O livro conta com tradução precisa de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco e uma apresentação esclarecedora

Tradução recente da poesia de César Vallejo | Foto: Jornal Opção

Ao lado do argentino Oliverio Girondo e do chileno Vicente Huidobro, o peruano César Vallejo (1892-1938) é um dos maiores poetas da América Latina. Ele morreu em Paris, na miséria, aos 46 anos. Sua obra já ganhou tradução no Brasil, mas merece novas traduções.

A “Poesia Completa” (Rio Arte, 260 páginas) ganhou tradução de Thiago de Mello. Há mérito nas versões, mas fica-se com a impressão de uma certa falta de contenção do tradutor. Talvez seja apenas impressão. A Iluminuras publicou o romance “Tungstênio” (167 páginas, tradução de Jorge Henrique Bastos). Leitores que apreciam a língua espanhola podem consultar “Obra Poética” (Scipione Cultural, 760 páginas). Trata-se da excelente edição organizada por Américo Ferrari.

César Vallejo: poeta peruano | Foto: Reprodução

O leitor interessado pode ler as traduções patropis e comparar com os originais. Há sempre um ganho quando se faz isto, para a fruição da beleza da arte do grande poeta, não para desqualificar traduções — que não têm obrigação de serem “precisas”, porque, a rigor, não há como repor, de maneira integral, forma e conteúdo para outra língua. Tradução é sempre uma aproximação, e uma aproximação absolutamente necessária para a maioria dos leitores, aliás, até para os especialistas. No texto “Elétrons da obra de arte”, César Vallejo escreve que “a poesia é intraduzível” e frisa que “uma tradução é um novo poema, que só vagamente se parece com o original”. Para o bardo peruano, “o que importa principalmente num poema é o tom com que se diz uma coisa e, secundariamente, aquilo que se diz. Aquilo que se diz é, de fato, passível de ser traduzido para outro idioma, mas o tom com que isso é dito, não”.

César Vallejo e a tradução de Thiago de Mello | Fotos: Reproduções

Poemas Humanos” (Editora 34, 325 páginas, tradução de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco) contém, além da poesia de César Vallejo, muito bem traduzida (a perícia do tradutores é visível, mas não excessiva), há uma excelente apresentação de Gustavo Pacheco.

Pacheco informa que “Haroldo de Campos traduziu poemas de ‘Trilce’ e escreveu um ‘Tributo a CV’”. O tradutor diz que “Ferreira Gullar venerava o poeta e também fez versões de alguns de seus poemas; e Thiago de Mello traduziu a obra poética completa de Vallejo”. Há uma antologia bilíngue, com tradução de Amálio Pinheiro.

Só existem, assinala Gustavo Pacheco, “três traduções de sua poesia para o português”. Em Portugal há uma coletânea traduzida por José Bento e publicada pela Editora Relógio D’Água.

Por meio do portal Estante Virtual, adquiri “César Vallejo — Vida Y Obra” (Amaru Editores, 211 páginas), organizado pelo francês Roland Forgues. É uma coletânea de ensaios de vários autores.

Dois poemas de César Vallejo
1
Sermão sobre a morte

E, enfim, passando agora ao domínio da morte,

que atua em esquadrão, com seu colchete,

parágrafo e não grande chave e diérese,

para quê a mesa assíria? O púlpito cristão?

O intenso sacudir do móvel vândalo

ou então, menos ainda, este esdrúxulo retiro?

 

É para terminar,

amanhã, em protótipo do alarde fálico

em diabetes e em branco urinol,

em rosto geométrico, em defunto,

que se fazem mister sermão e amêndoas.

que sobram literalmente batatas

e este espectro fluvial em que arte o ouro

e em que se queima a prestação da neve?

É para isso que morremos tanto?

Para poder morrer,

precisamos morrer a cada instante?

E o parágrafo que escrevo?

E o colchete deísta que desfraldo?

E o esquadrão em que falhou meu crânio?

E a chave que se encaixa em qualquer porta?

E a mão grande, a diérese forense,

minha carne e batata e minha incoerência entre os lençóis?

 

Louco de mim, lobo de mim, corneiro

de mim, sensato, cavalíssimo de mim!

E mesa, sim, a vida inteira; e púlpito

também, a morte inteira!

Sermão sobre a barbárie: estes papéis;

esdrúxulo retiro: eis minha pele.

 

Assem sendo, cogitabundo, aurífero, braçudo,

defenderei minha presa em dois momentos,

com minha voz e com minha laringe,

e do físico olfato com que rezo

e do instinto da imobilidade com que ando,

serei honrado enquanto estiver vivo;

se orgulharão as minhas varejeiras,

pois, no centro, estou eu, e na direita,

e na esquerda, também, do mesmo modo.

2
Poema para ser lido e cantado

Sei que há uma pessoa

que em sua mão me busca, dia e noite,

encontrando-me, a cada minuto, em seu sapato.

Não saberá que a noite está enterrada

com esporas nos fundos da cozinha?

 

Sei que há uma pessoa compostas de minhas partes,

à qual me integro sempre que meu vulto

cavalga em seu exato pedregulho.

Será que ela não sabe que ao seu cofre

não voltará a moeda que saiu com seu retrato?

 

Sei o dia,

mas o sol me escapou;

sei o ato universal que fez na cama

com alheia bravura e essa água morna, cuja

superficial frequência é uma mina.

É tão pequena assim essa pessoa,

que até seus próprios pés a pisoteiam?

 

Um gato é a fronteira entre ela e eu,

bem ao lado de seu pires com água.

Vejo-a pelas esquinas, abre e fecha

suas vestes, qual palmeira interrogante…

Que há de fazer senão mudar de pranto?

 

E ela me busca e busca. Mas que história!

[Traduções de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco, Editora 34]