Que bobagem! mostra quanta bobagem pode ser dita em nome da ciência. O que querem Pasternak e Orsi?
13 agosto 2023 às 00h01
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Candice Marques de Lima
Especial para o Jornal Opção
Tenho acompanhado a repercussão que o livro “Que Bobagem! Pseudociências e Outros Absurdos Que Não Merecem Ser Levados a Sério” (Contexto, 336 páginas), de Natalia Pasternak e de seu marido Carlos Orsi — jornalista —, tem produzido no campo da psicanálise. A começar pelo título, é perceptível que os autores pretendem muito mais vender exemplares do que propor uma discussão ou divulgação científica.
Sobre o livro, vi uma entrevista de Natalia Pasternak, no programa “Em Pauta”, da GloboNews, ao comentarista e professor da USP Demétrio Magnoli. Li textos de psicanalistas, assisti vídeos do Christian Dunker no YouTube, entre outros, e vi um debate entre o professor-doutor da Unicamp Mário Eduardo Costa Pereira e um dos autores da obra, Carlos Orsi.
No programa da GloboNews, uma sorridente Natalia Pasternak e um mal-humorado (comme d’habitude) Demétrio Magnoli teciam críticas à psicanálise.
Ao final de sua fala, Natalia Pasternak, em tom chistoso, falou sobre a culpa ser sempre dos pais, um jargão para lá de batido e não verdadeiro sobre a psicanálise que a bióloga acredita conhecer.
Demétrio Magnoli, supostamente incomodado pela psicanálise ser reconhecida pela elite intelectual brasileira, parecia feliz em poder confrontar uma prática clínica que ele parece desconhecer que se estende em todas as camadas sociais desde Freud. Basta que saia do estúdio da GloboNews e ande por São Paulo. Verá que a psicanálise está também nas ruas, com psicanalistas trabalhando com pessoas em situação de rua. Na praça Franklin Roosevelt (Bairro Bela Vista, em São Paulo), por exemplo, há atendimento psicanalítico gratuito todos os sábados, das 11 às 14h.
Christian Dunker, professor titular da USP e psicanalista, escreveu três artigos para seu blog no UOL para rebater as bobeias que Natalia Pasternak e seu marido escreveram sobre a psicanálise.
Na parte 1 de seu artigo, Christian Dunker mostra como e o quanto trabalha um pesquisador científico em psicanálise e escreve: “Publiquei mais de 100 artigos em revistas científicas, mais uns tantos livros, fui a mais de mil ‘eventos’ científicos, tenho um Lattes cuja pontuação no Google Scholar é (i10)=77 e (h) 29 e Natalia tem (hi)=8 e (i10)=3, eu sou mais “científico que ela”? Claro que não!”. Tais informações já seriam suficientes para mostrar que psicanalista faz ciência sim e com impacto muito maior do que a Natalia Pasternak.
Mas Christian Dunker continua por três longos artigos a responder à impostura pseudocientífica dos autores do livro.
No debate no canal da Unicamp, no YouTube, um constrangido Carlos Orsi não conseguiu debater com o professor-doutor Mário Eduardo Costa Pereira. O mestre apresentou artigos científicos na “Nature” e na “Science” que demonstravam a cientificidade da psicanálise.
Diante disso, o jornalista Carlos Orsi admitiu desconhecer um artigo de 2004 publicado em uma das revistas. Não soube explicar qual o conceito de inconsciente que traz em seu livro, além de se esquecer do nome de um dos seus livros favoritos. Fez um favor à psicanálise, pois demonstrou empiricamente como o inconsciente comparece por um lapso de memória. Basta ler “Psicopatologia da Vida Cotidiana”, publicado em 1901 por Sigmund Freud.
É importante destacar que qualquer iniciante em pesquisa científica sabe fazer pesquisa bibliográfica ou integrativa em revistas científicas quando quer pesquisar sobre determinado assunto. Isso é básico. Mas o casal que escreve um livro com pretensões científicas preferiu se basear em autores críticos da psicanálise ao invés de pesquisar o que seus pares escreveram em revistas científicas em anos recentes.
Uma pergunta que ficou a respeito do debate no canal da Unicamp foi por qual motivo a Natalia Pasternak não participou do debate que ocorreu em uma das mais prestigiosas instituições de ensino superior do país. Se ela quer discutir ciência, seria mais interessante que fosse falar com um professor-doutor em uma universidade pública onde se produz ciência do que ir divulgar seu livro em um canal de televisão, não é?
A respeito do livro “Que Bobagem!” li o capítulo que trata da psicanálise. É escrito de maneira fluente e com linguagem simples. Baseia-se em autores críticos da psicanálise, como Adolf Grunbaum, que escreveu a esse respeito na década de 1980, e não se aprofunda em nenhum texto de Freud ou de qualquer outro psicanalista, ficando na superficialidade da discussão. Usa o termo “inconsciente psicodinâmico”, que não é utilizado na psicanálise.
Ademais, para Natalia Pasternak e seu companheiro Carlos Orsi a psicanálise tem de responder a um determinado modelo de ciência e demonstrar sua legitimidade a partir daí. Tal argumento já pode ser contestado por qualquer um que tenha feito iniciação científica em uma instituição de ensino superior de qualidade e que saiba que há vários métodos científicos além daqueles baseados em evidências. Tudo indica que se esqueceram de estudar Epistemologia.
Enfim, “Que bobagem” é uma dessas obras que terá duração de um verão, se tanto. Oxalá os autores ganhem algum dinheiro com isso, já que não se sabe se ganharão credibilidade. Freud, se vivo estivesse, poderia dizer: “Todos esses que aí estão/Atravancando meu caminho,/Eles passarão… eu passarinho!” — parafraseando o bardo brasileiro Mario Quintana.
A psicanálise como teoria, método e prática persiste e insiste há mais de cem anos. Está em diversos programas de pós-graduação em universidades de renome tanto públicas quanto privadas e conta com publicações em revistas científicas importantes. Em todo o mundo.
Candice Marques de Lima é doutora e professora na Faculdade de Letras da Universidade Federal de Goiás.