Professor Raimundo e sua sátira esquizofrênica à função docente no Brasil
19 março 2016 às 09h57
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Exibido pela Rede Globo a partir de 1990, o programa ganhou um remake, que é também um ícone cultural e um manifesto em prol da educação. E assim precisa ser analisado
ADEMIR LUIZ
Especial para o Jornal Opção
Pergunte a qualquer um na rua: quem é o professor mais famoso do Brasil? Talvez aquele sujeito comendo coxinha na padaria da esquina responda “professor Olavo” ou aquela mocinha usando bolsa de crochê vermelha diga “professora Marilena”, mas, provavelmente, a maioria responderá “professor Raimundo”. Sim, o imortal personagem do, infelizmente, não imortal comediante Chico Anysio. Sua respeitável figura de jaleco e cabelos brancos ao estilo He-Man, a voz grave e rouca, assim como os bordões, entraram para o imaginário coletivo.
Não por acaso, a Rede Globo colocou no ar um remake da lendária “Escolinha do Professor Raimundo”, em comemoração aos 25 anos da versão exibida na década de 1990.
Inegavelmente, é um marco da televisão brasileira. Na verdade, a “Escolinha” foi criada na rádio Mayrink Veiga, em 1952, estreando na telinha em 1957, como um quadro do programa “Noites Cariocas” da TV Rio. Originalmente, eram apenas três alunos: um inteligente, um estúpido e um malandro. Desde o começo, o quadro foi, ao mesmo tempo, uma homenagem aos mestres e uma sátira ao esquizofrênico sistema educacional brasileiro, desde sempre comandado por homens que falam javanês, mais preocupados com teorias revolucionárias do que com o ensino em si.
Raimundo Nonato, o então professor Raimundo, um pouco por ser conteudista, um pouco por fazer piada com esses donos da verdade, nunca foi bem visto nos altos escalões da pedagogia, nas secretarias e no Ministério da Educação. Burocratas do pensamento e burocratas da papelada raramente cultivam o bom humor.
Na nova versão, o personagem é interpretado pelo ator Bruno Mazzeo, filho de Chico Anysio, emulando os trejeitos do pai e mestre. Um respeitável elenco, que vai do hilário Marcos Caruso até o trêmulo Lúcio Mauro Filho (homenageando Lúcio Mauro pai), passando pela chiquitita sênior Fernanda Souza até a lendária Ellen Rocche, revive, com maior ou menor competência, uma seleção dos personagens clássicos. Alguns tipos se destacam; entre eles, a Catifunda perfeita de Dani Calabresa, a Dona Cacilda incorporada por Fabiana Karla como se fosse a Cláudia Jimenez em pessoa e Marcius Melhem que “vai pra galera!” com um Seu Boneco sensacional.
O Seu Baltazar da Rocha de Otávio Müller não é reconhecível como o mesmo tipo interpretado por Walter D’Ávila; e Mateus Solano causa estranheza por ser um Zé Bonitinho, realmente, galã. Quem era sem graça, como Tati, Galeão Cumbica e Dona Cândida, continua sem graça. O resultado final do conjunto é bastante divertido, embora pouco ousado esteticamente, limitando-se a homenagear a “Escolinha” clássica, recusando-se a “modernizar” sua proposta de humor. Nota oito e passa a régua.
Mas, assistindo ao remake da “Escolinha”, para minha surpresa, pela primeira vez ocorreu-me que o popular professor Raimundo não é exatamente um exemplo de profissional.
Não sou anti-Globo por definição, do tipo que detesta antecipadamente tudo que a rede “Plim-Plim” produz. É preciso reconhecer que para cada mil capítulos de “Malhação”, notícias tendenciosas ou novelas da Glória Perez, sempre há espaço para produções sofisticadas como “Os Maias” ou “Agosto”. Também deixo claro que considero uma bobagem o chamado “humor do bem”, tendência politicamente correta que apregoa que, em reação aos séculos e séculos de piadas racistas, sexistas, xenófobas e anti-pobre, agora apenas a maioria caucasiana, cristã e rica pode ser alvo de piadas. Este tipo de movimento gerador de amarras asfixia a comédia.
Se tiver alguma dúvida, pergunte para Aristóteles (ou leia “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco).
Os humoristas não devem ser cerceados nem por censura institucional nem por autocensura. Tampouco pela ditadura do chamado “bom-gosto”, uma vez que “bom gosto” é variável de pessoa para pessoa e os públicos são os mais diversos, com as mais diferentes formações e expectativas quanto ao que é ou não engraçado. Se tiver algum problema com a piada, resolva na Justiça; não faça uma cartilha do pode e não pode. O único limite deve ser o bom senso.
Diante deste manifesto pela liberdade humorística, qual o problema com a “Escolinha”, a de ontem e a de hoje? Creio que seja a distância entre a intenção e a realidade: não tenho dúvidas que Chico Anysio tinha as melhores intenções quando criou o professor Raimundo e sua galeria de alunos repetentes do ensino de jovens e adultos. Em um olhar geral, o programa é um manifesto em prol da importância da cultura, da educação. Fazem parte da essência do humor o exagero, os mal entendidos e os duplos sentidos. De fato, tudo funciona bem na maior parte das vezes, porém, citando o filósofo da ciência Thomas Kuhn (para parecer culto e desencorajar réplicas), em alguns momentos surgem anomalias que colocam em dúvida o paradigma.
Imagino que todos concordem que o professor, enquanto entidade abstrata, é imbuído de certa aura de respeitabilidade, uma vez que representa, ou deveria representar, o principal elemento transmissor da sabedoria acumulada da humanidade para as futuras gerações. Sei que existem vários “especialistas” em educação que questionam este papel, retirando ou diminuindo a importância do professor no processo de ensino e aprendizagem; mas estas figuras, ainda que em muitos casos não sejam mal intencionadas, produzem pesquisas falaciosas e não devem ser levadas a sério. Representam no máximo curiosidades ou efeitos colaterais da pós-modernidade. Mas o fato de serem estes cientistas loucos e suas teorias estapafúrdias, que definem os atuais rumos da educação, é assunto para outro texto.
Para o senso comum, o professor é um tipo de abnegado que segue sua vocação apesar de tudo. Ao mesmo tempo, não são incomuns campanhas de valorização da profissão que, em alguns casos, ensaiam tornarem-se políticas de Estado (Pátria Educadora, vejam só!). O discurso “ser professor é legal, respeite o seu” é recorrente, embora na maior parte das vezes não passe de palavras, palavras, palavras. Ainda mais na sociedade brasileira, onde a demonstração de cultura costuma ser interpretada como exibicionismo; mesmo em salas de professores. Expressões como “tom professoral” e “ficar dando aula” indicam chatice, pedância e pretensão. Apesar disso, espera-se que personagens que representam “o professor” sejam mostrados de modo primordialmente positivo (salvo se for o vilão de filmes como “Sociedade dos Poetas Mortos” ou “Encontrando Forrester”). Não é o que vemos na “Escolinha”.
Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que o professor Raimundo não é um personagem realista, mas um tipo. Qual a diferença de um para o outro? Basicamente está na construção da figura. O professor Raimundo não é feito para ser profundo e complexo. Sua natureza dramática é bidimensional. Só conhecemos seu sobrenome, Nonato, e sua cidade natal, Maranguape; não conhecemos seu passado (salvo as alucinações de Aldemar Vigário), nem família e amigos ou sua vida particular e interesses fora da escola. Ele é apresentado de modo a ser “um pouco de todos os professores brasileiros”. Trata-se de um tipo que representa certa coletividade.
Esse é o primeiro problema. Como o que se convencionou no Brasil, que os professores geralmente são profissionais frustrados, apesar de abnegados, com salários miseráveis, Raimundo encarna esse profissional. Vide seu bordão principal (“E o salário, ó…”). Ele poderia ser visto como uma ironia que, na verdade, pontifica a necessidade de corrigir a injustiça; mas tal interpretação perde força na medida em que a desmotivação financeira surge como justificativa para suas evidentes falhas de caráter e ética profissional. O exemplo mais evidente é o modo como se deixa subornar mediante os presentes oferecidos por Armando Volta. Não se trata de uma inocente maçã levada para o mestre, mas de uma corrupção ativa e passiva.
Quando Armando Volta diz “pensei: ‘Porque comprá-lo, por que não comprá-lo, porque comprá-lo, por que não comprá-lo?’ Comprei-o! Aceite, é de coração, sem o menor interesse…”, não está comprando o presente, mas a nota e, por extensão, a mão que a atribui. Sintomático perceber que os presentes são quase sempre objetos de uso cotidiano, raramente bens culturais, como livros, filmes, CDs ou ingressos para espetáculos teatrais. O professor Raimundo, reduzido à figura indigente, quase um pedinte, se vende por pouco. Não será surpresa se outros alunos, percebendo a janela de oportunidade, comecem a fazer o mesmo. Não creio que seja esta imagem de (lei de) “Gérson pé de chinelo” que os professores querem para si.
No clássico filme “Manhattan” (1979), de Woody Allen, a personagem interpretada por Diane Keaton diz que “o mais inteligente dos homens torna-se um bobo diante de um rosto bonito”. O professor Raimundo representa esta observação ao nível máximo, considerando a forma explícita com que assedia algumas alunas. Pode ser num pecadilho, como quando pede para que a carnuda Dona Capitu apague o quadro, tencionando a observá-la (cuidado com as feministas de plantão, Mundico!) ou em fragrantes de grotesca desonestidade intelectual, como quando tenta justificar as respostas absurdas da Dona Marina da Glória.
Aqui sim, um caso sério, pois pode comprometer o aprendizado de todo corpo discente, quando falseia fatos, conceitos e teorias cientificamente consagradas visando, supõe-se, fortalecer um processo de sedução em curso. Afinal, quem vai duvidar das emendas de um mestre tão reconhecidamente sábio? O logro, então, se passa por verdade e tudo fica pior quando, de maneira torpe e autoritária, o professor Raimundo desautoriza as honestas tentativas de correção feitas pelo aluno Ptolomeu. Caberia processo administrativo contra o velho babão.
Soma-se ao assédio sexual o assédio moral que realiza contra certos alunos. O professor Raimundo não perde oportunidade de ser grosseiro com, por exemplo, Aldemar Vigário, Baltazar da Rocha e Rolando Lero. Ofende-os por serem ignorantes, sendo que sua função é justamente fazê-los superar a ignorância, que é um estado e não uma condição. Sabemos que na dinâmica cotidiana de sala de aula, algum sarcasmo e fina ironia possuem alto valor pedagógico.
O livro “Conversas com um jovem professor”, do historiador Leandro Karnal, não deixa dúvidas quanto a isso. Mas nada justifica grosseria. O caso do, constantemente, humilhado Rolando Lero, irmão de Armando Volta, é sintomático. Seria maltratado pelo “amado mestre” se também lhe oferecesse vantagens em forma de presentes, e não apenas elogios grandiloquentes? Fica a dúvida.
Estou exagerando? Provavelmente. Estou estragando a infância de muita gente? É possível, mas é hora de crescer. Estou procurando chifres em cabeça de cavalo? Talvez, mas uma das funções da crítica cultural é revelar que, às vezes, cavalos são unicórnios. Estou falando sério? Não me pergunte. Superficialmente, a “Escolinha” é apenas um programa humorístico datado, mas é também um ícone cultural, formador de corações e mentes, e deve ser analisado sob este prisma. Afinal, Raimundo é o professor mais famoso do Brasil e tem suas responsabilidades. Precisa pagar o preço da fama.
Mundo mundo vasto mundo, você se chama Raimundo, mas isso é uma rima, não é uma solução. Poderia te dar um zero, mas sei que foi sem querer querendo (opa, essa é a escolinha do professor Girafales), então espero que você estude mais e se corrija para o próximo remake. Que ele não demore, que venha num “vapt-vupt”. l