Quando a excelência escolhe a periferia
02 dezembro 2025 às 15h54

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Há acontecimentos que deslocam paradigmas. Não apenas porque são grandiosos em si, mas porque alteram coordenadas históricas, sociais e simbólicas. A inauguração do Teatro Baccarelli, em Heliópolis, é um desses acontecimentos raros, daqueles que pedem pausa, reflexão, e, sobretudo, celebração.
Em um país onde a palavra vulnerabilidade costuma aparecer associada a ausências de equipamentos culturais, de políticas públicas eficazes, de oportunidades reais, erguer uma sala de concertos de alta qualidade acústica no coração de uma favela é mais do que um gesto de coragem: é um ato de reorientação civilizatória. É dizer, com todas as letras, que excelência não é privilégio, mas direito. E que música clássica, sim, é coisa de favela.

A inauguração do teatro, no dia 25 de novembro, começou com uma cena que já entrou para a memória afetiva da música brasileira. O maestro Isaac Karabtchevsky, prestes a completar 91 anos, subiu ao pódio para reger a Sinfônica Heliópolis, mas a dor lombar o impediu. Em vez de regência, presenteou o público com palavras quase meditativas sobre transcendência, arte e cura.
O silêncio que tomou a plateia de 550 lugares não era comum. Era reverência. Era reconhecimento. Era a consciência de que aquele instante, um maestro histórico, uma orquestra nascida na periferia, uma sala nova e radiante, materializava décadas de luta contra o impossível.

Com a impossibilidade de Karabtchevsky, o próprio Edilson Ventureli, maestro e CEO do Instituto Baccarelli, assumiu a regência. Antes, porém, deixou clara a mensagem que atravessou toda a cerimônia:
Música clássica é coisa de favela, sim!
E é importante repetir: não se trata apenas de levar repertório europeu para Heliópolis. Trata-se de afirmar que o palco pertence a todos e que ali também viverão o funk, o rap, o trap, o hip hop e tantas outras linguagens que pulsaram antes que o primeiro violino ali chegasse.

A construção do Teatro Baccarelli rompe com uma lógica histórica brasileira: a de que equipamentos culturais de alto padrão pertencem apenas aos centros ricos das cidades. A nova sala, com acústica projetada pelo mesmo escritório responsável pela Sala São Paulo, possui: acústica de primeiro nível, já evidente no concerto inaugural; 550 poltronas coloridas, a refletir o acervo também colorido das edificações vizinhas; fosso de orquestra, abrindo espaço para ópera e dança e integração direta com o prédio do Instituto, ampliando sua dimensão pedagógica.
Difícil superestimar o impacto desse gesto. Em comunidades onde o horizonte muitas vezes é estreitado por urgências cotidianas, um espaço como esse amplia o tempo e o olhar. Transforma trajetórias individuais e coletivas. Cria pertencimento. Injeta esperança onde o Estado, tantas vezes, retirou.
Há mais de 30 anos, o Instituto Baccarelli prova que política pública bem aplicada transforma vidas. E aqui, é preciso dizer sem medo: a Lei Rouanet, tantas vezes mal compreendida, manipulada ou usada como bode expiatório, foi fundamental para viabilizar grande parte dos R$ 48 milhões investidos na construção do teatro.
A existência do Teatro Baccarelli é argumento vivo, concreto e incontornável sobre o papel do Estado no fomento à cultura e na redução das desigualdades. Famílias inteiras já foram transformadas pelo acesso gratuito a educação musical qualificada. Hoje, mais de 1.600 alunos, quatro orquestras e dezenove corais sustentam diariamente esse movimento de emancipação.
Nada disso aconteceria sem um comprometimento de : professores, gestores, artistas, parceiros, patrocinadores e uma comunidade inteira que acredita na música como ferramenta de dignidade.
O Teatro Baccarelli inaugura mais do que um espaço. Inaugura uma nova narrativa para a cultura brasileira. Uma narrativa em que: a periferia não recebe migalhas, mas equipamentos de excelência; jovens vulneráveis não são vistos como “alvos” de políticas compensatórias, mas como protagonistas; a arte deixa de ser ornamento e passa a ser política de transformação social.
Que Heliópolis inspire Goiânia, Manaus, Salvador, Recife, Brasília, e tantas outras cidades. Que inspire governos, universidades, secretarias, institutos e movimentos sociais. Que inspire todos nós educadores, artistas, produtores, gestores culturais, a repensar o lugar da cultura no país. Porque quando a excelência chega onde ela nunca chega, a mudança não é apenas estética. É estrutural, é definitiva, e principalmente, libertadora. Música clássica é coisa de favela, sim. E Heliópolis acaba de nos mostrar como o Brasil pode soar quando acreditamos nisso com a força de um fortíssimo.
Ouviremos a Orquestra Sinfônica de Heliópolis, em concerto realizado na Sala São Paulo em 20 de dezembro de 2016, sob a regência do Maestro Isaac Karabtchevsky interpretando a Abertura 1812, op.49 de P. Tchaikovsky (1840 – 1893).
Fique atento! Essa obra composta para comemorar a vitória da Rússia sobre a invasão napoleônica de 1812, tem uma estrutura programática que evoca pré-guerra, conflito, tensão, clímax e vitória. Ao ouvir, procure observar como a orquestra dá forma dramática à narrativa com a transição entre os momentos de serenidade e os de tensão crescente, até chegar ao clímax da obra.
Importante também, saber que essa orquestra não é “mais uma”, mas a Orquestra Sinfônica Jovem de Heliópolis, com raízes comunitárias e de inclusão social. Tudo isso traz um “peso” simbólico: músicos jovens de periferia interpretando um repertório de porte internacional, num palco consagrado como a Sala São Paulo.
