Plinio Martins Filho, o artesão dos livros, é biografado por Ulisses Capozzoli
25 fevereiro 2024 às 00h02
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Hugo Quinta
Imagine um filho de sertanejo saindo das entranhas do Estado de Goiás para morar na São Paulo dos anos 1970. Era a conjuntura nacional demarcando o destino de um homem. Mas havia uma causa que o levaria a residir na Pauliceia Desvairada depois de ter morado em Pium e em outras cidades goianas, tocantinenses e na região administrativa da Capital Federal. Um transeunte por excelência, ainda que a viagem para a metrópole brasileira tivesse o claro propósito de resgatar um irmão para os laços familiares. Essa é a causa alegada em sua biografia, mas talvez ele estivesse à procura de um lugar no mundo. Nem mesmo os efeitos da viagem trafegavam em seus sonhos. O fato é que um de seus irmãos foi a origem de um novo arado em sua vida pessoal e profissional, assim como a letra F que sinalizou a fazenda Pau Ferrado com o ferro de marcar o gado.
Ali nasceu o rebento que se tornou editor e professor universitário. Na memória líquida e incerta de Plinio Martins Filho, a tipologia da letra F entranhou-se na história do jovem que chegou à capital paulista e iniciou sua experiência no mundo dos livros ao trabalhar no depósito da Editora Perspectiva. Começou de baixo, empacotando livros, e no decorrer do percurso alçou voos maiores não apenas por necessidade material, mas também por uma lenta e zelosa paixão pelos livros. Nos primeiros anos, ele sobrevivia em condições precárias, carregando o sertão no lombo e na história de sua vida itinerante, semelhante à trajetória de milhares de brasileiros daquela época.
O movimento do campo para a cidade sacramentou a urbanização do país, ainda que sob o preço de deixar as terras à mercê da especulação latifundiária. Milhares de famílias desejavam a cidade grande como uma ponte para o futuro, mas jamais poderiam imaginar que se tratava de uma pinguela para a miséria. A ventura e a competência foram determinantes nos caminhos do nosso personagem. Ele era o penúltimo dos sete filhos do casal Plinio Martins Oliveira e Maria da Costa Oliveira. A mãe era uma dona de casa firme, resiliente e resolutiva como aroeira, enquanto o pai era um vaqueiro e agricultor pacato, de pouca prosa e grande admirador da arte de escrever na areia com um graveto. Com exceção do filho que se tornou editor de prestígio, nenhum integrante da família seguiu a carreira profissional no universo dos livros.
Plinio chegou à Perspectiva por intermédio de seu irmão Olívio Martins, que trabalhava no depósito da empresa. Olívio voltou para o Cerrado e Plinio ficou em São Paulo. Dos dezoito anos em que trabalhou na casa editorial do renomado intelectual Jacó Guinsburg, ele trilhou seu caminho do depósito para a revisão de livros, até se tornar gerente de produção editorial. Foi em razão do trabalho desempenhado na Perspectiva que o professor João Alexandre Barbosa o convidou a integrar os quadros da Editora da Universidade de São Paulo, em 1989, para ser o timoneiro do Departamento Editorial. Uma ascensão que o levou a assumir a presidência da Edusp em 2000, até ser desligado do cargo em 2018. E foi durante o período de chefia da editora universitária que ele decidiu fundar a Ateliê Editorial, em 1994, selo que se tornaria seu projeto editorial autoral.
A saga do garoto sertanejo para se tornar um personagem incontornável na história do livro no Brasil está em “Plinio Martins Filho — Editor de Seu Tempo”, escrito por Ulisses Capozzoli e publicado pela editora WMF Martins Fontes, em junho de 2023. Suas 352 páginas versam sobre a biografia de alguém que teimou para vencer na vida. E os livros foram seu aliado no decorrer do árido percurso até se tornar diretor-presidente da maior editora universitária do país e responsável pela publicação de 3500 obras desde o início de sua atividade como editor.
Um ofício praticado pelo biografado com respeito e atenção aos leitores. Parte significativa do público leitor desconhece o trabalho editorial que desencadeia a publicação de uma obra. Se é bem editado, quase ninguém questiona qual foi a editora e o editor daquele livro. Mas se é mal editado, os leitores geralmente procuram saber os responsáveis pela obra defeituosa. A diferença entre a boa e a má edição está na habilidade e na competência do editor para cuidar dos aspectos materiais do livro com maestria. O formato da obra, o papel utilizado no miolo e na capa, a composição, a seleção das fontes, a mancha tipográfica, as imagens devidamente tratadas e evidenciadas, a revisão cuidadosa, o design criativo e ao mesmo tempo elegante, assim como a qualidade da impressão, conformam a produção de um título em que a beleza e a leitura prazerosa são partes integrantes do livro.
São por esses motivos que a biografia de Plinio Martins Filho entra no rol das obras cuidadosamente pensadas e editadas. Nada é por a caso nos aspectos materiais do livro, cujo formato é 15,7 centímetros de largura por 23 centímetros de altura. Esta configuração permite uma composição equilibrada entre as margens e a mancha tipográfica, elementos que tornam a leitura e a compreensão do texto mais agradável. Freight e Mercury são as fontes utilizadas que proporcionam melhor legibilidade do texto – a primeira empregada na capa, no olho e na folha de rosto, enquanto a segunda está nos paratextos e nos capítulos do livro. O papel selecionado para a capa foi um robusto cartão de 250 g/m2, enquanto o Avena de 80 g/m2 integra o miolo, promovendo suavidade e experiência tátil.
Essas características materiais foram habilmente empregadas pelo talentoso Gustavo Piqueira, escritor e artista gráfico responsável pelo design do livro. Seu trabalho expressa unidade e assimetria na reprodução das fotografias, dos borrões gráficos e das ilustrações projetadas na obra. As fotos do editor na livraria da USP são coerentemente utilizadas na capa e na folha de guarda de uma obra biográfica. E o caderno de fotografias apresentado logo no início do texto dão o tom das histórias que o leitor vai encontrar no miolo do livro. As fotografias de familiares, amigos e colegas dialogam com as imagens da fazenda e desarranjam a biblioteca pessoal de Plinio, explorando as dimensões afetiva e profissional do biografado.
A materialidade do livro acolhe o texto de Capozzoli com requinte e sobriedade. Ele não esconde o tom reverencial de sua obra. Há uma clara simpatia pela história de Plinio. A franqueza é digna de mérito, e é ainda mais admirável a maneira como o biógrafo narra a vida do biografado, contextualizando-a com a conjuntura social, político e cultural do Brasil do meio do século passado. Mas o ponto alto da obra são os três primeiros capítulos que narram as origens familiares, os encontros e as despedidas de Plinio Martins Filho até aterrar em São Paulo. Suponho que diante de tal afirmação, vocês devem estar se perguntando por qual motivo ler um livro em que o melhor está no início. E uma das respostas possíveis está na própria obra: os onze capítulos subsequentes apresentam e destrincham o percurso do homem que se tornou um grande editor brasileiro.
Para não deixar um ponto sem nó, o quinto e o sexto capítulo da biografia explicitam as motivações que levaram Plinio da Perspectiva para a Edusp. Quando foi aprendiz de Jacó Guinsburg, ele assimilou todas as etapas de confecção de um livro. Esmerou-se na publicação de coleções editoriais, a exemplo da Debates, Estudos e Signos, carros-chefe da casa, onde ele conviveu com a fina flor da intelectualidade brasileira. Alguns eram autores da Perspectiva, outros eram amigos de Guinsburg. Foi assim que ele conheceu Antonio Candido, Décio de Almeida Prado, Paulo Emílio Sales Gomes, Celso Lafer, Haroldo de Campos, Davi Arrigucci Jr., José Mindlin, João Alexandre Barbosa, entre outros luminares.
O biografado aproveitou sua experiência na Perspectiva para colocar em prática uma série de coleções na Edusp, algumas condecoradas com o prêmio Jabuti outorgado pela Câmara Brasileira do Livro (CBL). É no sétimo capítulo que o leitor se depara com o frenesi da nova fase da editora. Foram anos em que desenharam uma linha editorial e adotaram mudanças não apenas na identidade da casa, mas também na administração, distribuição e comercialização dos livros. Nesse ínterim, Plinio idealizou a famosa Festa do Livro da USP e possibilitou que alunos do curso de Editoração da ECA estagiassem na Edusp, o que aprimorou o design gráfico das obras.
Uma outra faceta do biografado foi a docência universitária. Plinio foi professor do curso de Editoração da Anhembi Morumbi de São Paulo, entre 1986 e 1990, e lecionou, como docente convidado, na graduação de Editoração da USP, entre 1987 e 2007, quando foi efetivado no quadro docente do curso ao ter sido aprovado em concurso público. E a professora e ensaísta Jerusa Pires Ferreira foi a grande responsável por incentivar Plinio a seguir a carreira docente, alegando que o curso carecia de profissionais experimentados no ramo editorial. Mas ele não é apenas professor do curso por mais de trinta anos. Durante esse período, ele foi uma das figuras que consolidaram a Com-Arte – Editora Laboratório do Curso de Editoração. Atualmente coordenada por Marisa Midori Deaecto, Thiago Mio Salla e Plinio Martins Filho, a editora foi fundada em 1981 e conta com mais de duzentos títulos no catálogo.
Mas antes de se efetivar como professor, o biografado fez mestrado e doutorado na Universidade de São Paulo. O curioso dessa etapa de sua vida foram as razões que o levaram a cursar a pós-graduação. Por ser formado em Psicologia, o biografado desconfiava de seu êxito para seguir carreira numa área em que não tinha experiência nem condição financeira para abrir uma clínica. Já a paixão pelos livros foi determinante para ele perseverar no ramo editorial. Plinio pretendia realizar outro curso universitário, e seu mestre, Jacó Guinsburg, o dissuadiu da ideia, sugerindo que uma pós-graduação na área de comunicação seria a aposta que promoveria um resultado duradouro.
Seu percurso no mestrado vale um conto de Tchekhov ou uma crônica de Rubem Braga. Não cabe antecipar as aventuras de Plinio para obter o título de mestre. Mas convém mencionar que ele aproveitou o trabalho que vinha colocando em prática na editora da universidade para escrever e defender a sua dissertação, posteriormente lançada no livro Edusp – Um Projeto Editorial, assinado em coautoria com o jornalista Marcelo Rollemberg e publicado pela Imprensa Oficial do Estado de São Paulo. Se o transcurso do mestrado representa o espírito daquele tempo, o doutorado sucedeu sem maiores contratempos, ainda que a tese defendida em 2007 tenha levado uma década para ser publicada em livro. Obsessivo com os pormenores, o Manual de Editoração e Estilo foi maturado para ser posteriormente publicado em parceria entre as editoras da USP, da Unicamp e da UFMG. A obra é um retrato da experiência de Plinio por cuidar de todas as etapas da arte de edição e preparação de um livro. Não foi por acaso que o autor do Manual recebeu o prêmio Jabuti, em 2017, na área de comunicação.
O ano seguinte foi de desilusão e reencontro. Ulisses Cappozoli discorre sobre a exoneração de Plinio da presidência da Edusp e a maneira como o editor converteu o abatimento em trabalho. Foi na esteira dos acontecimentos que o biografado foi convidado a assumir as Publicações BBM (Biblioteca Brasiliana Guita e José Mindlin).
Mas nada se compara às edições da Ateliê Editorial. Como foi corretamente apontado por Capozzoli, os livros da empresa dirigida por Plinio Martins Filho e sua esposa, Vera Lúcia Belluzzo Bolognani, manifestam a presença familiar na história editorial brasileira e o projeto autoral do biografado. A Ateliê é a expressão máxima da marca do editor. Os títulos publicados pela casa reverberam todo o seu talento para fazer livros, identificando o artesão que está por trás das obras que edita, as quais são desenvolvidas levando em conta os melhores formatos, materiais e estrutura para acolher o conteúdo do livro.
Capozzoli afirma que a Ateliê e a Biblioteca pessoal de Plinio revelam sua autobiografia. A declaração ocorre nos capítulos finais, representando o fecho da obra que celebra um editor de seu tempo. E o autor manifesta sua opinião depois de situar Plinio Martins Filho no panteão de grandes editores nacionais. Para os leitores especializados, a menção a célebres personagens da edição brasileira dos séculos XIX e XX pode provocar um ruído para uma obra biográfica que não tem a pretensão de se tornar um cânone. Mas parece haver uma dupla intenção do autor ao explorar as trajetórias desses editores. Uma delas é apresentar para todos os leitores a relevância cultural do trabalho desempenhado por esses personagens. E o autor também procura prestar uma homenagem àqueles que formaram o biografado. No âmbito nacional estão Paula Brito, Garnier, Monteiro Lobato, José Olympio, Octalles Marcondes Ferreira, José Martins Fontes, Jorge Zahar, Ênio Silveira, Jacó Guinsburg, entre outros renomados editores estrangeiros que foram igualmente mencionados na biografia, como Aldo Manuzio, Roberto Calasso e Giambattista Feltrinelli. Todos, em maior ou menor medida, foram eficazes na ação de formar e educar leitores, oferecendo obras cuidadosamente editadas para divulgar um conteúdo que ampliava os horizontes do conhecimento humano.
Capozzoli escreveu, sem dúvida, uma obra relevante para a história do livro no Brasil, cuja sutileza foi, precisamente, a de abarcar diversas nuances da trajetória do biografado mesmo sem adentrar nos bastidores de alguns episódios.
A estrutura do livro contempla as distintas facetas de Plinio Martins Filho. Para escrever os três primeiros capítulos, o autor viajou até o Pium e percorreu outras cidades com a meta de conhecer as raízes do editor, entrevistar amigos e familiares, e compreender a sinuosa formação escolar do biografado. Já no quarto capítulo, o leitor acompanha os caminhos de nosso personagem até chegar a São Paulo, os milhares de desafios que ele enfrentou na metrópole, o ingresso na Perspectiva e a relevância de Geraldo Gerson de Souza e Jacó Guinsburg no início de sua formação como editor. Enquanto o sexto e o sétimo capítulos discorrem sobre as peias que ele transpôs para formar, consolidar e estabelecer um programa inovador para a Edusp, o oitavo explora as nuances da figura do editor e a relevância deste profissional para a sociedade e a cultura de um país.
Tanto no nono quanto no décimo capítulos encontram-se o percurso e o legado de editores nacionais e estrangeiros para a história do livro, de modo a identificar como o trabalho editorial envolve questões políticas, econômicas e tecnológicas. No décimo primeiro e décimo segundo capítulos, o autor não apenas reconfigura aspectos do mercado editorial brasileiro, como também entrevista docentes e editores que trabalharam ou conviveram com o biografado a fim de situar Plinio como professor universitário, autor e profissional responsável por conduzir diferentes projetos editoriais. E nos capítulos derradeiros, o leitor toma conhecimento de outras experiências determinantes para a construção do perfil do editor.
As subdivisões presentes em cada capítulo são um convite para uma leitura prazerosa mesmo em tempos em que as pessoas têm pressa para trabalhar e viver. O livro pode ser lido nos intervalos das refeições diárias, antes da hora de dormir, durante o lazer ou até mesmo enquanto os leitores se deslocam para a jornada laboral. É um livro que fala sobre livros, sobre a arte de fazer livros e sobre um dos principais editores em atividade no país.
Mas a cereja do bolo está no início e no fim da obra. Primeiro desfrute o leitor do que há na alma do livro. Trafegue pelas histórias brevemente relatadas no curso dos capítulos e depois leia o início e o fim da biografia na ordem que lhe parecer mais conveniente. O posfácio é assinado por Rodrigo Lacerda, autor de “O Mistério do Leão Rampante”, primeiro livro da Ateliê Editorial, título que recebeu o prêmio Jabuti. Já o prefácio é escrito por Marisa Midori Deaecto, docente do curso de Editoração da ECA-USP. Marisa e Plinio editam a revista “Livro”, uma iguaria do que há de melhor nas pesquisas relacionadas à história do livro, da edição e da leitura. Se o primeiro relata as casualidades que o levaram a conhecer o editor que publicou sua premiada obra, a segunda modela um prefácio da altura de “Grande Sertão: Veredas”, descrevendo um suave e doce relato de uma amiga que conhece muito bem todos os feitos do nosso personagem.
E por falar em Guimarães Rosa, voltamos ao filho de sertanejo que desbravou as estradas do Centro-Oeste, chegou a ser diagnosticado com subnutrição em São Paulo e perseverou no mundo do livro sempre com a letra F talhada em sua memória. Ávido por conhecimento, o biografado saiu dos rincões de Goiás para demonstrar aos barões da cidade grande que os homens do sertão promovem e transformam a cultura deste país.
Hugo Quinta é pós-doutorando na Universidade de São Paulo (USP) e bolsista Fapesp.