“Pantera Negra”, Spike Lee, “Aranhaverso” e “Roma”: por que celebramos o Oscar 2019?

10 fevereiro 2019 às 00h00

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Superamos o #OscarSoWhite ou Hollywood se uniu apenas por um inimigo comum (Trump)?

Fernanda Alcântara*
Especial para o Jornal Opção
Finalmente chega a temporada de premiações de Hollywood e nós estamos super empolgadas – afinal, com tanta coisa acontecendo, nada como descontrair com as estrelas do Oscar, não é mesmo? E este ano, a premiação tem como pauta a diversidade com Spike Lee (finalmente) indicado como melhor diretor, “Homem-Aranha: Aranhaverso” quase com a estatueta na mão, “Pantera-Negra” e “Roma” concorrendo a melhores filmes. Mas será mesmo que superamos a vergonha de 2015?
Para tentar entender como chegamos a este lugar de visibilidade e representatividade no Oscar é preciso entender que a premiação é e sempre foi uma questão política. O consenso do Comitê varia com a dinâmica da sociedade na época. Desde a premiação de Hattie McDaniel em “E o Vento Levou…” (1939), primeira afro-americana a ganhar a premiação, até “Shakespeare Apaixonado” (1999) como melhor filme – deixando “A Vida é Bela”, “O Resgate do Soldado Ryan” e “Além da Linha Vermelha” –, a “zebra” nunca é aleatória.

Representatividade no Oscar
É preciso estar alerta com os recados que o Oscar exerce, não somente na cultura pop, mas na esfera pública e no modo como vemos os fatos históricos – e não se deixar levar pelos números apenas. Anos atrás, a hashtag #OscarSoWhite (em tradução livre #OscarTãoBranco) chamou a atenção para a falta de representatividade em resposta à ausência de negros nas três principais categorias (Melhor Ator, Melhor Atriz e Melhor Diretor(a)). A tal da meritocracia foi questionada – a ponto de surgir uma ideia idiota de criar uma categoria para os chamados “não-brancos” – e, depois de algumas declarações e protestos, parece que a Academia ouve os ecos de #OscarSoWhite até hoje.
Tentando amenizar sua imagem de racista – depois do esculacho da internet, é claro –, os organizadores chamaram o ator e comediante Chris Rock, que já havia apresentado o Oscar 2005, para ser o anfitrião do evento pela segunda vez. Conhecido por seu humor racial, Rock foi crítico com a Academia. Esta ação não mudou o quadro geral e repetiu a ausência de negros indicados a ganhar a estatueta, excluindo atores como Will Smith em “Concussion” (no Brasil, “Um Homem entre Gigantes”), Michael B. Jordan e Tessa Thompson em “Creed” e Ryan Coogler (diretor de “Creed”).
A falta de representação por dois anos seguidos foi sentida tanto no Oscar como nas produtoras, principalmente depois da eleição de Trump. Para 2017, o Oscar anunciou que faria uma revisão dos membros para diversificar seu comitê por raça, gênero e idade. A Academia convidou quase 800 novos membros (39% mulheres e 30% não-brancos), e eis a surpresa quando o prêmio daquele ano apresentou “Moonlight” como o melhor filme do ano, com roteiro, direção e elenco negros, concorrendo com o favoritíssimo “La La Land“.
A transição para este patamar não foi fácil, se levarmos em conta que Hollywood fez (e ainda faz) oposição ao atual presidente dos Estados Unidos. Neste meio tempo até 2018, cresceu o movimento “Me Too” (ou #MeToo, em tradução livre, “Eu também”), com uma série de denúncias contra o assédio sexual e a agressão sexual na indústria fonográfica.

#MeToo
A hashtag começou a se espalhar em outubro de 2017 nas mídias sociais na tentativa de demonstrar a prevalência generalizada de agressão sexual e assédio, especialmente no local de trabalho. Finalmente os membros da Academia teriam que se posicionar, e é graças a estes dois movimentos que estamos em 2019 pensando e discutindo pautas tão importantes na cultura pop.
Em 2018, tivemos “Una mujer fantástica” (no Brasil “Uma Mulher Fantástica”), produção chilena dirigida e escrita por Sebastián Lelio e protagonizada por Daniela Vega, primeira mulher trans a apresentar uma categoria do Oscar e a ganhar como Melhor Filme Estrangeiro. Uma conquista tardia, mas merecida e pouco debatida dentro dos bastidores de Hollywood, que dois anos antes havia indicado Eddie Redmayne ao Oscar interpretando uma mulher trans – sério, Hollywood, vocês precisam parar com isso –, uma vergonha para a nossa era.
Em 2019, a polêmica começou logo que foi anunciado o nome de Kevin Hart como anfitrião. Nas primeiras semanas depois do convite, a escolha de Hart para apresentar a cerimônia foi questionada depois que um repórter levantou mensagens homofóbicas que o comediante havia publicado em 2011 em seu Twitter. De início, o comediante se recusou a pedir desculpas e, depois de muitas críticas de personalidades de Hollywood, Hart anunciou que havia desistido de ser o apresentador da cerimônia.
Mesmo sabendo (ou lembrando) de tudo isso, chegamos finalmente aos indicados de 2019. Estes filmes – pasmem – não entraram por “cotas” como as fakes news do seu grupo de “cultura” mandou pelo Whatsapp, mas representa, sim, uma mudança em Hollywood, que está interessada não somente em passar a mensagem antirracista, mas também em lucrar com ela. Não à toa, esta é a primeira premiação que reconhece a importância dos filmes ficcionais produzidos pelos serviços streaming, que já haviam saído fortalecidos na edição de 2018 com os documentários.
Superado este momento de história, vamos à pauta de diversidade que está colocada nestas produções que integram as indicadas de 2019. Algumas por pura meritocracia, como “Homem-Aranha: Aranhaverso”; outros pelo conjunto da obra, como o Spike Lee em sua primeira indicação ao Oscar como melhor diretor em “Infiltrados na Klan”.
“Homem-Aranha: No Aranhaverso” é um Oscar quase garantido

É pouco provável que “Aranhaverso” não leve a estatueta de melhor animação. E nem é soberba este palpite: apenas que esta é, de fato, uma das melhores animações dos últimos anos, técnica e metalinguisticamente falando. Os produtores foram preciosistas a tal ponto que construíram uma forma de filmar para cada personagem: observem, sem dar muitos spoilers, que cada cena é construída de acordo com a visão da personagem em tela. Para quem ama cinema, só este fato em si é um deleite perto da perfeição.
Se por um lado o roteiro é simplista – o jovem Miles Morales se torna o Homem-Aranha de sua realidade, cruzando seu caminho com cinco colegas de outras dimensões para impedir uma ameaça a todas as realidades –, do outro temos este personagem potencialmente inspirador para os meninos de ente 5 e 14 anos. Se como mulheres “adultas” nos divertimos demais, apenas consigo imaginar uma criança assistindo a esta animação.
Perceba, Miles Morales já é um velho conhecido entre nós nerds, quando em agosto de 2002 apareceu como um dos personagens que tem a identidade de Homem-Aranha. O personagem foi criado por Brian Michael Bendis e Sara Pichelli. A versão da Marvel e seus criadores é que Miles foi desenhado inspirado no presidente dos Estados Unidos Barack Obama e no ator americano Donald Glover. Dentro da Cultura Pop, pessoalmente, eu não via um potencial tão incrível (tirando “Pantera Negra”, é claro) desde o personagem Finn, de “Star Wars”.
Como dissemos, a mensagem é muito simples, mas sempre conversa com realidades distintas: nada mais importa quando você pode ser o Homem-Aranha: cor, raça, gênero, espécie. Por trás da máscara há um ideal, e isso, já diria “V de Vingança”, é à prova de balas. Este é o espírito do Homem-Aranha criado por Stan Lee, e esta é a homenagem mais genuína que poderia ser feita neste luto pela morte do autor. É o mínimo que o Oscar poderia fazer de reconhecimento por Lee, e seguindo a tendência de outras premiações como o Critics’ Choice Television Awards e Golden Globes, é pouco provável que esta maravilha não receba o Oscar 2019.
Spike Lee finalmente reconhecido

De uma forma muito singular, Spike Lee sempre abordou a temática racial abrindo as portas em Hollywood para uma conscientização sobre os problemas norte-americanos. Este estilo, que mostra a face mais crua e verdadeira do racismo, sempre foi sua arma – e principal motivo para nunca ter sido indicado a nenhum Oscar como diretor, mesmo com obras como “She’s Gotta Have It” (no Brasil: “Faça a Coisa Certa”). O filme lhe rendeu uma indicação ao Oscar por melhor roteiro original em 1989.
A indicação de “BlacKkKlan”(no Brasil: “Infiltrados na Klan”) é muito mais pelo não-reconhecimento de Lee por todos estes anos na Academia. Principalmente em “Febre da Selva”, um dos mais icônicos do diretor, e a cinebiografia “Malcolm X”. Pessoalmente, cheguei a estar no mesmo espaço que Lee, em uma das entrevistas do documentário “Go Brazil Go!”, uma série de entrevistas do diretor sobre sua visão das questões raciais no Brasil. Lembro-me vagamente da sensação do endeusamento que os mais velhos tinham do diretor, algo realmente inebriante. E só agora eu entendo.
Em seu filme mais contido quanto aos seus maneirismos,”Infiltrados na Klan” é claramente uma declaração sobre a era Trump e o racismo estrutural que continua matando. Apesar de ter uma visão quase exclusivamente masculina – cá entre nós, as personagens femininas são pessimamente exploradas – o filme é muito bem dirigido, e mais do que tudo, muito bem escrito. Tão visceral quanto “Mudbound – Lágrimas Sobre o Mississippi”, “Infiltrados na Klan” nos lembra toda a violência do ódio entre os homens apenas por sua cor. É esta lembrança que torna o filme tão impressionante, digna de vários prêmios.
“Roma” e um México além de Trump

Como mulher latina, é impossível falar sobre a diversidade no Oscar 2019 sem falar do filme “Roma”. Ainda que pessoalmente eu não seja descendente direta de indígenas, Yalitza Aparicio representa o que há de mais genuíno na feminilidade pobre e não-branca de Hollywood, e sua história pessoal só completa qualquer desconfiança desta força.
Aparicio é mexicana de Oaxaca, e seus pais têm origem indígena: seu pai é mixteca e sua mãe é trique. Criada por uma mãe solteira, realmente trabalhou como empregada doméstica e possui bacharelado em educação infantil. Apesar de não ter formação em teatro, é a protagonista de “Roma”, filme do já premiado Alfonso Cuarón sobre a Cidade do México de 1970. Entre favoritas como Lady Gaga em “Nasce Uma Estrela” e Glenn Close em “A Esposa”, Aparicio marca sua presença entre novas ou já consagradas estrelas de Hollywood – nada contra Gaga, adoramos, mas a regra é que só pode torcer para uma.
Aparicio traz ainda, mesmo que indiretamente, o questionamento sobre atrizes não-brancas nesta categoria. Se observarmos o histórico do Oscar, nenhuma negra foi indicada ao prêmio de Melhor Atriz desde 2013. Até mesmo Viola Davis, reconhecida por seu talento excepcional diante das telas, não foi indicada por papéis em que era protagonista. Este fato, pouco explorado em outros meios de comunicação, mostra como a intersecção entre feminismo e negritude é pouco colocada na pauta – mas em tempos de obscurantismo, quem sou eu para querer discutir interseccionalidade, não é mesmo? Apenas deixemos essa discussão para mais tarde.
“Pantera Negra”: melhor filme da Marvel, sim ou com certeza?

Quem chegou até aqui nessa discussão já sabe de tudo o que vamos falar de “Pantera Negra”, certo? Pra começar que “Pantera Negra” nem é um filme, é um movimento, e nem vem cortando a nossa vibe porque deixamos essa maravilha para discutir por último por um motivo: não dá para falar mal desta produção.
E tudo bem se você falar “ah mas é só a jornada do herói com elementos africanos” porque sim, você está certo. Do ponto de vista do roteiro e acadêmico, é puramente o monomito, mais conhecido como o arquétipo “Jornada do Herói”, do antropólogo Joseph Campbell. O que torna “Pantera Negra” este gigante do cinema não é o discurso, nem a bilheteria. Este marco na cultura pop sugere uma nova percepção do mundo, arrisca um novo lugar no imaginário, colocando a África em seu lugar de direito: o berço de tudo o que conhecemos.
Não é somente sobre origens, vilões e culturas distantes. Wakanda carrega em si um novo espaço do cinema, onde negros não precisam representar apenas os oprimidos, os escravizados ou os pobres marginalizados. Esta ideia está gravada na cultura pop e no nosso dia a dia: é só pegar um quadrinho antigo ou uma novela da Globo recente, tanto faz. Enquanto isso, “Pantera Negra” nos coloca na história, não como apenas sobreviventes às dores, mas protagonistas do nosso próprio destino. E este tipo de mensagem não pode ser silenciada, independente de presidentes e/ou ditadores no poder. É maior que o tempo. (Com colaboração de Juh Oliveira)
*Fernanda Alcântara é jornalista, pesquisadora de quadrinhos e atualmente cursa o Mestrado em Comunicação na USP