Inspirado nos “Quadros Parisienses”, de Charles Baudelaire, poeta curitibano traz à tona a experiência íntima do indivíduo marcado pela transitoriedade temporal e outros temas associados

“Embora curto, ébrio ou falho,/ o sono é o cobertor do homem.” Versos do poema “A um mendigo”, de Wagner Schadeck

MADHOUSE

Chegaram flores, cartas e lembranças,
mas ele não estava. Um rato apenas
viu que baldaram tantas esperanças
naquele ato ensaiado em várias cenas.

Os monitores, sem seus eletrodos,
piscavam, emitindo agudo alarma.
Cápsulas, comprimidos, esses todos
não seriam mortíferos como arma?

Mesmo assim, essas drogas aguardavam,
qual num doceiro onde adormecem balas,
bocas sem dentes que tanto as mascavam,
para depois ao chão regurgitá-las.

Tudo repousa. Enquanto tristes, sós,
os outros doentes sentem-se perplexos
na despedida. Há nas gargantas nós
a lhes emaranhar gritos complexos.

Ele partiu! Não mais olhar da esquina
no admirado céu sujar o sol.
Da janela levou uma cortina
em seu pescoço como um cachecol.

E não bastasse viver sem apriscos,
Resta seu o corpo pendurado e pasmo.
Mas nos seus olhos cerrados há ciscos
e a língua arreganhada de sarcasmo.

BUREAU

Deixaste tua papelada
acumular. E são folhas
que com tuas vistas zarolhas
lês não entendendo nada.

São jornais de ontem; são resmas
e guardanapos bem sujos,
nos quais dançam caramujos,
babando com suas lesmas.

Lá estão bulas de remédios,
provas com muitas rasuras,
alguns planos de aventuras
junto a projetos de prédios.

Lá estão em folhas puídas
dois testes de gravidez.
Mas quem sabe se os bebês
tiveram sorte em suas vidas?

A noite esvazia a praça.
larga as botinas, faceiro,
e arruma o teu travesseiro
com a garrafa de cachaça,

pois termina mais um ato.
Com mão rápida desata
em teu pescoço a gravata
de cadarço de sapato.

A cidade vela. E o céu
risca seus fósforos. Medras
num bocejo. Como as pedras,
és peso sobre o papel.

A UM MENDIGO

Dormes. E outros já não dormem.
Tens jornais como agasalho.
Embora curto, ébrio ou falho,
o sono é o cobertor do homem.

EPIFANIA

Há no culto fiéis de olhos fechados
que na esperança por mais um milagre
recebem todos juntos bênçãos, brados,
espargidos à esponja com vinagre.
Mãos na cabeça, seus braços para o alto,
com súbita aparência de um assalto.

[relacionadas artigos=” 91185 “]

NOSFERATU

A chuva espanta os pássaros. As gentes
Infestam como ratos a bodega.
Requestam tragos. A atendente esfrega
os canecos. Um pulha cerra os dentes

na coxa escaveirada. A poeira encarde
vidros de estufa e fétidas compotas.
Servindo, a garçonete raspa as botas
contra o reboco. Mas por toda a tarde

um homem numa mesa espia os preços
da tabela. Nos números impressos
Preme os olhos. A quem murmura prece?

Quanto mais bebe mais se afoga em mágoa.
Pendurado em seu braço, enxugando a água
das asas, há um morcego que adormece.

HORA MARCADA

Preso ao tempo burocrata,
amarras outra gravata
no pescoço. E feito o laço,
empreendeste o último passo.

Na abrupta queda, suspenso,
eis que oscila o corpo imenso
e impreciso que recorda
um pêndulo preso à corda.

E este trabalho sem pausa
quem sabe fosse por causa
dos objetivos que obsedas.

É que o labor a que te alças
pôs no bolso de tuas calças
cerca de trinta e três moedas.


Wagner Schadeck nasceu em 1983, em Curitiba, onde vive. É tradutor, ensaísta, editor e poeta. Colabora com a Revista Brasileira (ABL), com a Revista Poesia Sempre (BN), entre outros. Em 2015, organizou a reedição de “A peregrinação de Childe Harold”, de Lord Byron, pela Editora Anticítera. Pela mesma editora, em 2017, publicou a tradução de “Odes”, de John Keats.