Exibido pela Rede Globo a partir de 1990, o programa ganhou um remake, que é também um ícone cultural e um manifesto em prol da educação. E assim precisa ser analisado

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Ao manter as características do íconico Professor Raimundo, Bruno Mazzeo é fiel ao pai, Chico Anysio | Foto: reprodução

ADEMIR LUIZ
Especial para o Jornal Opção

Pergunte a qualquer um na rua: quem é o professor mais famoso do Bra­sil? Talvez aquele sujeito comendo coxinha na padaria da esquina responda “professor Olavo” ou aquela mocinha usando bolsa de crochê vermelha diga “professora Ma­ri­lena”, mas, provavelmente, a maioria responderá “professor Rai­mun­do”. Sim, o i­mor­tal personagem do, infelizmente, não imortal comediante Chi­co Anysio. Sua respeitável fi­gu­ra de jaleco e cabelos brancos ao estilo He-Man, a voz grave e rou­ca, assim como os bordões, en­traram para o imaginário coletivo.

Não por acaso, a Rede Globo colocou no ar um remake da lendária “Escolinha do Professor Raimundo”, em comemoração aos 25 anos da versão exibida na década de 1990.

Inegavelmente, é um marco da televisão brasileira. Na verdade, a “Escolinha” foi criada na rádio Mayrink Veiga, em 1952, estreando na telinha em 1957, como um quadro do programa “Noites Cario­cas” da TV Rio. Originalmente, eram apenas três alunos: um inteligente, um estúpido e um malandro. Desde o começo, o quadro foi, ao mesmo tempo, uma homenagem aos mestres e uma sátira ao esquizofrênico sistema educacional brasileiro, desde sempre comandado por homens que falam javanês, mais preocupados com teorias revolucionárias do que com o ensino em si.

Raimundo Nonato, o então professor Rai­mundo, um pouco por ser conteudista, um pouco por fazer piada com esses donos da verdade, nunca foi bem visto nos altos escalões da pedagogia, nas secretarias e no Ministério da Educação. Burocratas do pensamento e burocratas da papelada raramente cultivam o bom humor.

Na nova versão, o personagem é interpretado pelo ator Bruno Mazzeo, filho de Chico Anysio, emulando os trejeitos do pai e mestre. Um respeitável elenco, que vai do hilário Marcos Caruso até o trêmulo Lúcio Mauro Filho (homenageando Lúcio Mauro pai), passando pela chiquitita sênior Fernanda Souza até a lendária Ellen Rocche, revive, com maior ou menor competência, uma seleção dos personagens clássicos. Alguns tipos se destacam; entre eles, a Catifunda perfeita de Dani Calabresa, a Dona Cacilda incorporada por Fabiana Karla como se fosse a Cláudia Jimenez em pessoa e Marcius Melhem que “vai pra galera!” com um Seu Boneco sensacional.

O Seu Baltazar da Rocha de Otávio Müller não é reconhecível como o mesmo tipo interpretado por Walter D’Ávila; e Mateus Solano causa estranheza por ser um Zé Bonitinho, realmente, galã. Quem era sem graça, como Tati, Galeão Cumbica e Dona Cândida, continua sem graça. O resultado final do conjunto é bastante divertido, embora pouco ousado esteticamente, limitando-se a homenagear a “Escolinha” clássica, recusando-se a “modernizar” sua proposta de humor. Nota oito e passa a régua.

Mas, assistindo ao remake da “Escolinha”, para minha surpresa, pela primeira vez ocorreu-me que o popular professor Raimundo não é exatamente um exemplo de profissional.
Não sou anti-Globo por definição, do tipo que detesta antecipadamente tudo que a rede “Plim-Plim” produz. É pre­ciso reconhecer que para cada mil ca­pítulos de “Ma­lhação”, notícias tendenciosas ou novelas da Glória Perez, sempre há espaço para produções sofisticadas como “Os Maias” ou “Agosto”. Também deixo claro que considero uma bobagem o chamado “humor do bem”, tendência politicamente correta que apregoa que, em reação aos séculos e séculos de piadas racistas, sexistas, xenófobas e anti-pobre, agora apenas a maioria caucasiana, cristã e rica pode ser alvo de piadas. Este tipo de movimento gerador de amarras asfixia a comédia.
Se tiver alguma dúvida, pergunte para Aristóteles (ou leia “O Nome da Rosa”, de Umberto Eco).

Os humoristas não devem ser cerceados nem por censura institucional nem por autocensura. Tampouco pela ditadura do chamado “bom-gosto”, uma vez que “bom gosto” é variável de pessoa para pessoa e os públicos são os mais diversos, com as mais diferentes formações e expectativas quanto ao que é ou não engraçado. Se tiver algum problema com a piada, resolva na Justiça; não faça uma cartilha do pode e não pode. O único limite deve ser o bom senso.

Diante deste manifesto pela liberdade humorística, qual o problema com a “Escolinha”, a de ontem e a de hoje? Creio que seja a distância entre a intenção e a realidade: não tenho dúvidas que Chico Anysio tinha as melhores intenções quando criou o professor Rai­mundo e sua galeria de alunos repetentes do ensino de jovens e adultos. Em um olhar geral, o programa é um manifesto em prol da importância da cultura, da educação. Fazem parte da essência do humor o exagero, os mal entendidos e os duplos sentidos. De fato, tudo funciona bem na maior parte das vezes, porém, citando o fi­lósofo da ciência Thomas Kuhn (para parecer culto e de­sen­co­rajar réplicas), em alguns mo­men­tos surgem anomalias que co­locam em dúvida o paradigma.

Um respeitável elenco, que passa por Marcos Caruso, Ellen Rocche, Lúcio Mauro Filho e Fernanda Souza, revive, com maior ou menor competência, uma seleção de clássicos personagens da TV | Fotos: reprodução
Um respeitável elenco, que passa por Marcos Caruso, Ellen Rocche, Lúcio Mauro Filho e Fernanda Souza, revive, com maior ou menor competência, uma seleção de clássicos personagens da TV | Fotos: reprodução

Imagino que todos concordem que o professor, enquanto entidade abstrata, é imbuído de certa aura de respeitabilidade, uma vez que representa, ou deveria representar, o principal elemento transmissor da sabedoria acumulada da humanidade para as futuras gerações. Sei que existem vários “especialistas” em educação que questionam este papel, retirando ou diminuindo a importância do professor no processo de ensino e aprendizagem; mas estas figuras, ainda que em muitos casos não sejam mal intencionadas, produzem pesquisas falaciosas e não devem ser levadas a sério. Representam no máximo curiosidades ou efeitos colaterais da pós-modernidade. Mas o fato de serem estes cientistas loucos e suas teorias estapafúrdias, que definem os atuais rumos da educação, é assunto para outro texto.

Para o senso comum, o professor é um tipo de abnegado que segue sua vocação apesar de tudo. Ao mesmo tempo, não são incomuns campanhas de valorização da profissão que, em alguns casos, ensaiam tornarem-se políticas de Estado (Pátria Educadora, vejam só!). O discurso “ser professor é legal, respeite o seu” é recorrente, embora na maior parte das vezes não passe de palavras, palavras, palavras. Ainda mais na sociedade brasileira, onde a demonstração de cultura costuma ser interpretada como exibicionismo; mesmo em salas de professores. Expressões como “tom professoral” e “ficar dando aula” indicam chatice, pedância e pretensão. Apesar disso, espera-se que personagens que representam “o professor” sejam mostrados de modo primordialmente positivo (salvo se for o vilão de filmes como “Sociedade dos Poetas Mortos” ou “Encontrando Forrester”). Não é o que vemos na “Escolinha”.

Em primeiro lugar, é preciso estabelecer que o professor Raimundo não é um personagem realista, mas um tipo. Qual a diferença de um para o outro? Basicamente está na construção da figura. O professor Rai­mun­do não é feito para ser profundo e complexo. Sua natureza dramática é bidimensional. Só conhecemos seu sobrenome, Nonato, e sua cidade natal, Maranguape; não conhecemos seu passado (salvo as alucinações de Aldemar Vigário), nem família e amigos ou sua vida particular e interesses fora da escola. Ele é apresentado de modo a ser “um pouco de todos os professores brasileiros”. Trata-se de um tipo que representa certa coletividade.

Esse é o primeiro problema. Co­mo o que se convencionou no Bra­sil, que os professores geralmente são profissionais frustrados, apesar de abnegados, com sa­lários miseráveis, Raimundo en­carna esse profissional. Vide seu bordão principal (“E o salário, ó…”). Ele poderia ser visto co­mo uma ironia que, na verdade, pontifica a necessidade de corrigir a injustiça; mas tal interpretação perde força na medida em que a desmotivação financeira surge como justificativa para suas evidentes falhas de caráter e ética profissional. O exemplo mais evidente é o modo como se deixa subornar mediante os presentes oferecidos por Armando Volta. Não se trata de uma inocente maçã levada para o mestre, mas de uma corrupção ativa e passiva.

Quando Armando Volta diz “pensei: ‘Porque comprá-lo, por que não comprá-lo, porque comprá-lo, por que não comprá-lo?’ Comprei-o! Aceite, é de coração, sem o menor interesse…”, não está comprando o presente, mas a nota e, por extensão, a mão que a atribui. Sintomático perceber que os presentes são quase sempre objetos de uso cotidiano, raramente bens culturais, como livros, filmes, CDs ou ingressos para espetáculos teatrais. O professor Raimundo, reduzido à figura indigente, quase um pedinte, se vende por pouco. Não será surpresa se outros alunos, percebendo a janela de oportunidade, comecem a fazer o mesmo. Não creio que seja esta imagem de (lei de) “Gérson pé de chinelo” que os professores querem para si.

No clássico filme “Ma­nhattan” (1979), de Woody Allen, a personagem interpretada por Diane Keaton diz que “o mais inteligente dos homens torna-se um bobo diante de um rosto bonito”. O professor Rai­mundo representa esta observação ao nível máximo, considerando a forma explícita com que as­sedia algumas alunas. Pode ser num pecadilho, como quando pe­de para que a carnuda Dona Ca­pitu apague o quadro, tencionando a observá-la (cuidado com as fe­ministas de plantão, Mun­dico!) ou em fragrantes de grotesca de­so­nestidade intelectual, como quando tenta justificar as respostas absurdas da Dona Marina da Glória.

Aqui sim, um caso sério, pois pode comprometer o aprendizado de todo corpo discente, quando falseia fatos, conceitos e teorias cientificamente consagradas visando, supõe-se, fortalecer um processo de sedução em curso. Afinal, quem vai duvidar das emendas de um mestre tão reconhecidamente sábio? O logro, então, se passa por verdade e tudo fica pior quando, de maneira torpe e autoritária, o professor Raimundo desautoriza as honestas tentativas de correção feitas pelo aluno Ptolomeu. Caberia processo administrativo contra o velho babão.

Soma-se ao assédio sexual o assédio moral que realiza contra certos alunos. O professor Rai­mun­do não perde oportunidade de ser grosseiro com, por exemplo, Aldemar Vigário, Baltazar da Rocha e Rolando Lero. Ofende-os por serem ignorantes, sendo que sua função é justamente fazê-los superar a ignorância, que é um estado e não uma condição. Sabemos que na dinâmica cotidiana de sala de aula, algum sarcasmo e fina ironia possuem alto valor pedagógico.

O livro “Conversas com um jovem professor”, do historiador Leandro Karnal, não deixa dúvidas quanto a isso. Mas nada justifica grosseria. O caso do, constantemente, humilhado Rolando Lero, irmão de Armando Volta, é sintomático. Seria maltratado pelo “amado mestre” se também lhe oferecesse vantagens em forma de presentes, e não apenas elogios grandiloquentes? Fica a dúvida.

Estou exagerando? Prova­velmente. Estou estragando a infância de muita gente? É possível, mas é hora de crescer. Estou procurando chifres em cabeça de cavalo? Talvez, mas uma das funções da crítica cultural é revelar que, às vezes, cavalos são unicórnios. Estou falando sério? Não me pergunte. Superficialmente, a “Escolinha” é apenas um programa humorístico datado, mas é também um ícone cultural, formador de corações e mentes, e deve ser analisado sob este prisma. Afinal, Raimundo é o professor mais famoso do Brasil e tem suas responsabilidades. Precisa pagar o preço da fama.

Mundo mundo vasto mundo, você se chama Raimundo, mas isso é uma rima, não é uma solução. Poderia te dar um zero, mas sei que foi sem querer querendo (o­pa, essa é a escolinha do professor Girafales), então espero que você estude mais e se corrija para o próximo remake. Que ele não demore, que venha num “vapt-vupt”. l