Que viagem é essa? Para onde fui, sem nunca ter ido?
10 novembro 2025 às 16h53

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Ycarim Melgaço
Professor e escritor, autor de “História das Viagens e do Turismo” (entre outros). Instagram: @ycarim
Uma reflexão sobre o turismo não intencional das imagens na era digital.
Ela, na casa dos vinte anos, trabalha como cabeleireira.
Nunca sentiu necessidade de um passaporte, o Taj Mahal nunca lhe passou pela cabeça, nem sequer ensaiou uma saudação indiana. Sua vida se desenrola em Belo Horizonte, aquela cidade acolhedora, cercada por montanhas, onde o sotaque, o portão familiar e o café da tarde ainda são formas de reconhecimento.
Seu universo se limitava ao salão, ao bairro tranquilo, à vizinhança amiga. Até que, repentinamente, sem qualquer aviso prévio, ela se viu do outro lado do mundo.
Ou melhor, uma imagem sua embarcou nessa aventura.
A fotografia, hospedada num banco de imagens online, conquistou o globo, reaparecendo em painéis gigantes, manchetes de jornais e debates políticos, acredite, na própria Índia.
Um rosto anônimo transformado em notícia. Uma “indiana” genuinamente mineira, criada por equívoco. Ou talvez, obra de um algoritmo.
A globalização prometia unir as pessoas, mas o que realmente se aproximou foram as imagens. Hoje, as imagens são as verdadeiras viajantes.
Atravessam oceanos, integram discursos, ilustram apresentações de políticos e promovem causas que jamais imaginamos apoiar.
As pessoas permanecem; as imagens partem em disparada. E partem sem demora; sem bagagem, sem visto e, acima de tudo, sem pedir permissão.
Na época dos álbuns de família, a fotografia representava um gesto íntimo. Guardava-se o retrato como quem preserva uma parte de si.
Agora, as imagens ganharam liberdade, tornaram-se nômades, independentes, errantes. E nós, seus donos originais, nos transformamos em meros vestígios.
Foi assim que uma simples fotografia de uma brasileira surgiu como “prova” num processo eleitoral na Índia.
Rahul Gandhi, líder da oposição, acusava o governo de manipulação de dados cadastrais, apresentando 22 eleitores distintos, todos exibindo o mesmo rosto. Um rosto que jamais deixou sua cidade natal.
Eis a ironia involuntária da era digital: o corpo permanece, mas o rosto viaja o mundo.
O direito à imagem tornou-se uma nota de rodapé nos “termos de uso”. A cada clique, entregamos fragmentos de nós mesmos e ninguém se preocupa em perguntar se desejamos ser exportados.
Vivenciamos o que poderíamos chamar de turismo involuntário das imagens: são elas que viajam incessantemente, fazem escalas e recebem selos. Enquanto isso, permanecemos estáticos, tentando entender onde estamos sendo vistos.
E, com a inteligência artificial, a confusão se intensifica: já não é sequer necessário existir para estar em todos os lugares. Rostos são inventados, vozes simuladas, sorrisos replicados.
Somos substituíveis por versões aprimoradas de nós mesmos. Baudrillard e Debord já nos alertavam: o espetáculo triunfou sobre a experiência.
Agora, as imagens possuem uma vida útil maior que a das pessoas.
A antiga questão; “quem sou eu?” Perdeu sua relevância. O que realmente importa perguntar é: “Onde estou sendo eu, neste exato instante?”
Talvez a jovem de Belo Horizonte nunca tenha saído do Brasil. Mas, de certa forma, o mundo inteiro já passou por ela, sem visto, sem fronteiras, e sem que ela tivesse consciência de estar viajando.
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