uma mulher, uma história de amor por um filho e anuncia o futuro, sempre em aberto.
Dificuldade e amadurecimento
O livro surge, primeiramente, da minha motivação em escrever um romance e, de certo modo, também a partir das minhas impossibilidades de escrevê-lo. O primeiro eixo narrativo, em que o narrador rememora a adolescência, começou a ser escrito com esse propósito. A temática da adolescência me interessava muito, a minha especificamente foi bem difícil, e eu ainda não a havia encarado de frente em minha literatura.
Quando notei que a narrativa, sozinha, não se sustentaria enquanto romance, surgiu a ideia de criar uma outra camada que iria explorar os afetos, relacionamentos e separações do mesmo narrador, mas no presente e em um passado mais recente. Aos poucos, fui me dando conta de que a insuficiência que atravessava as experiências do narrador se articulava com a insuficiência da própria linguagem – daí eu ter tematizado o romance fracassado no próprio romance. A terceira camada – que reúne mensagens e postagens em redes sociais – foi um desdobramento natural, para situar o livro na contemporaneidade e, pela fragmentação, trazer mais carne aos afetos do narrador. Procurei trabalhar a fugacidade dos encontros humanos no título do livro, expressão que dita por personagens do romance…
Se meus textos nascem com maior ou menor dificuldade, isso varia. No caso do romance, forma que eu perseguia há tanto tempo, foi mais difícil do que nos meus livros anteriores de contos — em que, tomado por inspiração, a escrita saía mais como um jorro. Mas vi nessa dificuldade um amadurecimento: aliar transpiração e inspiração, encontrar o tempo e a voz (no caso, as vozes) demandados pelo texto.
O professor e o psicanalista
Creio que as minhas diferentes áreas de atuação se alimentam umas das outras. A transmissão (professor), a escuta (psicanalista) e a criação (literatura) referem-se a uma forma mesma de ler o mundo, abrir-se ao outro e olhar para dentro. O objetivo é, por caminhos diferentes, estabelecer diálogos, construir conexões, promover transformações. Mas as relações entre literatura e psicanálise devem ser consideradas com muita cautela. Frequentemente me perguntam se minha clínica alimenta a minha ficção, e sempre digo que ocorre o oposto: é a literatura – e mais amplamente as artes – que alimenta minha clínica. Isso quer dizer que não parto da psicanálise à literatura. Ao contrário, caminho da literatura à psicanálise. Assim, não faz sentido, na minha experiência, transformar em ficção afetos que vivencio na clínica, tanto por razões éticas, envolvendo o sigilo e o cuidado com as pessoas que eu atendo, por certo, mas também porque simplesmente não decorrem desse contexto as questões que me movem a escrever ficção.
Márwio Câmara é escritor, jornalista, crítico literário e professor. Autor do livro “Escobar”. É colaborador do Jornal Opção.
Bastidores
Bastidores é um quadro idealizado pelo jornalista Márwio Câmara, com o objetivo de registrar depoimentos de escritores brasileiros contemporâneos quanto aos seus respectivos processos criativos.