Projeto Goiás +300 promete repensar e ressignificar as origens do estado
11 dezembro 2022 às 00h00
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O Projeto Goiás +300 prevê a publicação de 18 livros, neste e nos próximos quatro anos, sobre diversos aspectos da memória, do saber, das artes, da ciência e da cultura goiana. Nesta primeira fase, foram publicados três livros – História, Geografia e Memória e Patrimônio – a serem lançados no próximo dia 14 de dezembro, às 9h no auditório do Instituto Histórico e Geográfico de Goiás (IHGG).
O esforço envolveu 86 autores, que somados aos três apresentadores (Gilberto Mendonça Teles, Altair Sales Barbosa e Horieste Gomes), reuniu pesquisadores, representantes das principais universidades de Goiás e do Brasil. Ao todo, são trinta instituições científicas e culturais representadas.
O Goiás +300 é uma iniciativa conjunta do IHGG, da incipiente Sociedade Goiana de História e Agricultura (SGHA) e do Instituto Cultural Bernardo Élis Para os Povos do Cerrado (Icebe). A coordenação do projeto é do doutor em História Jales Guedes Coelho Mendonça, presidente do IHGG, e de Nilson Jaime, que atua também como editor-geral.
Italo Wolff – Como se buscou o objetivo de ressignificar a História, Geografia e a memória goiana? Qual foi a estratégia utilizada para evitar repetir o que já foi escrito sobre os temas?
Nilson Jaime – Ressignificar a compreensão da História de Goiás não tem a pretensão de estabelecer verdades absolutas, nem ab-rogar a historiografia existente. Pelo contrário, significa reconhecer os méritos dos historiadores do passado, suas obras, e o hercúleo esforço que despenderam para escrever a historiografia de seu tempo. Porém, em face das facilidades de comunicação atuais, e do imenso acervo de documentos e publicações disponíveis na atualidade, refletir sobre o processo histórico e deixar a contribuição da presente geração de historiadores, geógrafos e demais pesquisadores das Ciências Sociais, é uma obrigação. Sabendo que, durante todo o tempo, essa contribuição estará sujeita a críticas, novas reflexões e ressignificações, pois isso é próprio do processo científico.
Os objetivos do Projeto Goiás +300 não podem ser avaliados apenas por esses três livros iniciais. É um projeto que fará sentido pleno após sua conclusão, com os 18 livros editados. Isso porque as lacunas somente serão preenchidas à medida em que os trabalhos forem publicados. Os 66 artigos destes primeiros livros contemplaram apenas algumas questões relativas à História, à Geografia e à memória e patrimônio.
Usando como exemplo o livro História, haverá obras específicas sobre cada um dos seguintes temas, que suprirão as lacunas deste primeiro trabalho: Povos Originários; Povos afrodiaspóricos e sua herança; Empoderamento feminino; Colonização de Goiás; Literatura dos viajantes; Luta pela terra e reforma agrária, e outros, que conjuntamente comporão uma grande reflexão sobre Goiás.
A ressignificação pretendida só será possível a partir de uma releitura crítica dos acontecimentos e do processo histórico, com o estabelecimento de alguns pressupostos básicos: primeiramente, a História de Goiás não se iniciou com a chegada dos bandeirantes, há 300 anos, mais propriamente dos Anhangueras, Pai e Filho, em 1682 e 1722, respectivamente. O que eles iniciaram foi a colonização paulista-europeia desta região. Os povos originários, denominados indígenas, habitavam essas plagas há pelo menos 650 gerações, ou 13 mil anos. Então, a história começa aí, até onde já foi possível se constatar. Por isso a inclusão do “mais”, antes do 300, no nome do projeto, sugestão da professora-doutora Thaís Marinho, da PUC Goiás. Até recentemente, pensava-se que os primeiros vestígios de habitantes no Cerrado datavam de 10 mil anos. Hoje, após recalibragem do método de datação por carbono 14 pelo Smithsonian Institution – de acordo com o professor Altair Sales Barbosa – foi acrescentado mais três mil anos. É essa dinâmica da História, das metodologias, da forma de se avaliar, com base em princípios temporais e, muitas vezes, efêmeros, que leva à necessidade da ressignificação.
Outro pressuposto do GOIÁS +300, é reconhecer que a colonização desta região foi conflituosa e violenta. Não foi pacífica da parte dos bandeirantes, mas cruel e implacável. Nem passiva, pelos povos autóctones. Houve uma reação ao apresamento e à escravidão de indígenas pelo bandeirantes e seus sucessores paulistas, lusos e mineiros. Esse conflito levou à extinção de algumas etnias e a uma situação de quase extinção de muitas outras. Isso requer, hoje, reparação pelo Estado e pela sociedade, através de políticas públicas que garantam um mínimo de isonomia para as atuais gerações indígenas.
Também existe a questão dos povos afrodiaspóricos, os negros e seus descendentes, que viveram em situação de escravidão por quase 200 anos neste território, sem direito à educação, ao salário, à dignidade humana, à alimentação, e sem o acesso à terra, que hipoteticamente lhes garantiria trabalho, bens de produção e um futuro condigno. Após a Lei Áurea, os Negros convivem com o racismo estrutural, carregando na pele o ônus da exploração nunca reparada, cuja perversidade social e econômica os empurram para as periferias das cidades, onde estão sujeitos a maior probabilidade de violência e degradação. É preciso que haja políticas públicas que favoreçam a educação, o avanço da escolaridade, do acesso ao emprego, do direito à saúde. Somente a educação pode proporcionar a reparação de três séculos de não-equidade, perpetuadora da desigualdade social e econômica.
Sobre a repetição do que “já foi escrito”, de sua pergunta, não há no GOIÁS +300 qualquer preconceito com os historiadores e a historiografia de Goiás, do passado. Pelo contrário. Entendemos que o historiador é fruto do contexto social em que vive, e das prevalências intelectuais de seu tempo, às vezes refém deles.
Ressalte-se que a historiografia goiana é recente, com pouco mais de duzentos anos. No Século XIX, Goiás era visto sob o olhar dos viajantes estrangeiros, como Auguste Saint-Hilaire, Luís Dallincourt, Emanuel Pohl, Aires De Casal, Francis Castelnau e George Gardner. Além deles, Silva e Souza, Raimundo da Cunha Mattos, José Alencastre, Luiz Cruls e Oscar Leal, os mais conhecidos. O esforço de decolonialidade da historiografia atual, permite que se utilize das obras desses viajantes e historiadores, para entender aquele tempo, e hoje. Mas é preciso fazer a contextualização. Não se espera que um historiador do Século XIX tenha combatido a escravidão, por exemplo. Somente os abolicionistas o faziam naqueles dias.
Quanto aos historiadores do Século XX – para citar apenas alguns dos que publicaram livros, como Americano do Brasil, Colemar Natal e Silva, Zoroastro Artiaga, Jarbas Jaime e Regina Lacerda –, seguiam o contexto de seu tempo, com uma historiografia tradicional, consenso de que a história de Goiás começara com os bandeirantes. Feito o reparo, reconheça-se o valor da obra de cada um. A favor deles, a dificuldade de se obter informações naqueles dias, com a absoluta inexistência de teses e estudos críticos.
Na elaboração dos livros do GOIÁS +300, contamos com pesquisadores da era pós-Palacin e Paulo Bertran (esses, mais metódicos e críticos), agora com milhares de textos ao alcance das digitais, em um celular. O acesso à informação favorece a reflexão e a ressignificação na compreensão histórica, embora exista muitos temas que são ignorados por negacionistas, até da esquerda política. Os temas inconvenientes são muitas vezes combatidos com chavões e palavras de ordem, em linguagem labiríntica.
O senhor mencionou que “chavões e palavras de ordem com linguagem labiríntica”. Qual o senhor acredita que seja o motivo desse problema? Como se buscou superá-lo no GOIÁS +300?
O negacionismo é um mal que permeia nosso tempo, impulsionado pelas redes sociais e sua aparente impunidade. A busca do aplauso leva muitas pessoas supostamente “cultas” a se rebaixarem a opiniões rasas, baseadas em chavões, memes e palavras de ordem que atinjam determinados bolsões de pessoas com ideias afins. Os resmungos de redes sociais deveriam ser reservados aos patriotas de porta de quartel. Artistas e intelectuais deveriam emitir suas opiniões em artigos publicáveis, e dignos de constar em seus currículos Lattes. Muitos, ao discordar de alguma ideia, emitem suas opiniões apenas nas redes sociais, como desabafo, ou escrevem notas de repúdio, o que lhes garante o anonimato. Notas não fazem parte do Currículo Lattes de ninguém, nem contribuiu para o desenvolvimento da Ciência. Um artigo sim, geraria o bom debate, imprescindível para o amadurecimento das partes e o crescimento intelectual de uma nação.
Há cerca de um ano e meio cogitei o apoio governamental para o GOIÁS +300. A ideia era que, com fomento do poder público, o setor artístico e cultural fosse beneficiado, com publicações de livros, exposições artísticas, feiras, shows musicais e teatrais, e simpósios científicos, em Goiás e em outros estados da Federação. Todo o setor artístico e cultural ganharia se houvesse a sensibilização do Governo de Goiás. Mas um artista plástico escreveu uma nota de repúdio, mal escrita, recheada de chavões e palavras de ordem, com a citada “linguagem labiríntica”, assim denominada por se basear em raciocínio circular, que leva a nada. A nota atacava o projeto sem conhecê-lo. O protesto não foi levado a sério, mas se mostrou danoso para o setor cultural. A única coisa que ele conhecia do projeto era o nome. Assim, decidi com Jales Mendonça, do IHGG, que desenvolveríamos o projeto por meio das instituições culturais, sem nenhum recurso governamental.
A superação das resistências se deu com a parceria de professores e pesquisadores de diversas instituições. Muitos que não viam o projeto com bons olhos, por entendê-lo, equivocadamente, como uma comemoração da chegada dos Bandeirantes, passaram a apoiá-lo, após tomar conhecimento de seu objetivo. Para implementar o GOIÁS +300, não fizemos meros convites aos autores dos capítulos, mas a todos os pesquisadores que quiseram participar do projeto. Inclusive, a participação está franqueada para os cerca de 300 pesquisadores que participarão dos livros das próximas cinco etapas. Todos são convidados ao debate.
Os livros reúnem escritos de 86 autores. Como foi o desafio de uni-los? Quais eixos ou diretrizes orientaram a seleção dos temas e escritores?
Idealizamos, com os dois organizadores de cada livro, os eixos e diretrizes da publicação. Eles se encarregaram de repassar aos autores o escopo de cada artigo. O livro de História (volume 1) foi composto em 20 capítulos e dois pré-textuais. Apesar de não haver uma divisão com títulos, foi construído por períodos: a) a história pré-cabralina; b) a colonização bandeirante; c) período colonial; d) período imperial; e) a Primeira República; f) a Era Vargas e a Redemocratização; g) Período Autoritário; e, g) período pós-democratização de 1985. O livro contém 314 páginas e foi escrito por vinte autores, com organização dos professores Eliézer Cardoso de Oliveira (UEG), e Thalles Murilo Vaz Costa, da Secretaria de Educação de Goiás (Seduc).
O livro de Geografia, com 379 páginas, 24 capítulos e dois pré-textuais, foi divido em cinco eixos: Antecedentes da invenção política de Goiás, A invenção geográfica de Goiás, A espacialidade rural de Goiás; Goiás, um território em travessia; e A leitura de Goiás pelo Cerrado, a leitura do Cerrado mediante Goiás. A organização foi dos professores Eguimar Felício Chaveiro (IESA/UFG) e Ricardo Assis Gonçalves (UEG).
O livro Memória e Patrimônio foi organizado pelos professores Lenora Barbo (doutora em Arquitetura, membro do Icebe) e pelo professor João Guilherme Curado (doutor em Geografia, docente da Seduc-Goiás). Com 373 páginas, 22 capítulos, dois pré-textuais, e 34 autores, foi dividido em Patrimônio Material, Patrimônio Imaterial, Patrimônio Natural e Patrimônio Arqueológico.
Em 300 anos de história de Goiás, como analisa a reflexão histórica, geográfica e social produzida no estado? A reflexão acerca dos temas passou por transformações sensíveis ao longo dos séculos? Como avalia o período que vivemos atualmente, no que se refere à produção intelectual goiana?
Primeiramente, fazer a ressalva de que a História de Goiás não surgiu há 300 anos. Ela tem, pelo menos, 13 mil anos, conforme respondi anteriormente. Já mencionei a Era dos Viajantes-Naturalistas, no século XIX, e de historiadores, como Alencastre e Cunha Mattos por exemplo, naquele século. Entre 1917 e 1934, Henrique Silva, Americano do Brasil e outros, publicaram, no Rio de Janeiro, a revista Informação Goyana, um fórum importante de registro e reflexão sobe a historiografia, a geografia e a ciência feitas em Goiás.
Uma historiografia crítica e reflexiva se intensificou a partir da segunda metade do Século XX, com a criação da Universidade de Goiás (depois, Universidade Católica de Goiás e, hoje, Pontifícia Universidade Católica de Goiás, a PUC Goiás) e da Universidade Federal de Goiás, em 1962. Hoje são dezenas de instituições culturais e de programas de Pós-graduação em História, Geografia e outros. Esses PPGs são importantíssimos para a reflexão e a ressignificação históricas. Com rápida expansão, a partir de 1990, vários desses PPGs possuem conceito 4 ou 5 na Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES).
Os institutos e academias também intensificaram uma aproximação com as universidades, visando maior qualificação de seus membros. Dos 86 autores desta primeira fase do GOIÁS +300, pelo menos 60 são ligados a alguma universidade. E não foi difícil encontrar esses parceiros. Há uma carência, da parte dos pesquisadores, por projetos que agreguem, que busquem a excelência. O IHGG, o Icebe e a SGHA buscarão essa aproximação com as universidades, cada dia mais, pois entende que ali estão os cérebros que farão a diferença.
Os livros coroam um projeto que envolveu centenas de intelectuais por todo o ano de 2022. Ao fim deste processo, como avalia a produção do projeto? Existe perspectiva para novos projetos?O GOIÁS +300 é o prenúncio de que é possível aglutinar esforços em prol de uma ciência que deixe legado consistente para a posteridade. Já estão em processo de construção os livros de Agricultura, Música, Literatura dos Viajantes e Literatura goiana. Buscamos pesquisadores para a produção dos livros Povos Originários, Povos Afrodiaspóricos, Educação e Empoderamento Feminino. A ideia é publicar três livros a cada semestre. Estamos abertos à participação de interessados. Precisamos de pelo menos mais 300 parceiros.