Poesia de Dairan Lima é pra ser degustada sem compromisso com a busca de um lirismo autoexplicativo
28 junho 2021 às 13h25
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Há uma espécie de jogo com o leitor, que deve deixar-se levar pelos poemas-quase retratos fragmentados de histórias de amor, luxúria ou desencantos
Simone Athayde
Especial para o Jornal Opção
Caro leitor, cara leitora, quando você pensa na cor vermelho, a que você a associa? Após ler o livro de poemas “Vermelho”, da escritora goiana-tocantinense Dairan Lima (NegaLiu Editora, selo Pantheon), fui pesquisar sobre essa cor e sua simbologia. Na cromoterapia, o vermelho é poderoso e usado para ativar a circulação e estimular o sistema nervoso, podendo causar como efeito colateral nervosismo e ansiedade. É a cor da energia, ambição e determinação. Os botões de emergência e os sinais de advertência são sinalizados de vermelho. Pode indicar coragem e força, o noturno e o feminino. Remete a poder, guerra, perigo, violência, revolução; igualmente ao amor, romance, coração, paixão, desejo, carne, sexo, pecado, tentação, apetite e excitação.
Todas essas qualidades da cor podem ser aplicadas à leitura do livro de Dairan Lima e explicam a escolha do título. “Vermelho” é um livro de poemas para ser degustado sem compromissos com a busca de um lirismo autoexplicativo. A autora, formada em Letras e professora de Português aposentada, tem domínio do mister poético, e faz uma espécie de jogo com o leitor, que, antes de encontrar um sentido para o que lê (como em uma história com começo, meio e fim), deve deixar-se levar pelos poemas que são quase retratos fragmentados de histórias de amor, luxúria ou desencantos:
III
Troquei
As flores do jarro
(uma velha fotografia
eu mesma fiz questão de destruir,
embora ela continue a me sorrir
do porta-retrato vazio
sobre a estante).
O livro “Vermelho” tem que ser lido como um conjunto de mosaicos que se unem para formar um todo, a partir mesmo da capa — com sua primorosa arte em papel camurça —, dos títulos de cada parte e dos poemas numerados em algarismos romanos. E esse conjunto vai contar uma história, ou histórias que também não fazem sentido por si sós, mas que, num crescendo lírico, revelam facetas do envolvimento dos pares retratados, do eu-lírico consigo mesmo, e deles com o leitor, que necessita entrar na obra sem exigir retirar dele um significado pleno.
O livro se divide em seis partes, começando em “O cio e a espera”, passando pelo “Encontro”, pelas “Saudades” e chegando ao “Assentamento”, formando uma espécie de simulação poética da espera dos encontros amorosos, com suas excitações; dos encontros eróticas e de almas; das partidas, sempre tristes; das saudades deixadas pelos amantes que se vão; da trajetória da mulher que fica e se redescobre. Essas partes, no meu ponto de vista, tal como o vinho melhor que fica para o final da festa, vão preparando para as seguintes, trazendo peças poéticas mais bonitas e interessantes. Veja, por exemplo, um dos últimos poemas do livro, que pode ser lido como uma espécie de libelo sobre a condição feminina:
XXXVI
Enfeitaram-me com as rendas
Mais caras e finas
E disseram:
— Vai, Eva, padecer no paraíso.
Dois poemas da parte “A saudade e a memória” me chamaram especialmente a atenção, o XVII e este XVI:
Me faltam maneiras,
Jeito, queda,
Que possam traduzir
Sentimentos quebrados.
Aqui temos uma personificação não usual (quebrados) aplicada a algo abstrato (sentimentos) trazendo sentido ao leitor que, como ser humano, em alguma época de sua vida pode ter tido essa sensação à qual a poeta, com sua sensibilidade, consegue expressar em palavras.
Na parte “Saudades e delírios” temos o poema XXII:
Aquela gaveta,
Nunca mais abri.
É que tua blusa
Salta dela
E perfuma
E fere.
Tal como o vermelho fala diretamente aos nossos sentidos, nesse poema temos uma saudade doída que é expressa pela impossibilidade de abrir uma gaveta onde jaz uma peça da pessoa amada, pois ao abri-la, a peça é como se criasse vida com seu cheiro que machuca o olfato e o coração “ferido”.
Como bem diz Wallace Neto no prefácio do livro, não há respostas em “Vermelho”, que “não sacia a sede, aliás, era como ver vários falsos oásis por um deserto e continuar”. Talvez seja esse o grande mérito da obra de Dairan Lima: oferecer a aventura de uma viagem poética não com o objetivo de se chegar a algum lugar definido, mas pelas sensações que o caminho oferece.
XXVII
Essa carta
é para ser lida
a sós.
Nada de empreiteiros,
de piratas,
que possam
afogar
minha nave.
(Os tripulantes são belos
e cheios de sol).
Mas, eu preciso
de um comandante
voraz,
sagaz,
capaz
de apaziguar
meu porto.
Preciso de uma noite
— de mil e uma noites —
pra deixar de me encantar.
Assim, remeto a carta.
Simone Athayde é escritora, membro da Academia Anapolina de Letras e da União Literária Anapolina. É colaboradora do Jornal Opção.