Poesia de César Vallejo chega ao Brasil em edição da Editora 34

10 abril 2022 às 00h00

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O livro conta com tradução precisa de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco e uma apresentação esclarecedora

Ao lado do argentino Oliverio Girondo e do chileno Vicente Huidobro, o peruano César Vallejo (1892-1938) é um dos maiores poetas da América Latina. Ele morreu em Paris, na miséria, aos 46 anos. Sua obra já ganhou tradução no Brasil, mas merece novas traduções.
A “Poesia Completa” (Rio Arte, 260 páginas) ganhou tradução de Thiago de Mello. Há mérito nas versões, mas fica-se com a impressão de uma certa falta de contenção do tradutor. Talvez seja apenas impressão. A Iluminuras publicou o romance “Tungstênio” (167 páginas, tradução de Jorge Henrique Bastos). Leitores que apreciam a língua espanhola podem consultar “Obra Poética” (Scipione Cultural, 760 páginas). Trata-se da excelente edição organizada por Américo Ferrari.

O leitor interessado pode ler as traduções patropis e comparar com os originais. Há sempre um ganho quando se faz isto, para a fruição da beleza da arte do grande poeta, não para desqualificar traduções — que não têm obrigação de serem “precisas”, porque, a rigor, não há como repor, de maneira integral, forma e conteúdo para outra língua. Tradução é sempre uma aproximação, e uma aproximação absolutamente necessária para a maioria dos leitores, aliás, até para os especialistas. No texto “Elétrons da obra de arte”, César Vallejo escreve que “a poesia é intraduzível” e frisa que “uma tradução é um novo poema, que só vagamente se parece com o original”. Para o bardo peruano, “o que importa principalmente num poema é o tom com que se diz uma coisa e, secundariamente, aquilo que se diz. Aquilo que se diz é, de fato, passível de ser traduzido para outro idioma, mas o tom com que isso é dito, não”.

“Poemas Humanos” (Editora 34, 325 páginas, tradução de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco) contém, além da poesia de César Vallejo, muito bem traduzida (a perícia do tradutores é visível, mas não excessiva), há uma excelente apresentação de Gustavo Pacheco.
Pacheco informa que “Haroldo de Campos traduziu poemas de ‘Trilce’ e escreveu um ‘Tributo a CV’”. O tradutor diz que “Ferreira Gullar venerava o poeta e também fez versões de alguns de seus poemas; e Thiago de Mello traduziu a obra poética completa de Vallejo”. Há uma antologia bilíngue, com tradução de Amálio Pinheiro.
Só existem, assinala Gustavo Pacheco, “três traduções de sua poesia para o português”. Em Portugal há uma coletânea traduzida por José Bento e publicada pela Editora Relógio D’Água.
Por meio do portal Estante Virtual, adquiri “César Vallejo — Vida Y Obra” (Amaru Editores, 211 páginas), organizado pelo francês Roland Forgues. É uma coletânea de ensaios de vários autores.
Dois poemas de César Vallejo
1
Sermão sobre a morte
E, enfim, passando agora ao domínio da morte,
que atua em esquadrão, com seu colchete,
parágrafo e não grande chave e diérese,
para quê a mesa assíria? O púlpito cristão?
O intenso sacudir do móvel vândalo
ou então, menos ainda, este esdrúxulo retiro?
É para terminar,
amanhã, em protótipo do alarde fálico
em diabetes e em branco urinol,
em rosto geométrico, em defunto,
que se fazem mister sermão e amêndoas.
que sobram literalmente batatas
e este espectro fluvial em que arte o ouro
e em que se queima a prestação da neve?
É para isso que morremos tanto?
Para poder morrer,
precisamos morrer a cada instante?
E o parágrafo que escrevo?
E o colchete deísta que desfraldo?
E o esquadrão em que falhou meu crânio?
E a chave que se encaixa em qualquer porta?
E a mão grande, a diérese forense,
minha carne e batata e minha incoerência entre os lençóis?
Louco de mim, lobo de mim, corneiro
de mim, sensato, cavalíssimo de mim!
E mesa, sim, a vida inteira; e púlpito
também, a morte inteira!
Sermão sobre a barbárie: estes papéis;
esdrúxulo retiro: eis minha pele.
Assem sendo, cogitabundo, aurífero, braçudo,
defenderei minha presa em dois momentos,
com minha voz e com minha laringe,
e do físico olfato com que rezo
e do instinto da imobilidade com que ando,
serei honrado enquanto estiver vivo;
se orgulharão as minhas varejeiras,
pois, no centro, estou eu, e na direita,
e na esquerda, também, do mesmo modo.
2
Poema para ser lido e cantado
Sei que há uma pessoa
que em sua mão me busca, dia e noite,
encontrando-me, a cada minuto, em seu sapato.
Não saberá que a noite está enterrada
com esporas nos fundos da cozinha?
Sei que há uma pessoa compostas de minhas partes,
à qual me integro sempre que meu vulto
cavalga em seu exato pedregulho.
Será que ela não sabe que ao seu cofre
não voltará a moeda que saiu com seu retrato?
Sei o dia,
mas o sol me escapou;
sei o ato universal que fez na cama
com alheia bravura e essa água morna, cuja
superficial frequência é uma mina.
É tão pequena assim essa pessoa,
que até seus próprios pés a pisoteiam?
Um gato é a fronteira entre ela e eu,
bem ao lado de seu pires com água.
Vejo-a pelas esquinas, abre e fecha
suas vestes, qual palmeira interrogante…
Que há de fazer senão mudar de pranto?
E ela me busca e busca. Mas que história!
[Traduções de Fabrício Corsaletti e Gustavo Pacheco, Editora 34]