A poesia religiosa de John Donne

03 março 2018 às 12h49

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De forma inédita, Marcus de Martini organiza e traduz pela Editora UFSC antologia bilíngue do poeta inglês, que inspirou muitos escritores modernos e cuja importância tem sido muitas vezes comparada à de William Shakespeare

Dirce Waltrick do Amarante
Especial para o Jornal Opção
“Nenhum homem é uma ilha, inteiramente isolado; todo homem é um pedaço de um continente, uma parte de um todo. Se um torrão de terra for levado pelas águas até o mar, a Europa fica diminuída, como se fosse um promontório, como se fosse o solar de seus amigos ou o seu próprio; a morte de qualquer homem me diminui, porque sou parte do gênero humano. E por isso não perguntai: Por quem os sinos dobram; eles dobram por vós” (tradução de Fábio Cyrino).
Esta célebre meditação do poeta inglês John Donne (1672-1633), que se encontra no livro “Devoções para Ocasiões Emergentes” (1624), serviu de inspiração a muitos poetas e escritores, entre eles o norte-americano Ernest Hemingway, que teria se norteado por ela para escrever seu romance “Por Quem os Sinos Dobram” (1940).
Otto Maria Carpeaux lembra que, quando Hemingway buscou inspiração em Donne, a referida obra do poeta inglês ainda era “pouco conhecida”. De fato, sua obra como um todo só veio a ser reconhecida séculos depois de sua vida.
Em 1618, o inglês Ben Johnson, contemporâneo do poeta, teria profetizado: a obra de Donne “por não ser entendida perecerá”. Donne era incompreendido, em parte, por ter rompido com o gosto poético de sua época, buscando inspiração muito mais nos satiristas latinos e na poesia erótica de Ovídio do que em Petrarca, como o faziam outros poetas de seu tempo. Os séculos seguintes também não foram capazes de entender a sua obra.
Num livro sobre poesia inglesa, Donne teria sido descrito, lembra Carpeaux, como “o poeta de imagens gastas e convencionais”. Na opinião do ensaísta, contudo, o autor de “Devoções” é o menos convencional e mais pessoal da língua inglesa, portanto não é mais possível escrever sobre poesia inglesa “ignorando de tal maneira o poeta cuja redescoberta determinou, largamente, o abandono dos standards vitorianos e a evolução da poesia moderna”.

Um outro aspecto
É sobre esse poeta que se debruça Marcus de Martini, organizador e tradutor da antologia “Poesia Religiosa – Antologia”, de John Donne, publicada recentemente pela Editora UFSC, da Universidade Federal de Santa Catarina. De Martini assina também um longo ensaio sobre a vida e a obra do poeta inglês, além de incluir reflexões sobre o processo tradutório.
No prefácio a essa antologia, Lawrence Flores Pereira afirma que “Donne é conhecido no Brasil sobretudo por sua poesia erótica e amorosa, pelo seu ‘catulismo’, seu ovidianismo”. “Poesia Religiosa” destaca, todavia, um outro aspecto da obra do poeta inglês, que nasceu numa família católica, mas converteu-se ao anglicanismo, tornando-se pastor e, posteriormente, decano da Catedral de São Paulo em Londres. Foi justamente depois de seguir a carreira religiosa que Donne abandonou a poesia de “ares libertinos”, como destaca Martini.
A mudança de estilo de John Donne, da poesia amorosa e satírica para poesia secular e religiosa, trouxe à tona reflexões contundentes e filosóficas sobre o sentido da vida e da morte, em versos de doze sílabas, na tradução: “Morte, que não te orgulhes de tu seres tida/ Como forte e terrível, pois não és assim,/ Pois aqueles aos quais pensas poder dar fim/ Não destróis, e nem podes me tirar a vida”.
Essa poesia sacra revela Donne como um dos mais importantes poetas metafísicos de seu tempo, cujo nome, a partir do século 20, torna-se obrigatório em antologias que reúnem outros poetas do gênero.
A poesia religiosa de Donne ganhou traduções também para o português, mas, com essa antologia bilíngue proposta por Martini, é a primeira vez que temos uma vasta amostra dos poemas religiosos mais destacados do poeta inglês, cuja importância tem sido muitas vezes comparada à de Shakespeare.
Dirce Waltrick do Amarante é tradutora. Organizou e traduziu, entre outros, “Finnegans Wake (Por um Fio)”, de James Joyce (Iluminuras, 2018)