Não se pode ser tacanho diante da verdade. Quem dispõe da verdade e a distorce visa sair ganhando com a ignorância do outro

Salomão Sousa

Conseguisse em mim, num barco, num percurso, cravar uma haste de conciliação.

Pintura de Jacek Yerka

Passou a me perseguir o questionamento que me fez uma garotinha de menos de dez anos. Foi numa viagem à cidade goiana de Itumbiara, que vem passando por acelerado desenvolvimento econômico. A menina não me fez uma pergunta e talvez nem buscasse resposta. Quando a conversa ocorreu nem me preocupei com a questão. Era um diálogo num momento frugal.

Ela afirmou, ao saber que sou poeta, que devo ser muito crítico. Temos de admitir que, com a expressão, manifestou respeito ao poeta (a todos os poetas), talvez até mais que Platão, que condenou os poetas a não participarem do processo de formação da República. Platão talvez considerasse os poetas seres irresponsáveis com suas metáforas ou revolucionários com seu “processo crítico”, podendo contaminar as determinações e os interesses dos administradores da República.

Depois de pensar muito, ocorreu-me que não é relevante questionarmos se somos críticos, pois é de nossa natureza sermos razoáveis e prezarmos a verdade quando nos manifestamos em relação às ações de nossos semelhantes, às formas de governo, à religião, até mesmo às atitudes triviais da vida cotidiana, tais como o vizinho estaciona o carro ou pinta o portão.

“O filósofo”, de Salomon Koninck

Portanto, a questão deve ser colocada de outra maneira, em outra lateral − eu diria àquela garotinha. Será que nossas críticas são justas ou verdadeiras? Será que recebemos as informações necessárias para formulação correta das críticas? Será que não estamos defendendo só os nossos interesses? Será que nosso processo crítico não está envelhecido, pois a Civilização vai descobrindo que certas atitudes passam a ser repudiáveis e condenáveis para as épocas vindouras. Será que nosso processo crítico não vai contribuir para desavenças ou para impedir nosso desenvolvimento e até mesmo para a instauração de processos que irão prejudicar nossa liberdade e até mesmo para nos alijar da soberania?

Sempre que penso no que é a verdade, me vem à lembrança um fato que aconteceu comigo quando eu tinha a idade dessa garotinha. Naquela época, fui estudar na fazenda de um tio, onde conheci a fruta jambo (de cheiro especial, cheiro só de jambo). Eu não sabia como comê-la. Ela tem uma polpa rija com uma semente solta no interior. Indaguei aos meus primos como comê-la. Para zombarem de minha ignorância, disseram que eu devia comer a semente. Ao constatarem que acolhi a orientação, todos caíram numa imensa gargalhada galhofeira.

Gravura de Almada Negreiros

Aprendi que muitos zombam de nós passando informações incorretas para que tomemos decisões contra nossos interesses. Só podemos decidir em nosso favor, em favor de outros, de nossa comunidade e de nosso país, se temos à nossa disposição as informações corretas. Temos de estar sempre atentos para identificar as “mentiras” e as “baboseiras” (essas expressões são definidas por Harry G. Frankfurt em seu livro “Sobre Falar Merda”) que são ditas com a intenção de nos iludir. O primeiro-ministro Viktor Orban, de 56 anos, foi eleito na Hungria com propaganda que utilizava cenas de violências ocorridas em favelas brasileiras como se ocorressem naquele país para argumentar que, se eleito, os índices de violência seriam controlados. A mentira foi acolhida como se as imagens tivessem sido captadas naquele país. Há uma perda de razoabilidade, de entorpecimento do processo crítico, para ascensão ao poder ou nele se perpetuar. Ou, às vezes, para desfrutar de benefícios corriqueiros. Pode ocorrer de o indivíduo deter todas as informações, ter processo crítico razoável, conhecer as leis, e, na contramão, adotar atitudes totalmente adversas; basta mencionar o caso da prática de estacionar sobre a calçada ou de uso de som automotivo, quando se perde todo o princípio de razoabilidade.

A crítica e a verdade

Portanto, não é só o processo crítico, que é comum a todos nós, que nos torna capazes de influenciar corretamente a sociedade, de contribuir para harmonizar e até mesmo para nos fazer felizes em nossa passagem pelo mundo. É necessário usar corretamente o processo crítico. E não podemos também ser tacanhos diante da verdade. Aqueles que dispõem da verdade e distorcem-na, talvez por zombaria ou revolta ou por interesse de desarmonizar o mundo a seu favor, assim agem para saírem ganhando com a ignorância dos outros. A ignorância (ignorar significa “não saber”, isto é, não dispor do verdadeiro processo crítico) escraviza as pessoas, pois elas ficam sem as ferramentas necessárias para se incluírem no processo econômico-cultural.

Iluminura do século 13

De cara, então, podemos dizer, que praticamos a crítica com o conhecimento que fomos adquirindo ao longo da vida, com as verdades que fomos acumulando por meio do estudo e da experiência. O processo crítico envolve, além do conhecimento, a ética do indivíduo. Podemos ter um processo razoável de conhecimento que a calçada é pública e que um cacto espinhento não deve ser exposto sobre ela. E, no entanto, deixamos ali o cacto ameaçando crianças e todos os demais transeuntes que usarão a calçada.

Cada época constrói uma forma de comportamento ético, de aceitação das ações humanas. Logo após o fim da escravatura, era comum, nos Estados Unidos, enforcar ex-escravos. Eram vistos dependurados nas árvores da beira das estradas (a música “Strange fruit”, de Billie Holiday narra esse nefasto episódio histórico). Na Roma antiga, os escravos rebeldes eram empalados ou crucificados vivos em estacas também na beira das estradas (as cenas fortes são relembradas no filme Spartacus). A crucificação de Cristo veio dessa prática contra os escravos. O livro “Paideia – A Formação do Homem Grego” (Martins Fontes, 1434 páginas, tradução de Artur Parreira), do filólogo alemão Werner Jaeger (1888-1961; curiosamente, nasceu no ano em que a escravidão foi abolida no Brasil), estuda a ética grega para demonstrar a importância da evolução do processo crítico do indivíduo por intermédio da formação (transferência de conhecimento para as pessoas pelas academias/universidades).

“O filósofo pitagórico”, de Pietro Longhi

Somos críticos éticos quando dispomos de argumentos que se aproximam da verdade e tentamos contribuir para que a nossa atuação crítica sirva para avanços da Civilização. Quando ouvimos numa homilia que a mulher deve guardar silêncio diante do marido e que é o “trabalho” que assegura a sobrevivência da família (Timóteo, 2: 11-15, e Eclesiastes, 26) temos de reconhecer que se trata de pregação arcaica, que não se ajusta mais aos interesses de nosso tempo. A mulher, nos tempos atuais, alcançou igualdade na tomada de decisões, não devendo ser apenas a “honra e glória” de um homem. A mulher é parte integrante do processo de argumentação da sociedade, não devendo ser “silenciada” com a morte quando se manifesta. E nem a riqueza é suficiente para justificar a existência de uma família ou a nossa passagem pela Terra. Julgo que esse é um processo falacioso, pois insiste num discurso (ou lei) que se nega a se ajustar às exigências humanistas que foram sendo definidas ao longo da História.

Temos a obrigação de estarmos constantemente questionando as verdades, pois elas se alteram a todo momento (esse assunto é o velho tema do livro “Paideia” e dos estudos de Karl Popper, que afirma que uma verdade só existe enquanto não é ajustada). Dentro desse processo de ajuste da verdade, não quer dizer que devamos ser constantemente bombardeados com informações destinadas à construção de situações enganosas com as quais outros erguem as suas vitórias vantajosas. Pois, neste caso, não é a verdade que está sendo empregada, mas o falseamento. Se observarmos bem, as verdades montadas ou distorcidas dão a impressão de serem verdades só mesmo pelo bombardeamento de informações que satisfazem os interesses de grupos (dominantes por dispor do poder político-econômico e por manipular a sociedade para que seus interesses sejam superpostos aos daqueles que foram enganados).

Pintura de Rafal Olbinski

O poder econômico não tem interesse em pagar imposto para subsidiar a saúde, a educação e a segurança. Já que podem pagar por eles, os detentores do poder econômico constroem (de forma desumana) a crítica de que todos têm de pagar por estes serviços, não importando que camadas sociais fiquem relegadas ao abandono (necropolítica). Estou notando, por exemplo, que o sinal de telefonia se dá por zoneamento de ocupação dos habitantes. A classe alta da pirâmide acaba melhor aquinhoada com melhores sinais. Até nisso, as classes inferiores pagam mais caros por serviços, pois não recebe pelo que contratou. O falseamento da verdade atinge até os contratos.

Eu diria àquela garotinha que – pelo teor de sua expressão – ela também é muito crítica e já está questionando, corretamente, a realidade. Portanto, construa boas verdades, verdades que favoreçam a inclusão, verdades que reconheçam o direito à cidadania para todos. Seja dialética, compreenda que o que sabemos vai se alterando à medida que vivemos, à medida que argumentamos através do convívio com outras pessoas e com os nossos estudos (estão incluídos neste contexto as leituras, as visitas, os passeios, a observação). A cada dia, descubra com novas informações, que aquilo que se aprende tem novas camadas a serem agregadas para ser uma verdade responsável, que vai contribuir para uma comunidade melhor, um país onde impere a harmonia e o orgulho de a ele pertencer. Uma verdade não é definitiva. É o processo de conhecimento que vai tornando a verdade capaz de contribuir para que o homem viva melhor no mundo. Só a riqueza (o dinheiro) não harmoniza os homens. Às vezes a riqueza mais desagrega do que estimula a comunidade a viver em paz. Uma comunidade, para dizer que se desenvolve, não pode investir só no processo econômico. Tem de investir para que todos tenham mais igualdade, tenham conhecimento, tenham limpeza e riso. Somos mais felizes em ver crescer a cana que plantamos do que o dinheiro que ela nos rendeu e que vai enriquecer o banqueiro. Dentro desse raciocínio, os escritores são importantes no mundo, pois não há metáfora no poder do dinheiro, mas na transformação misteriosa da cana em beleza e alegria. A natureza está constantemente tentando organizar a beleza e a riqueza está constantemente tentando desconstruí-la.

Pintura de Jack Yerka

Contra o bloqueio do conhecimento e a mentira

Não podemos ser críticos visando só os nossos interesses. Ocorre que o conhecimento, que molda as nossas formas de pensar (portanto, de legitimar as nossas críticas), precisa ser alcançado com as experiências legítimas do processo civilizatório. Não critico só porque sei, mas porque desejo construir um espaço em que todos possam sobreviver com liberdade, com soberania (soberania é o processo de direitos de todos dentro da Nação), onde todos possam competir pela inclusão econômica, de participação social e tratamento igual perante as leis. Sempre que alguém quer impor uma forma de as pessoas se comportarem, algo está errado, está extremado, sobretudo se a imposição vislumbra a eliminação. Preciso saber, em meu processo crítico, que os outros dependem do meu processo de ação, que não pode ser legitimado pelo falseamento da realidade. Não há reconhecimento da verdade obtida à custa de aplicação de placebo. As consequências do que faço não se voltam só contra mim, para o bem ou para o mal. Às vezes, o que uma pessoa faz se volta muito mais sobre os cidadãos menos aquinhoados de possibilidades econômicas e de restritas capacidades de decisão. Esses são os mais susceptíveis a dar guarida ao processo de ilusionismo/Iluminismo do bloqueio do acesso ao conhecimento.

Aquele que aceita a mentira e a defende e a espalha é um doente ao qual se receitou o placebo (puro composto de farinha ou de qualquer outra fécula). Pode até ocorrer de, psicologicamente, o doente em que se injetou a mentira sentir a ilusão de cura, julgar que algo passou a funcionar a seu favor. Soma-se a isso a decisão do indivíduo, dentro desse processo, de deixar de se importar, conscientemente, com a absorção da mentira. Quer uma narrativa que corresponda ao seu imaginário, no entanto, o mundo real, onde a vida se opera, depende de questões factíveis, que suporte um corpo, que abra uma estrada ou mate a fome. Não é porque li a passagem bíblica onde Cristo anda sobre as águas que vou me enfiar na superfície líquida sem me guarnecer de algo que me sustente sobre a fluidez. Se a realidade passou a ser insuportável, muitos deixaram de se preocupar com a sua falsificação. A explosão de uma bomba na Cochinchina, com o floreio da informação, passa a intimidar as pessoas dentro de um lar no interior do Brasil. Não posso também colocar uma arma mão e julgar que resolverei as questões da violência urbana eliminando toda a população de um bairro pobre. O máximo que vou provocar é o desencadeamento de outras injustiças.

Pintura de Rafal Olbinski

Se adotamos a misantropia como estilo de vida, que é viver isolado, sem companhia, passamos a ter pensamentos hostis, passamos a perder as conexões humanas necessárias para a permanente contribuição para a instauração de uma comunidade harmônica. O misantropo pensa só com ele mesmo, num processo crítico raivoso, que não permite acolhida do que está fora. Não podemos esquecer que a presença de outra pessoa ao nosso lado nos deixa alertas para a Humanidade a qual pertencemos, que temos de ter pensamentos (crítica) que contribuam para a compreensão que somos seres gregários, que ocupam o mesmo espaço. Assim como rejeito outra pessoa, outra pessoa também pode me rejeitar, mas, se estamos juntos, compreendemo-nos como ocupantes do mesmo espaço e com direito a ele (ver o documentário “Por que Odiamos”, de Steven Spielberg, sobretudo o capítulo 6, que julga ainda existir esperança). Juntos, tornamo-nos seres visionários, vigilantes e fortalecidos pela soberania de todos os cidadãos. A Humanidade sempre sai humilhada quando alguém aparece para pregar a desagregação e a uniformização. Se somos seres misantropos, trancamo-nos num processo crítico raivoso, não queremos sair de nosso conforto ou ódio, e corremos o risco de nos tornarmos vilões, seres criminosos, sempre prontos a dar apoio a propostas que anulam aqueles que divergem de nossas convicções. Somos humanos, civilizados, quando agregamos pensamentos que defendem a soberania, a liberdade, a riqueza de todas as camadas sociais.

Como construímos nossa humanidade? Com conhecimento, que nos torna seres questionadores, capazes de argumentar com justiça, ajustados à realidade, capazes de reconhecer que os espaços urbanos, políticos e econômicos não são só nossos. Todos têm de estar ajustados na nacionalidade – isto é a soberania. Em nossa misantropia, chegamos ao descalabro de sermos “negligentes com a verdade”, de perdermos a razoabilidade frente a ela (aqui também são argumentos de Harry G. Frankfurt, no livro Sobre a verdade). Como bem expressa Antonio Miranda num livro de poemas que dialoga com Michel Serres, em versos páreos do “Inferno” de Dante:

E devemos ter cuidado com os “engajados”

condenados à fidelidade cega e extrema.

Pintura de Rafal Olbinski

Aos engajados a extremismos não interessam as verdades seculares, razoáveis, já experimentadas pelas Civilizações. A fidelidade extrema sobrevive à custa de processo crítico falsificado de toda razoabilidade, que não admite sobrevivência (ou convivência) das liberdades mais comezinhas. Julgam que a fidelidade dá a eles garantia de sobrevivência sobre uma capa protetora, devendo os demais segmentos ser domesticados ou extirpados à machadinha.

Por isso, a importância do processo crítico responsável. Por isso, a importância da existência da cultura, que enriquece nossos procedimentos de elucidação das informações. Os criadores constroem suas obras a partir de conflitos de suas comunidades. Os artistas são pessoas que estão ao nosso lado para destruir a nossa misantropia, destruir o ódio que sentimos contra as camadas das quais divergimos.

Diria mais à garotinha. Pense sempre em arranjos de beleza, em arranjos que impeçam a violência, em arranjos que não sejam só arroubos de dinheiro. Se tiver de gritar, garotinha, grite não porque tem riqueza ou poder, mas porque tem oferta de harmonia, grite porque deseja contribuir com verdades que ajudam o mundo a ser duradouro e possamos conviver felizes com nossas divergências e diferenças.

Salomão Sousa, poeta e crítico literário, é colaborador do Jornal Opção.

Ouça Billie Holiday cantando “Strange fruit”