O que encanta em “O Rei de Amarelo” não é um segredo que devamos descobrir, ou um enigma que buscamos resolver, mas a presença de uma realidade misteriosa, uma espécie de espectro “instalado na evidência das coisas”, inacessível ao pensamento

O Rei de Amarelo
Título original:The King in Yellow
Autor: Robert W. Chambers
Páginas 256
Editora Intrínseca
Tradução: Edmundo Barreiros

“Deus está no particular.”
— Aby Warburg

Philippe Sartin
Especial para o Jornal Opção

1.
Graças à primeira temporada de “True Detective”, exibida pela HBO, em 2014, “O Rei de Amarelo”, publicado em 1895 por Robert W. Chambers (1865-1933), tornou-se conhecido do grande público (no qual prudentemente me incluo), já que foi lançado no Brasil, no mesmo ano de 2014, pela Editora Intrínseca. O ótimo roteiro de Nic Pizzolatto – abrilhantado pelas atuações icônicas de Matthew McConaughey e Woody Harrelson, e pela excelente direção de Cari Fukunaga – trata de uma série de assassinatos envolvendo menções a estrelas negras, à misteriosa Carcosa e um rei que vive na floresta. Divagações metafísicas e sofrimento psíquico dividem espaço, numa trama alucinante, com a paisagem degenerescente do interior da Louisiana, fazendo com que seu sucesso – enquanto realização artística – deva-se menos às referências explícitas à obra de Chambers e mais aos procedimentos estéticos emprestados de seus contos.

Quem, afinal, é o Rei de Ama­re­lo? Trata-se da personagem principal de uma peça homônima da qual só conhecemos as vagas e temerosas alusões feitas pelas personagens de quatro estórias: “O reparador de reputações”, “A máscara”, “No pátio do Dragão” e “O emblema amarelo”. A leitura da peça escrita – sobretudo de seu segundo ato – conduz de imediato à estupefação, ao delírio e ao terror indizível. Para além de sua presença, os contos mantêm uma frouxa relação entre si, girando em torno de donzelas e artistas jovens. Há poucos maneirismos na linguagem; sua virtude é misturar um enredo aparentemente banal com devaneios alusivos à temida peça:

“Pensei, também, no Rei de Amarelo envolto nas cores fantásticas de seu manto esfarrapado e naquele grito amargo de Cassilda: ‘Não sobre nós, oh, Rei, não sobre nós!’ Exaltado, lutei para afastar o pensamento, mas vi o lago de Hali, raso e imóvel, sem ondas ou vento para agitá-lo. Vi as torres de Carcosa atrás da lua. Aldebarã, as Híades, Alar, Hastur, todos pairavam através das fendas entre as nuvens que adejavam e ondulavam ao passar como os retalhos ornamentados do Rei de Amarelo” (A máscara).

Onde ficam Carcosa e o lago de Hali? O que são o Fantasma da Ver­dade e a Máscara Pálida? Qual é o mistério das Híades? Quem são Camilla e Cassilda? Como podem estrelas negras subirem numa noite estranha? Como seria o emblema amarelo? Chambers, muito habilmente, elide todas as explicações: cabe ao leitor imaginar as profanidades da peça, o seu horror alucinatório e o significado desses belos nomes. Sua presença inquietante, terrorífica e sedutora, insinua-se em pequenas doses até subverter a narrativa e conduzir as personagens à loucura. É desse expediente que desejo me ocupar.

2.
T. S. Eliot, o grande poeta americano, explicando um procedimento que usava em seus próprios textos (e passando um pito histórico no “Hamlet” de Shakespeare), acreditava que a única maneira de expressar emoção em forma de arte consistia em encontrar “um conjunto de objetos, uma situação ou uma cadeia de eventos que dessem forma a uma emoção particular”, de modo a, tão logo fossem apresentados, a emoção fosse evocada. A isto ele deu o nome de correlativo objetivo (“Selected Es­says”, Farber and Farber, 1948, p. 145) e, embora seja uma tese pouco simples, é bastante útil para entendermos “O Rei de Amarelo”. Ao elidir a narrativa da peça, e apenas evocar seus fragmentos – Carcosa, as estrelas negras, os sóis gêmeos – Chambers apresenta aos leitores um terror incomunicável; não fica clara a correlação entre as imagens, altamente poéticas, e o efeito emotivo das personagens, pois o nexo narrativo está perdido. E é justamente aqui que reside o seu encanto. Fica-se face ao incompreensível, como a contemplá-lo. E uma emoção diferente, que nada tem de insana, apodera-se dos leitores.

Essa poética do fragmento – consagrada, décadas depois, por escritores como Ezra Pound, o próprio Eliot e, claro, os surrealistas – ao apresentar-se como devaneio num enredo totalmente diverso, como no caso dos quatro contos, sobrepuja a sequência dos eventos, projetando sua aura sob a forma de mistério. O que encanta em “O Rei de Amarelo” não é um segredo que devamos descobrir, ou um enigma que buscamos resolver, mas a presença de uma realidade misteriosa, uma espécie de espectro “instalado na evidência das coisas”, inacessível ao pensamento. Como disse, certa vez, Vladimir Jankelevitch, “um segredo se descobre, mas um mistério se revela, e é impossível descobri-lo” (“Pensar la muerte”, Fondo de Cultura Eco­nó­mi­ca, 2004, p. 35). Contrariando, portanto, a máxima aristotélica, não é no enredo que reside a força de seus contos, mas nas reminiscências das personagens, nos rastros deixados pelo texto dentro do texto.

Robert W. Chambers influenciou toda uma geração de escritores vinculados à narrativa de terror | Foto: Reprodução

A ideia de fragmento, de vestígio (com que os leitores de Eliot estão acostumados) faz-se tanto mais presente no livro de Chambers quanto o fato deste ter-se inspirado num conto preexistente, “Um habitante de Carcosa”, de Ambrose Bierce (1842-1914). Aqui um homem vaga pelas ruínas da “famosa e an­tiga cidade de Car­cosa”, sem sa­ber que o faz, até a­poderar-se de um sú­bito terror, ao contemplar certo nome numa lápide carcomida pelo tem­po. Chambers retira de Bierce os nomes, o ambiente evocativo, numa espécie de bricolage literária.

“Olhando para cima vi, por uma brecha nas nuvens, Aldebaran e as Híades! Em tudo isso havia uma sugestão de noite – o lince, o homem com a tocha, a coruja. Contudo eu via… via mesmo as estrelas na ausência da escuridão. Via, mas aparentemente não era visto nem ouvido. Sob que terrível encanto eu vivia (Um habitante de Carcosa, p. 217)”.

Fragmentos de um conto sobre ruínas sob a forma de alusões a uma peça jamais narrada. E, apesar de tudo, não nos cabe reconstruir cada um destes passados, como um historiador o faria. É a teologia negativa de “O Rei de Amarelo” que garante a sua riqueza literária: assim como a especulação mística, incapaz de dizer o que deseja, envolta em luzes escuríssimas, o experimento artístico de Chambers estimula a imaginação e transforma-se em poesia, não pela condensação de sentido (como queria Pound), nem pela associação de imagens distantes (segundo a teoria de Breton), mas por meio da citação de fragmentos narrativos deslocados e condensados, numa espécie de correlato objetivo freudiano que, admiravelmente, assume a forma ora de sonho, ora de neurose. É um artifício, como em toda literatura. Mas um artifício poderoso.

3.
Voltemos a “True Detective”. Disse acima que a série lança mão deste mesmo artifício para produzir seu fascínio. De fato, assim como os enredos de Chambers perdem relevância artística diante das alusões encantatórias à peça, as investigações dos detetives Hart e Cohle pouco tem de incomum fora do ambiente psicótico, visionário e misterioso dos oito episódios da primeira temporada. Há algo como o horror cósmico de H. P. Love­craft – um admirador confesso de Chambers – sem, todavia, a grandiloquência frenética e superlativa de suas imagens. Mas há ruínas – fragmentos, reminiscências, poesia e incompreensão. Fala-se do Rei de Amarelo, sem jamais mencionar-se o livro. Teriam as personagens lido a tenebrosa peça? Teriam entrado em contato com os inefáveis mistérios de Carcosa? Aqui, igualmente, não há explicações. Resta-nos contemplar a misteriosa fanopéia de Nic Pizzolato, envolta nos retalhos do Rei de Amarelo.

Philippe Sartin é doutorando em História pela Universidade de São Paulo (USP)