Perder o senso da realidade é o pior descaminho
22 dezembro 2019 às 00h00
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Em vez de reduzir o mal-estar da civilização, o homem moderno tem sabido ampliar seus domínios para torná-lo mais onipresente, em sua atormentada existência
Brasigóis Felício
Especial para o Opção Cultural
“Deus morreu, Karl Marx morreu, e eu mesmo não estou me sentindo muito bem.” — Millôr Fernandes
A essencial e angustiante ferida narcísica é estar vivos sabendo que amanhã (ou em outro amanhã mais distante) estaremos mortos. Seremos apenas lembrança e saudades. No caso de lembrarem de nós com amorosidade, e um mínimo de piedade.
Perder o sentido da realidade já é ter perdido tudo — e mais o que resta, para além disto que na vida é a perda essencial, que não se pode mais recuperar. Quando a alma da pessoa racha, ou se estilhaça, não há cola no mercado, que a possa recuperar. Para isto não há prótese, no mercado das tecnológicas novidades.
Seja qual tenha sido o descaminho que levou à perda deste bem fundamental, sem o qual a existência se torna mecânica e sem vontade consciente e lúcida, viver somente na imaginação delirante, e nas projeções ilusórias da mente já é ser e estar prisioneiro de um mundo psicótico.
Pois amarrar o cavalo das pulsões e desejos em alguma repressão não significa tê-los domado ou domesticado. Em algum momento não sabido e imprevisível eles irão retomar seus direitos. Exigirão retomarem seu espaço na vasta e complexa residência mental. E certamente estarão energizados para perpetrar vinganças terríveis, contra o dono da casa psíquica, que os deixou em modo repressivo.
Às vezes o que se toma por covardia é simples sabedoria em não confrontar o perigo sem que se tenha chance alguma de vencê-lo. Sigmund Freud, quando criança, viveu uma experiência traumática, que habitou e obcecou sua mente por toda a sua juventude e vida adulta. Passou pela dolorosa e inesquecível vivência de ver seu pai — que era judeu — ser humilhado em público, por um grupo de baderneiros antissemitas.
O pai de Freud não reagiu — engoliu os insultos — à quase agressão física. A criança certamente não racionalizou o acontecimento, mas sentiu. Sentimentos duram mais do que pensamentos oriundos da mente raciocinante. O menino não entendeu por que o pai não reagiu aos insultos, como faria qualquer homem comum. Não sabia, como depois escreveria Ortega y Gasset, que “o homem é ele e suas circunstâncias”.
Circunstâncias trágicas vividas por judeus, na Europa e em outros continentes, em especial naqueles dias intolerantes, em especial na Alemanha, Áustria e países vizinhos — além da Rússia —, não aconselhavam reação alguma. Insultos poderiam passar a espancamentos, prisão, perdas de todos os direitos humanos, violação das prerrogativas de cidadania, até mesmo decretação de perda do direito elementar de se sentir parte da família humana — ou da humanidade.
Talvez e certamente aquela experiência lancinante, da frustração insuportável crescendo a ferida narcísica, tenha levado o nefrologista, o médico especialista em questões ligadas a nevroses e manifestações de histeria, a tornar-se um argonauta, um pesquisador dos escaninhos obscuros e sombrios da mente, até tornar-se um escritor notável, lançando-se ao feito maior da sua existência, que foi lançar os fundamentos da psicanálise, dando forma e sentido a um vasto edifício intelectual, que influenciaria toda a vida mental inteligente, toda a cultura e boa parte da literatura e das artes, daqueles tempos até hoje.
Hoje sabemos que a saúde já contém em si os germes potenciais da doença, que vive em frágil equilíbrio, em harmonia precária, que podem ser destruídas a qualquer instante, sem causa que se possa conhecer à primeira pergunta ou dúvida. Isto Shakespeare já sabia: “Assim como é a doença, assim é a sua cura”. Pois fazem parte da mesma realidade, e vivem nos mesmos lugares.
Cura e doença — tanto no corpo físico quanto na mente — são irmãs siamesas, e ocupam os mesmos espaços físicos e hiper físicos, passando da corporalidade que se pode tocar e conhecer de vista, à mutabilidade e inconstância dos sentimentos e emoções, a se moverem vertiginosamente, no turbulento e complexo aparelho psíquico.
A cura pode estar nos detalhes, por isso as análises são tão longas, podem durar dez, vinte anos, ou mais. A cura está nos detalhes, mas não somente ela. O Diabo também está. Só que ninguém repara.
Análises psicanalíticas podem tomar o tempo de toda uma existência adulta, sem que o analista ou seus pacientes tenham sabido de tudo. Também, ninguém confiaria em uma análise de curta duração, como um filmezinho qualquer, de curta metragem e parco ou pobre talento e conteúdo.
O ser humano é um animal demasiadamente humano e complexo, para poder ser psiquicamente radiografado aos primeiros e ligeiros exames. Há que se aprofundar o x ou o nó górdio das questões investigadas por estes reluzentes e vaidosos seres, os escolados xamãs sofisticados, com ou sem mestrado e doutorado, que são os analistas psi, os psicólogos de todas as tendências, bem como os terapeutas para todos os tipos de quizílias e abcessos e trombadas existenciais, que abundam e se multiplicam por toda a praça associada.
Tão complexa e sensível é a questão do sofrimento psíquico, das tormentas mentais, das tempestades espirituais, das experiências iniciáticas que sequer são conscientizadas… uma mulher da sociedade, consumidora voraz e compradora compulsiva, perguntou a seu analista: como podem as pessoas ser infelizes, se há tantos shopping centers deslumbrantes e maravilhosos, tantas lojas chiques, com vistosas vitrines apresentando toda sorte e qualidade de produtos?
Já para outros, situados em extratos mais baixos da pirâmide social, o problema não é a indecisão, a angústia de não saber o que comprar na vasta oferta do que elas não precisam para viver — e muitas vezes compram por compulsão ou por distração, sem sequer se darem ao luxo de usar aquilo que compram. Para a vasta maioria a angústia não vem do ter muito dinheiro e não saber o que fazer com ele — o sofrimento psíquico e emocional (até mesmo sofrimento físico) está, ao contrário, em não ter grana real, dindin no bolso ou na carteira, suficiente nem mesmo para provimento das necessidades elementares de boca, de pagar aluguel e pagar contas de água e energia elétrica.
É de fato difícil suportar ter dinheiro à vontade, mas a maioria das pessoas da humanidade tem passado, razoável ou sofrivelmente, sem grana sustante nem para a sustentabilidade das mais elementares necessidades. Sendo também verdadeiro que ter dinheiro para além do que se precisa passou a ser o problema vivido por alguns ou muitos, desta minoria endinheirada.
O que irão fazer com o dinheiro sobrante e abundante, que não dão conta de gastar? Muitos mergulham em hábitos e costumes perigosos, descem a ladeira das dos inebriantes e aparentes leves vícios, passando às adições tóxicas pesadas, tornam-se criaturas fracas e desorientadas, um peso a ser carregado por suas famílias, e por toda a sociedade, que tem de arcar com os custos de longos tratamentos, no mais das vezes, inúteis.
Muitos, querendo ocupar um bom lugar na roda da fortuna, acabam caindo em grandes infortúnios.
De qualquer modo, é melhor estar ou viver em desorientação emocional e psíquica por ser milionários, do que “esbarrar na precisão”, sofrendo a falta do que muitos, que não o têm, chamam, com muita injustiça e ressentimento, de “vil metal”.
De qualquer sorte, é temerário, e traz maus resultados, pela força que tem a palavra, fazer ou existir no diapasão mental do famoso Tim Maia, na sua canção badalada: “Não quero dinheiro/de jeito maneiro/quero amor sincero/é tudo o eu quero/só quero amar/só quero amar/”.
Porém, como dizia o professor Adilson Rodrigues (atenção, não se trata do pugilista Maguila), “com a barriga roncando não dá para ler, nem fazer amor: o barulho atrapalha”. Só acredita que ainda existe mulher como Amélia, que aprecia viver na miséria, e gosta de apanhar, quem jamais teve dinheiro, em sua miserável vida pregadora da filosofia da moral insuficiente.
Dito isto, contudo e por isto, concluo dizendo que em vez de reduzir o mal-estar da civilização, o homem moderno só tem sabido ampliar seus domínios, e torná-lo mais complexo e mais onipresente, em sua atormentada e turbulenta existência.
Brasigóis Felício, escritor e jornalista, é colaborador do Jornal Opção.