Escritores criativos se lançam no terreno da fantasia do qual são senhores, conquistam-no e tornam-no habitável a despeito dos “nãos” empíricos e reais

Luana Silva Borges

Estou lendo, por ocasião da tese, textos, trechos e maquinações analíticas que tentam responder questões que parecem simples à primeira vista: o que faz um escritor criativo escrever? Como ele escreve? O que o difere daquelas pessoas que, por sorte ou por azar, não escrevem? (A essa pergunta, vem-me outra: e há mesmo uma diferença entre essas duas instâncias? Ora, toda escritora e todo escritor não se sabem iguais à humanidade de qualquer mulher ou homem?)

Pintura de Rafal Olbinski

E por que um dia eu, ao ler Clarice Lispector, disse a mim mesma — internamente e toda séria — que, se um dia eu morresse como Macabéa, ia pelo menos estar toda inteira? Essa pergunta queria dizer que eu percebia, que eu sentia, que aquela personagem era um trecho, no meu de-dentro, mais verdadeiro do qualquer fala que jamais proferi. Do que qualquer laço meu com o externo. Macabéa era o meu afeto mais profundo? Quer dizer que eu tinha o sentimento, indizível e verdadeiro, de ter o mesmo sangue escondido e guardado e forte de Maca?

Afinal, por que um romance se torna tão verdadeiro, a ponto de esquecermos que ele é, como qualquer obra artística, uma convenção mais ou menos arbitrária? Por que as pessoas dizem que “fulano de tal”, um ente de carne e osso, “se parece demais” com o personagem do romance Xis, um protagonista que nem existe!?

Todas essas questões, que me vêm assim em turbilhão e as quais escrevi em uns 20 segundos de atabalhoamento, podem então aqui ser resumidas em dois eixos essenciais. O primeiro: que criatividade é essa que, a um só tempo, emana do escritor mas diz de mim? O segundo: que criatividade é essa que, a um só tempo, é pura fantasia e a verdade mais funda?

Olhos sobre a mesam de Remedios Varo
Pintura de Remedios Varo

É evidente que esse texto é uma brincadeira, por certo levada a sério. É óbvio que não tenho a ingenuidade de pretender lhes responder tais questões. Nem a mim mesma tenho respostas! Mas sei que um dia li em Freud, quando ele fala sobre os devaneios dos escritores, algo assim: “O escritor criativo faz o mesmo que a criança que brinca”. Quando eu era menina, lembro-me ainda de me fechar no quarto de meu irmão — que havia se mudado para Uberlândia e deixado o terreno livre às minhas expedições — e ali pular sozinha, imaginando… É interessante que hoje me recordo que eu nunca imaginei quieta, que eu nunca brinquei nem fabulei ajoelhada em um cantinho discreto com minha boneca, com minhas bolitas (que é como, em Mineiros, chamávamos as bolas de gude) e com meus carrinhos. Ao contrário: eu pulava e pulava e soltava os braços e rodava e rodava e rodava maneando a cabeça e equilibrando os trecos e brinquedos nos dedos… (aí estão as raízes fundas de meus pés que balançam enquanto escrevo, agora mesmo, este texto).

Mas, como diz Freud, era a sério que eu entrava no quarto de meu irmão (espécie de rei e de cristal da casa), dispensando muita emoção às minhas brincadeiras e, naquele terreno proibido (ao menos a uma garotinha como eu) da masculinidade falocêntrica, fincando ali minha bandeira de conquistadora: era a sério que me fazia a rainha-rei da brincadeira. Como vai dizer Freud: é que “a antítese de brincar não é ‘o que é sério’, mas o que é real”. Então eu fabulava e criava, e assim combatia o real no qual eu era apenas uma garota sem acesso ao território dos adultos e dos homens. E assim me tornava uma conquistadora — de mim mesma? — a despeito das interdições.

Pintura de Igor Morski

Quer dizer que se tratava de uma fabulação, de uma invenção, em si mesma inexoravelmente subversiva, embora jamais, garanto que nunca, intencionalmente afeita à subversão? Sim. Ora, eu não acordava e esfregava minhas mãos ardilosas dizendo-me: “Hoje é dia de maldade, dia em que vou sambar minha brincadeira no quarto do rei”. Eu só ia! Pelos cantos e até rindo! Um riso assim tortinho e já amarelo de bala, um riso que disfarçava este coração que, àquela altura, batia às pressas já ensaiando os pulos e batuques dos pés, certificando-se de que, não, não haveria nenhum adulto à espreita, que eu poderia sim ir até o quarto, pegar com meus dedinhos finos e silenciosos o trinco da porta e simplesmente abri-la. E, munida com não sei quê de coragem, eu poderia, sem ninguém à vista, rumar ao incerto de meus pulos imaginativos, e eles traçavam no chão do terreno que não era meu, terreno do mais profundo outro, do que é alheio a mim e mesmo inacessível, traçavam as trilhas da boneca-carrinho-bolita, meus personagens, e por eles eu reinava secreta na minha história mais íntima, com ânsia de sobreviver ao mundo no qual fui jogada, como todos nós, de forma aterradora, mundo que não era meu.

E o que isso tudo tem a ver com a escrita? É porque imagino que o escritor criativo também se lance, incerto e com uma coragem inexplicável, ao terreno do outro, do “alter” inacessível: e dele faz, paradoxalmente, seu acesso e morada. Exatamente como a criança que conquista um quarto que não é seu! É por isso que Macabéa se torna mais propriamente minha do que de uma Clarice desconhecida! Como Freud disse um dia, aqui adaptado: “O escritor nos oferece uma possibilidade de nos deleitarmos com nossos próprios devaneios, sem autoacusações ou vergonha”.

Pintura de Vladimir Ezhakov

E também porque imagino que, tal como a menina sonhadora que pula a sério no imaginativo da fábula, e assim dá de ombros aos olhares adultos vigilantes, os escritores criativos se lançam, em um pulo profundo, no terreno da fantasia do qual são senhoras e senhores, conquistam-no afinal, organizam-no, tornam-no habitável a despeito dos “nãos” empíricos e reais, a despeito dos que os observam impacientes.

Mas, atenção!, trata-se de um “a despeito” que jamais nega o mundo concreto… Ao contrário: dá de ombros e o despeita, denegando a realidade como a menina que brinca, para, ainda paradoxalmente, voltar-se ao real. Isso porque é nele que a fantasia finca seus pés e bandeiras; é nele onde ela deixa seus rastros e vestígios subversivos; é neste quarto mesmo, com móveis tão duros de existentes!, que a garota-escritora propositalmente esquece os brinquedos, ressignificando um espaço outrora apenas prático e funcional, às vezes um pouco cinza.

No mais, e estamos terminando, sabe-se ainda que a menina inventiva coloca, em sua brincadeira, enlaces e desenlaces que ela retira da concretude de sua vida cotidiana e familiar. Sabe-se que, na brincadeira, ela dá a seus personagens os nomes reais de seu entorno. Se é assim, tal como na fantasia, a escrita criativa – ela também – só pode funcionar se mantiver relações estreitas com o mundo.

Quando mente profundamente ser a rainha-rei de um lugar que lhe foi interditado (afinal, toda a realidade de um quarto, e da vida, é inacessível a nós em sua concretude e completude), a menina, mesmo sem saber, apenas revela a sua vontade de inteireza. E eu pergunto, finalmente, a vocês: no âmbito do ser, há alguma relação mais íntima com a verdade do que esse desejo?

O fabulador, a fazedora criativa de textos, a menina que brinca, todos eles, ao mudarem o mundo em suas invenções, têm em comum o fardo e a bênção de carregarem o desejo genuíno de transformar a realidade. Mesmo que o neguem, como frequentemente fazem, esses escritores estarão lá: fabulando o que não é, solitários e vivos em cadeiras puídas, tortos nos ônibus, descabidos nos gabinetes. É pelo desejo de mudança que eles fazem da realidade sua matéria-prima e brinquedo. E riem. Bem sérios.

Luana Silva Borges é jornalista, mestra em Estudos Literários e doutoranda em Comunicação, na linha de pesquisa de Mídia e Cultura, pela Universidade Federal de Goiás.

Nota

O texto foi proferido no Grupo de Estudos Dona Alzira — Espaço, Sujeito e Existência, da Universidade Federal de Goiás. Lido no dia 7 de março de 2020, em um evento que tinha como tema os processos de escrita em tempos de pressa, pressão e depressão.