Salatiel Soares Correia

Especial para o Jornal Opção

Quem você, leitor, prefere como escritor: o peruano Mario Vargas Llosa ou o colombiano Gabriel García Márquez?

Essa dúvida se equivale à famosa comparação a respeito de quem foi o melhor jogador de futebol: Pelé ou Garrincha. No famoso movimento que promoveu os escritores latino-americanos na Europa, conhecido como o Boom Latino-Americano, esses dois autores foram figuras-chave. Ambos não apenas definiram suas respectivas nações por meio de suas obras, eles também influenciaram a narrativa global com estilos e temas distintos.

Mario Vargas Llosa, um profundo conhecedor do pensamento de Sartre, foi mais intelectual que Gabriel García Márquez. Por um lado, o peruano se destacou como um ensaísta versátil, explorando diversos estilos literários e produzindo um volume de obras maior que o do colombiano. Por outro, Gabo, como Gabriel era conhecido entre os mais íntimos, foi um artista cujo talento criativo o fez produzir uma obra-prima que é considerada o segundo romance mais importante da língua espanhola: Cem Anos de Solidão.

Do ponto de vista ideológico, os dois escritores optaram por caminhos completamente distintos. Vargas Llosa tornou-se um ícone da direita, enquanto Gabriel García Márquez se firmou como uma figura da esquerda. A amizade de Gabo com Fidel Castro, o ditador cubano, é bem conhecida e simboliza suas inclinações políticas. Além de Cem Anos de Solidão, García Márquez escreveu outras obras impactantes, entre elas O Amor nos Tempos do Cólera, considerada por muitos como uma das mais belas e intensas narrativas sobre o amor. Enquanto isso, Vargas Llosa produziu uma série de romances que deixaram marcas significativas no mundo literário da América Latina, incluindo Conversa na Catedral, A Guerra no Fim do Mundo e O Sonho do Celta, entre outros.

No que diz respeito ao reconhecimento, García Márquez ganhou o Prêmio Nobel de Literatura na década de 1960, enquanto Vargas Llosa só foi agraciado com o mesmo prêmio nos anos de 2000. Muitos atribuem tal diferença ao fato de que ser de esquerda era uma postura simpática à comissão sueca responsável pela escolha dos premiados — uma opinião com a qual eu, pessoalmente, concordo. A amizade entre os dois escritores terminou de forma dramática, com um soco no olho direito que Vargas Llosa deu em Gabriel García Márquez. A origem dessa agressão permanece uma incógnita até hoje. Alguns atribuem o incidente ao fato de García Márquez ter revelado à Patricia, esposa de Vargas Llosa, uma aventura amorosa do amigo; outros sugerem que foi devido a um possível galanteio que Gabriel fez a Patricia.

Apesar do rompimento dramático entre eles, o impacto de suas obras transcendeu suas vidas pessoais, marcando para sempre a literatura mundial. Esses escritores capturaram, de formas distintas, a essência da América Latina: suas lutas, contradições, belezas e tragédias. Vargas Llosa é, muitas vezes, descrito como um cronista das complexas dinâmicas de poder na sociedade. Seus romances frequentemente abordam questões políticas e sociais, assim, desnudando as hipocrisias e injustiças inerentes aos sistemas políticos. Em Conversa na Catedral, ele explora a corrupção e a degradação moral da sociedade peruana durante a ditadura de Manuel Odría, usando uma narrativa complexa que desafia o leitor a mergulhar nas profundezas das relações humanas e sociais.

Já La ciudad y los perros (A Cidade e os Cães), outro marco na carreira de Vargas Llosa, expõe a brutalidade e a repressão no ambiente militar peruano, revelando a violência latente na sociedade. Esses temas refletem não apenas a realidade do Peru, mas, também, a de muitos países latino-americanos durante os períodos de ditaduras e governos autoritários. Além de seus romances, Vargas Llosa destacou-se como ensaísta e crítico literário, escrevendo extensamente sobre a política, cultura e literatura. Sua obra é marcada por um profundo rigor intelectual, que reflete a influência de pensadores como Jean-Paul Sartre, Albert Camus e Friedrich Nietzsche. Essa inclinação intelectual, combinada com sua habilidade narrativa, fez de Vargas Llosa uma figura central na literatura, bem como no debate político e cultural da América Latina.

Por sua vez, Gabriel García Márquez é celebrado como o mestre do realismo mágico, um estilo literário que mescla o real e o fantástico, criando uma atmosfera em que o extraordinário se torna parte integrante do cotidiano. Cem Anos de Solidão é a obra que melhor exemplifica essa abordagem, levando os leitores a um universo em que o tempo é fluido e a história de uma família se confunde com a história de toda uma região. Esse romance, considerado por muitos a obra-prima de García Márquez, não só trouxe reconhecimento internacional ao autor, ele também ajudou a consolidar o realismo mágico como um dos gêneros mais influentes da literatura latino-americana. A narrativa de García Márquez, rica em imagens e simbolismos, convida o leitor a explorar as fronteiras entre o real e o imaginário, oferecendo uma visão única do mundo latino-americano.

Além de Cem Anos de Solidão, obras como O Amor nos Tempos do Cólera e Crônica de uma Morte Anunciada demonstram a habilidade de García Márquez em capturar as nuanças das relações humanas, o impacto do passado no presente e as complexidades do amor e da morte. Suas histórias, embora enraizadas na realidade da Colômbia e da América Latina, alcançam uma universalidade que ressoa com leitores de todas as culturas. A divergência ideológica entre os dois escritores é um ponto crucial em qualquer comparação entre Vargas Llosa e García Márquez. Enquanto Vargas Llosa se tornou um defensor do liberalismo e um crítico feroz de regimes autoritários, incluindo os de esquerda, García Márquez permaneceu um aliado de figuras como Fidel Castro, defendendo ideais socialistas.

Essa diferença de visão política marcou suas vidas pessoais, além de influenciar suas obras. Vargas Llosa frequentemente criticou o autoritarismo em todas as suas formas, seja ele de direita ou de esquerda, enquanto García Márquez, muitas vezes, incorporou em suas narrativas uma visão mais romântica e idealista das lutas populares, refletindo sua simpatia por movimentos revolucionários. O legado de Vargas Llosa e García Márquez vai além de suas contribuições literárias individuais. Juntos, eles ajudaram a colocar a literatura latino-americana no mapa mundial, contribuindo para um movimento que expandiu as fronteiras da narrativa e desafiou as convenções literárias.

Mario Vargas Llosa, com sua prolífica produção e capacidade de abordar temas complexos com profundidade intelectual, continua a ser uma referência para escritores e intelectuais ao redor do mundo. Seus ensaios, peças teatrais e romances são estudados e debatidos não apenas por sua qualidade literária, mas também por sua relevância para a compreensão das questões sociais e políticas contemporâneas. Gabriel García Márquez, por sua vez, deixou uma marca indelével na literatura com sua habilidade de transformar o cotidiano em algo mágico e universal. Suas histórias, que transcendem o tempo e o espaço, continuam a inspirar escritores e leitores, provando que a literatura pode ser uma ponte entre o real e o imaginário, oferecendo novas formas de ver e entender o mundo.

A comparação entre Mario Vargas Llosa e Gabriel García Márquez é, de muitas maneiras, uma celebração da diversidade e da riqueza da literatura latino-americana. Ambos os escritores, com suas diferenças estilísticas, temáticas e ideológicas, contribuíram de forma incomensurável para o cenário literário mundial. Se a preferência por um ou outro é uma questão de gosto pessoal, não há dúvida de que tanto Vargas Llosa quanto García Márquez deixaram um legado que continuará a influenciar gerações futuras de escritores e leitores.

Posto isso, encerro este pequeno ensaio por onde iniciei: Quem você, leitor, prefere como escritor: o peruano Mario Vargas Llosa ou o colombiano Gabriel García Márquez?

Pessoalmente, escolho Mario Vargas Llosa, pedindo muito perdão a esse grande intérprete da alma da América Latina que foi Gabriel García Márquez.

Salatiel Soares Correia é engenheiro, mestre em energia pela Unicamp e autor de oito livros. É colaborador do Jornal Opção.