Carlos Augusto Silva

Especial para o Jornal Opção

O que é a vaidade? No livro de Eclesiastes, ela é definida como o “vão esforço” de quem busca sentido nas coisas passageiras, como se as conquistas do homem fossem poeira ao vento. Na filosofia, vaidade se confunde com a busca desmedida pelo reconhecimento, enquanto na literatura, tantas vezes, aparece como o retrato das ilusões humanas. Vaidade, em suma, é o desejo de se destacar, de ser visto, admirado e celebrado. Entre professores, especialmente, essa vaidade intelectual é comum e, por que não dizer, merecida? Afinal, são profissionais que vivem em um país que cultural e financeiramente os despreza, ainda que tenham nas mãos o poder transformador do conhecimento. E está tudo bem ser vaidoso.

Como professor de literatura há mais de vinte anos, confesso minha vaidade. Ela existe, e por vezes me guia. Mas hoje, neste espaço, abro mão dela para reconhecer que o professor e poeta Pettras Felício, do Colégio Arena, é, sem sombra de dúvida, o melhor professor de literatura de Goiânia. E não se trata de uma disputa entre quem sabe mais ou menos. Entre amigos, como nós, não há competição, mas colaboração, partilha. Sei bem disso, acompanhando, ao longo de duas décadas, carreiras notáveis de professores excepcionais, como William Andrade, Adriano Alves e Helissa Soares, cujas trajetórias sigo de perto. Mas Pettras, com sua solidez, regularidade e constante evolução intelectual, se destaca. Ele mantém um alto nível de performance e qualidade por mais de duas décadas, e agora, revela-se também como um artista de grande força criativa.

Pelo conjunto de sua trajetória, sua erudição inquestionável, sua sobriedade e um profissionalismo rigoroso, Pettras é o melhor professor de literatura da cidade e, certamente, um dos melhores do país. E não é apenas um excelente professor. Ele está construindo, com dedicação e talento, uma obra poética que renova a poesia feita em Goiás. Heleno Godoy é, sem dúvida, o maior poeta de sua geração e da história de Goiás, mas se há alguém que demonstra capacidade para seguir por esse caminho, esse alguém é Pettras Felício. Tanto pela erudição quanto pela relação profunda que ambos têm com a literatura. Nem Heleno nem Pettras almejam glórias literárias ou posições de privilégio; eles escrevem porque não sabem não escrever. Em suas obras, há o sopro da verdadeira arte. Como diz Heleno Godoy, “não sou atleta da fama, não estou inscrito na maratona da glória”.

Pettras Felício: influências de Camões, Rimbaud, Drummond e João Cabral | Foto: Facebook

Nesta entrevista, teremos a oportunidade de conhecer um pouco mais da trajetória de Pettras Felício, sua história e visão de mundo. Em uma próxima edição, focaremos nossos esforços exclusivamente na análise de seu impactante livro de poesia — “Todo Mundo É Ninguém É Todo Mundo”.

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O senhor vem de uma família de poetas e intelectuais de destaque no cenário cultural de Goiás, como o professor-doutor Goiamérico Felício, docente aposentado da Universidade Federal de Goiás, que é seu tio, e o poeta e prosador Brasigóis Felício, que é seu pai. Em suas redes sociais, faz anos que publica seus versos, e é referência na cidade de Goiânia como professor de Literatura. A poesia costuma ser uma prática que começa cedo, ainda mais diante de um ambiente favorável, como sempre foi o seu. Na juventude, até quem não tem talento arrisca poesia. Por que levou tanto tempo para de fato se lançar como poeta?

A verdade é que a escrita, para mim, é mais uma forma de regulação, de modulação das ideias e das emoções, do que um trabalho consciente de fazer artístico, aquele algo que é elaborado sob o crivo da proposta estética consciente, de um método construtivo que visa a um propósito e que talvez enxergue no fim uma obra de arte e, por paralelo óbvio, em quem a constrói um artista, no caso um poeta. Não me considero um poeta. Escrevo poemas, o que é diferente. Falta-me, do poeta, essa procura consciente por uma obra e a visão de que a faz no durante a escrita e, ainda mais, depois, quando deve ocorrer a leitura do escrito, a burilação, a artesania por sobre o jorro, o fluxo. Isso não tenho, não faço. Talvez o que diferencie o que faço daquilo que faz qualquer jovem escrever versos seja a estrada de leitura mais sólida e madura em que caminho ao escrever, minhas referências. Se alguma sombra de arte há no que faço, para além do rompante versejador juvenil, é algum eco do quanto leio, são luzes tomadas de empréstimo do que me alimenta.

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Brasigóis Felício: pai de Pettras Felício é poeta e prosador | Foto: Reprodução

A presença da sombra de seu pai no cenário da poesia goiana parece não ter determinado os rumos de sua obra, na medida em que vocês são poetas bem distintos. Essa diferença foi uma busca consciente, a fim de fugir de uma comparação?

Escrever poesia não é, em minha vida, um projeto, uma meta, uma posição ou um lugar que eu vise ou tenha visado. Se estou nesse lugar é o saldo de uma deriva. Meu pai não. Ele fez da literatura, do produzir literatura, a sua vida, sua estrada única, sua via de existir e de fazer existir os que disso dependiam, como eu. O que ele fez é muito mais sério, mais compromissado. Meu pai é escritor, é poeta. Eu não. Agora, crescendo em meio a livros, encontros, visitas, noites de autógrafos e a oitiva de conversas entre praticamente todos os nomes da literatura feita em Goiás entre os anos 1970 e 2000, claro que essa seiva poderia me alimentar e fê-lo.

Essa questão da sombra do pai não posso negar. O nome Brasigois Felício, a obra que ele construiu, os prêmios, a presença em instituições, tudo isso faz dessa árvore uma espécie de totem, de cuja sombra é difícil escapar. Mas essa, creio, é mais uma questão para quem nos lê e avalia do que, de fato, uma questão entre nós. Nunca quis ser maior do que ele, nem quero. Creio que ele não tema que eu o ultrapasse. Ao contrário, ele vê no que faço e no que posso fazer, mais do que vejo que haja e que possa haver.

Acho que cabe aqui uma confissão. Algumas vezes, após lerem algum poema meu e dizerem que escrevo melhor que meu pai, sinto-me desconfortável, como se o elogio me afrontasse, me ferisse, me pusesse onde não quero estar. A verdade é que qualquer que seja o mérito do que faço, caso algum de fato haja, vejo nisso sempre um resultado da aposta que ele fez em si, da escolha que ele fez de trilhar a estrada da palavra. Foi dele o salto suicida, a coragem de mártir, o coração de louco. Quando cheguei já não era mato. Já havia um nome, uma biblioteca com estantes nas quais podia pegar o de melhor que havia, embora fosse limitado todo o resto. O quanto eu faça ou venha a me tornar há aí a marca dele e, mais ainda, a de minha mãe que trabalhou no buraco do sem nome, vez que é dela o autógrafo sem tinta que vai em cada livro dele e que estará em cada um que eu fizer.

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Quais suas primeiras lembranças de contato com a literatura? Quando percebeu que ela lhe dizia respeito, que era parte de sua personalidade?

De primeiras lembranças acho que posso me orgulhar, para além da biblioteca de que já falei, de estar aos domingos dentro de caixotes de plástico alaranjado, desses de supermercado, debaixo da lona na lateral de uma kombi, na Praça Cívica, em eventos organizados pela Livraria Cultura Goiana do Seu Paulo Araújo. Eu pequeno, brincava entre livros. Cresci em meio a Gabriel Nascente, Aidenor Aires, Delermando Vieira, Ubirajara Galli, Tagore Biran, Valdivino Braz, Iza Costa, Gomes de Souza, Antônio Poteiro. A cultura foi meu berço.

Tagore Biran, Valdivino Braz e Delermando Vieira: poetas | Foto: Reproduções e Jornal Opção

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O senhor tem destacada atuação como professor de literatura nas escolas particulares de Goiânia, e hoje é exclusivo do Colégio Arena, uma instituição de destaque na cidade, pelos seus resultados e por sua filosofia como projeto educacional. Como o senhor vê o ensino de literatura nas escolas? Os currículos dão conta da missão que é atribuída ao ensino de literatura, que é ensinar a ler, ensinar a usufruir dos prazeres, belezas e ensinamentos do texto literário?

Lecionar Literatura é ao mesmo tempo que uma alegria uma angústia. A pressão do cronograma a ser cumprido e o fato de ele ser voltado a uma avaliação no mais das vezes objetiva obriga o professor a um exercício de poda daquilo que a obra contém e poderia suscitar na forma de discussão, de debate, de reflexão. Daí a angústia, da obrigação de acelerar e, com isso, cortar, para dar conta do todo a ser trabalhado. Os currículos, respondendo de modo objetivo à pergunta, não dão conta do que a literatura tem e pede que seja trazido à vista dos que a ela são apresentados. Saímo-nos menos pior, os que o conseguem, quando cumprimos com a régua da pressa sem, contudo, abdicar da reflexão, do despertar o gozo estético, a contemplação, quando, mesmo que em menos momentos do que gostaríamos, levamos a sala à catarse, à percepção do sublime. Precisaríamos de mais, gostaríamos de mais, mas não é um esforço de saldo 0 como o sisífico (embora Verlaine diga que nem esse esforço era inútil, pois Sísifo criava músculos). Saímos, na média, melhores que quando entramos.

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Como o senhor analisa a formação dos professores de literatura? Há um esforço geral por parte de seus colegas, no sentido de se tornarem de fato eruditos que ensinam a erudição, ou muitas vezes temos arautos de verdades que eles mesmos não conhecem?

Terei de polemizar. A erudição, ou a busca por ela, é coisa que independe completamente da formação do(s) professor(es) de literatura. Vejo isso de maneira muito clara e serena, sem querer fazer alarde da conclusão a que há tempos cheguei. Quem quer erudição não digita no Waze universidade e chega ao destino pretendido, como deveria ocorrer e o senso comum imagina que seja. Não que ali não haja eruditos, mas há muitíssimo menos do que deveria haver. Assim como há eruditos, ou pessoas na eterna estrada da busca por vir a ser um, fora da academia. Essa formação da sua pergunta, portanto, é do sujeito, do indivíduo, do homem ou da mulher que ama o saber, no caso a arte literária, e persevera na busca interminável por mais e mais referenciais, sejam eles obras ou teoria, e isso se dá em pouquíssimos casos. Vê-se um mar de medianidade, uma legião de pessoas que se limitam à estreiteza de suas linhas de pesquisa, aos cronogramas de aula a serem ministradas e não se arrojam no mar imenso do que há à volta. Há que se ler teoria, crítica, a própria obra literária em si, mas isso é o mínimo, é o arroz com feijão! Deve-se ler psicologia, psicanálise, sociologia, filosofia, história, religiões, teoria política, pois tudo isso é substrato para que se consiga perceber camadas porventura presentes em uma obra sob estudo. Não adianta haver, na obra, se o analista/avaliador não carrega consigo esse pressuposto. É como imagino a relação do humano com Deus. Não se pode nem nunca se poderá abarcar o que Ele é, pois Ele é mais e maior que eu, que ele, que ela, que nós. Não temos alcance para ver o que a luz pura carrega em si, falta-nos olhos de ver. Isso tem faltado a quem lida com literatura.

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O senhor já tem mais de vinte e cinco anos de atuação em sala de aula. Como o senhor avalia a relação do intelectual, do professor e do poeta com os seus alunos? Qual é o metro que avalia a construção dessa relação, desses afetos, de tantas histórias que já passaram pela sua vida por via da literatura?

Vejo isso como uma questão muito simples, óbvia até. O intelectual, professor, poeta, se de fato é o que essas três palavras significam, não acredita em nenhuma delas como um lugar de diferença, uma espécie de nível hierárquico ou de condição por ele alcançada e que o diferencie, o eleve por sobre os outros em geral ou seus alunos em específico. Quem se diz intelectual ou poeta ou professor e carrega na fonia um ar que semelhe a brasão de nobiliarquia não é, em absoluto, nenhuma das três coisas que as palavras referenciam. Daí digo que a relação é a de abdicar, de início, de qualquer diferença de estatura, para que posto no mesmo plano ele possa olhar a todos nos olhos, conversar em tom brando e amistoso. O respeito, talvez até a admiração, virá se houver em quem fala algo a ser admirado ou respeitado, para além, é claro, do mínimo respeito ritual que se deve ter para todo e qualquer e que um aluno deve ter para com seu professor, seja ele inspirador ou não. O que quero dizer com isso é que não importa nem deve importar o intelectual, mas o saber do intelectual; não importa o poeta, mas a poesia; não importa o professor, mas a vontade de saber que ele desperta. Os alunos devem ver literalmente através de mim, como se eu fosse um objeto translúcido. Imagino que assim, o metro fica evidente. Não importa ser lembrado na pessoa, no sujeito, em qualquer coisa que remeta a mim, mas sim que a relação estabelecida por mim e pelos alunos faça com que eles se lembrem da poesia, da literatura, da cultura. Insisto, não é o caso de eu ser realizado por lembrarem de mim enquanto pessoa, mas de lembrarem sempre, na verdade de haverem colocado em suas vidas a cultura, a arte, a palavra poética.

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Harold Bloom e a angústia literária entre escritores

Harold Bloom e Goiamérico Felício: estudiosos da literatura global | Foto: Reprodução e Facebook

O crítico literário norte-americano Harold Bloom investigou a questão das influências literárias com profundidade, e assinalou que a história da literatura é um vasto campo de disputas entre grandes obras, que pretendem superar-se umas às outras. O senhor concorda com essa visão de Bloom? Acha que é possível pensar em um desenvolvimento da história literária para além de disputas entre autores?

Conheço a teoria, tanto pela leitura que fiz de Bloom, quanto pelo trabalho de pesquisa feito por meu tio Goiamérico. Concordo com ela no tocante ao fato de que quem escreve, antes de fazê-lo, lê. A leitura constrói o escritor, dá-lhe campos de visão e de sensação, empresta-lhe recursos técnicos e estilísticos. A leitura é o substrato primeiro e maior de tudo quanto haja na escrita de um autor, somando-se a isso o que ele vive, sua relação com o mundo do seu tempo e o quanto há de criação, de invenção, naquilo que ele produz.

 Quanto ao aspecto da disputa não o vejo em toda e qualquer relação de autor com suas referências. Acredito, também, na admiração, na filiação, o que torna essa uma relação em que o autor-leitor é devedor do autor primeiro e o carrega consigo em seus escritos, sem a pretensão ou o propósito, consciente ou não, de superá-lo, de tornar-se mais canônico do que ele. Assim como há o parricídio autoral-intelectual há também a ambição de fazer a sua própria obra e estrada, sem supor haver ou querer que haja uma corrida em que se deva chegar à frente.

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Carlos Drummond de Andrade e João Cabral de Melo Neto: poetas | Foto: Reproduções

Quais são os autores que o senhor sente influenciar sua literatura?

Na construção poética Drummond, João Cabral, Borges, Rimbaud e Camões, sem, por óbvio, insinuar que se possa chegar a vê-los em algo que eu tenha escrito. Eles estão mais em mim no quando e no porquê escrevo do que naquilo que escrevo. No pensamento, na visão que procuro sedimentar em mim de arte e de mundo, além dos poetas citados vem de Nietzsche, Dostoiévski, Kafka, Tolstói e muitos mais.

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Há alguma angústia na sua relação com as influências? Algum desejo de escamotear essas influências ou diminuir os ecos de outros autores na sua produção?

Angústia alguma. Não nego as influências, delas antes me orgulho. Minha angústia, quando escrevo, é toda fruto da autocrítica, é o não enxergar a qualidade que imagino uma obra deva ter para vir a público como sendo “de arte”. Por essa razão escrevo há tempos e vim a público somente há pouco, ainda assim movido pelas vozes e os empurrões dos amigos e familiares que instavam para que eu o fizesse. Prova disso é que não divulgo meu livro. Só o tem alguns poucos que são mais próximos. É como se eu tivesse atirado e depois corrido atrás da bala para evitar que ferisse alguém.

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Carla Madeira e Marçal Aquino: prosadores | Fotos: Reproduções

Como o senhor vê o atual cenário da literatura contemporânea, em especial da literatura brasileira? Vê com otimismo o que se apresenta agora?

No âmbito nacional, a prosa tem apresentado alguns bons nomes e obras, como Marçal Aquino, Itamar Vieira. Mas sem ainda ombrear com o que já tivemos no campo das narrativas. Milton Hatoum e Bernardo Carvalho são grandes prosadores. Carla Madeira presta um ótimo serviço pela capilaridade que alcançou, pelo alcance midiático da sua obra, que embora tenha méritos, carece de mais robustez e ainda precisa pagar a dívida que tem com aqueles dos quais faz reescrita. Ela talvez devesse citar mais para que fique configurado o empréstimo ou intertextualizar menos.

Em poesia não vejo algo que chegue sequer a, como na prosa, se poder dizer que haja algum movimento. O tempo é de maus poemas, narcisismos e espera, com a permissão do Poeta.

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Bernardo Élis é referência mas J. J. Veiga é superior

E em Goiás, quais os seus autores basilares?

 Bernardo Élis é referência obrigatória, embora meu crivo particular coloque J. J. Veiga como superior. A prosa do Edival entra aí na prateleira de cima também, embora deva pedir bênção aos outros dois.

José J. Veiga e Bernardo Élis: contistas e romancistas | Fotos: Reproduções

Na poesia, Delermando Vieira é o que tem mais volume em mais alto nível. Brasigóiis, meu pai, tem uma obra poética respeitável também, embora ele não coloque isso, há algum tempo, na lista das prioridades.  Ao Pio Vargas parecia sobrar talento e capacidade para se consolidar, mas faltou tempo. Quel lê ou ouve isso sobre o Pio pode perguntar se ao Rimbaud também não faltou tempo para se consolidar. Pode ser uma contradição em que caio. Pode ser uma dificuldade em reconhecer uma elevada envergadura poética em alguém tão próximo. Aqui Machado me ajudaria e diria: está morto, pode elogiá-lo à vontade. Enfim, dele, o que li achei ótimo. Heleno Godoy é grande, é correto, quase impoluto no manejo da alvenaria do poema, mas o meu olhar pede a sinuosidade de um Gaudí, um domínio que semelhe mais a espanto que a escrutínio.

Os demais, os tantos e eu, precisamos comer e beber muita alta poesia antes de querer figurar em qualquer lista que não seja a infinita dos que publicaram algum livro, lista que cresce a cada dia, na medida inversa das vergonhas.

Edival Lourenço: poeta, contista e romancista | Foto: Fernando Leite/Jornal Opção

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A poesia de Pettras Felício: uma estreia em alto nível

O senhor acaba de publicar o seu primeiro livro de poesia, “Todo mundo é ninguém é todo mundo”. Um vetor que se repara em sua lírica é o registro artístico de uma experiência pessoal, de um olhar pessoal, meditativo a introspectivo acerca de si, quase uma fenomenologia lírica. O livro é dividido em três partes, mesmo que tenha uma linha de harmonia que se preserva no todo. Qual foi o critério e a intenção da separação que organiza estas três partes?

Devo dizer, de início, que procuro evitar a efusão lírica que parte de motivos ou de vivências pessoais. Se não consigo fazê-lo mora aí já uma falha, um logro. Sei, também, que mesmo as questões existenciais que me motivam poeticamente manifestam-se em minha escrita permeadas pelos modos ou formas como eu individualmente as penso, as sinto e as vivo, o que torna as pretensas universalidade e impessoalidade a que almejo bem distantes do que consigo. É que carrego um preconceito com respeito aos poemas excessivamente pessoais, isto dito mesmo a partir de eu saber que sempre, todo texto, carrega algo de quem o escreve.

Minha busca é, portanto, por filtrar o mais possível do texto essa carga de “eu” que nele possa haver, a fim de achar o “nós”.

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A sua poesia, como dizia Ferreira Gullar, nasce de um espanto, porém, em um olhar mais atento percebe-se, na sua artesania, o eco da tradição literária. Como organizar, em uma obra, registros de experiências esparsas, e dar unidade à obra? A harmonia do sujeito lírico que o seu versejar cria é um projeto, ou é fruto de um acaso? De modo mais direto: qual o critério que o senhor utilizou na seleção dos poemas que perfazem o livro?

Procurei expor os 3 conjuntos que eu via haver no que havia então produzido. Havia poemas que refletiam acerca da condição humana; outros tinham como motivação o amor, a ardência da paixão; outros ainda manifestavam as vivências particulares – esses que eu disse que evitava ao máximo produzir, mas que ainda assim, vez ou outra, pediam dizer e eu os dizia.

A seleção, por temas deveu-se a essa percepção de unidade dos textos de cada grupo e da distinção entre os grupos.

Quanto à manifestação da tradição em meus textos, essa é uma das coisas que digo que surgem como um raio na noite. No ato da escrita as referências se dão, os intertextos se manifestam, as imagens de outros textos pedem passagem. Não procuro encaixar referências para ancorar com algo mais sólido o que escrevo, tampouco para por meio delas fazer parecer que conheço ou domino as fontes. Minha criação é deveras espontânea para conter esses raciocínios.

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Os títulos das três partes de “Todo mundo é ninguém é todo mundo” são, respectivamente, “Condição”, “Ardor e sentido” e “Intestino do íntimo”. Semanticamente já se percebe uma unidade nestas instâncias. É possível relacioná-las. Diante disso, mesmo que sua criação se dê de forma espontânea e pelo espanto – como o senhor enfatiza até mesmo em sua apresentação – notamos uma orientação estética/e ou filosófica em sua criação, as evidências de uma edificação, mesmo que acidental. Há algum tema, algum mote, alguma estética diante da qual, como poeta, o senhor diga “não, isso eu não faço, sobre isso eu não escrevo”?

Não sei se consigo atingir o que pretendo, nem mesmo minimamente, mas minha poesia é sobre o homem e aquilo que por ele sê-lo nele se manifesta. Daí virem sempre aos versos o tempo – a inexorabilidade de sua passagem – e  o amor – com a força de construção e de tragédia que ele arrasta em sua sombra. As duas primeiras partes estão aí. A terceira, como disse, recebe os textos em que emergiu a voz do mais diretamente meu, quando o particular pediu passagem e quis se mostrar.