Outros Guardados, de Sônia Marise, é o retrato de um tempo e um fragmento da história de Goiás
04 agosto 2024 às 00h00
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Vera Tietzmann
Sônia Marise estreou como poetisa em 2005 com “Guardados”, um volume que trazia na capa a instigante imagem de um baú fechado, cujo conteúdo podia ser visto na quarta capa: documentos, folhas arrancadas de um caderno, utensílios de cozinha, roupas e calçados, joias e bijuterias, um apito, velhas fotografias. Objetos triviais, mudas testemunhas de uma trajetória de vida marcada por pequenos eventos, pelo cotidiano repartido entre a rotina profissional e a doméstica, pelo olhar que se detém amoroso sobre a família e perplexo sobre o cenário mundial, pelo dever cumprido à risca e a criação artística sempre adiada. É o baú da memória, que resiste ao tempo e tudo guarda amorosamente. Ваú da antiga bisavó, sua mala de viagem; arca de guardar o enxoval da noiva, entremeado de sonhos; baú de tesouros do pirata — um pouco disso tudo se entrevê nos guardados de Sônia Marise.
De dentro desse baú da memória, além dos poemas já publicados, a autora extrai agora estes “Outros Guardados”, 38 narrativas em que recupera flagrantes de diversos momentos de sua vida. Em sua construção, o livro apresenta-se simétrico a “Guardados”, pois também se reparte em quatro segmentos de acordo com seus parentes o temático: raízes, cotidiano, retratos e flores e frutos.
O primeiro e o último estão mais fortemente vinculados à história da família, que, ao longo das narrativas, atravessa cinco gerações, compondo uma história familiar que privilegia as mulheres. Indo de bisavó a bisneta, inicia com a história da avó da autora e se interrompe com sua neta Sophia, ambas retratadas como meninas. Juntos, o primeiro e o último segmento dão circularidade ao livro. O primeiro diz respeito ao passado, às raízes familiares da autora, seus avós, pais, tios. O último, um bloco bem mais curto do que os demais, refere-se ao presente de flores — os filhos e a neta Sophia — e ao futuro de frutos ainda virtuais, os netos e bisnetos que darão prosseguimento à história familiar.
Prevendo essa expansão que o futuro trará, a autora anuncia na epígrafe, tomada de um de seus poemas, “Aqui eu bordarei/ mais versos/ de corujice e amor/ quando vocês chegarem./ Deixo o espaço/ reservado”. Justifica-se, assim, a exiguidade desta última parte de “Outros Guardados”. Também os lugares dos que virão estão aí guardados, à espera, e serão preenchidos no devido tempo.
Estes textos com que Sônia Marise encerra este livro estão muito próximos no tempo, ainda não se distanciaram o bastante para se cobrirem daquela névoa azulada que veste as montanhas ao longe. Por isso mesmo, comparados aos do primeiro segmento, trazem mais nítido o seu caráter de crônica, este tipo de narrativa que trata de temas do cotidiano, sempre com os pés na realidade.
Ao leitor, a primeira parte parece mais próxima da ficção, porque distanciada no tempo. Não havendo presenciado a maior parte dos eventos que narra, acontecidos antes de seu nascimento, a autora recria situações que conhece de ouvir contar. São cenas que registram costumes de outros tempos, como o processo de fabricação de colchões de capim, o casamento arranjado e precoce da mãe recém-púbere, o trabalho das parteiras.
Registram também lances dramáticos, como a impotência da menina diante da decisão do pai em casá-la contra sua vontade e o trauma ocasionado pela perda da primeira filha dessa menina-esposa, súbita e inexplicavelmente morta na infância.
A história das raízes familiares se suspende com “A viagem”, brevíssimo texto, não mais do que um parágrafo, em que a autora relata a última viagem do pai, “interminável, difícil, muito, muito triste”, quando acompanha seu corpo rumo ao cemitério de outra cidade. É um texto denso e pesado, apesar de sua contenção.
No segmento seguinte, cotidiano, treze narrativas trazem flagrantes do dia a dia, vividas ou observadas pelo olhar da menina de tranças, anjinho de procissão nas festas da igreja, ou pela menina já crescida, tornada professora ou jovem advogada. Na quase totalidade das narrativas, o foco em terceira pessoa, porém aderido à consciência da protagonista, disfarça a presença da autora como personagem. O efeito é muito interessante, principalmente quando está em cena a menina, como é o caso da deliciosa crônica “Vida de anjo”, que tem a virtude extra de recompor rotinas envolvendo mulheres e meninas no trabalho da igreja, hoje, acredito, em desuso.
Merecem também destaque os três últimos textos desta parte, por criarem atmosferas de suspense, para as quais a autora tem soluções diferentes e bastante originais.
Retratos compõe-se de doze textos que se assemelham aos de cotidiano, com o diferencial de darem mais ênfase aos personagens do que às ações desenvolvidas. Transitando da infância à atualidade, e da cidade do interior à capital, a autora retrata crianças, jovens e adultos que conheceu e que fizeram (ou ainda fazem) parte de sua vida. O tom vai do divertido ao sentimental, do reflexivo ao lírico. “Office-velho” , por exemplo, que parodia a expressão Office-boy, fala de um personagem folclórico de sua cidade, um faz-tudo infalível, correspondendo a uma versão urbana do antigo liquidante sertanejo, aquele indivíduo que cobrava dívidas e voltava ou com o dinheiro ou com a orelha do devedor. “Camarada Raquel”, que fecha o conjunto de narrativa desta parte, parece ter saído de um livro de ficção — porém o texto dá pistas ao leitor de que se trata de uma pessoa que de fato prestou serviços à família da autora.
O teórico canadense Northrop Frye, em um de seus estudos, afirma existir um parentesco entre as imagens do espelho e as do retrato. Pode-se inferir, então, que esses retratos pintados pela mão de Sônia Marise trazem em suas tintas um pouco de si mesma, espelham seus sentimentos e emoções. Mesmo quando se detêm sobre indivíduos fora de seu círculo familiar, como o mencionado “Office-velho”, agregam-se à sua história pessoal, incorporam-se à sua trajetória de vida. De forma menos intensa do que o homem especial, o bem-amado que descreve em duas crônicas, é certo, mas todos esses retratos integram as memórias que ela armazenou dentro de seu baú de guardados e cuja tampa agora abre diante do leitor, desvendando um pouco de sua intimidade.
Sem dúvida, “Outros Guardados” é um livro de memórias. Quem escreve memórias, no fundo, sempre é movido pelo desejo de não ser esquecido, de permanecer, de ultrapassar as limitações humanas, de vencer o tempo e a própria morte. É pela palavra que o memorialista busca perpetuar-se, nem que seja apenas dentro do restrito círculo de sua família.
Mais do que isso. Quando alguém registra num livro de memórias suas próprias lembranças, como faz a autora aqui, por mais pessoais que essas recordações sejam, elas ultrapassam as fronteiras do individual. Nossa memória é toda impregnada pelo coletivo. Por um lado, isso permite que ela seja compartilhada pelo outro, que nela se reconhece. Por outro, ela funciona como registro de um tempo, de uma geração ou de um povo. “Outros Guardados” vai muito além das vivências de uma menina interiorana que migra para a cidade grande, onde estuda e constrói sua vida familiar e profissional. É o retrato de um tempo, com seus costumes, seu linguajar, suas crenças e valores. E um fragmento, ainda que pequeno, da história de Goiás e deste país. É isso que Sônia Marise faz, levando mais adiante o trabalho que desenvolvera poeticamente em “Guardados”.
Vera Maria Tietzmann Silva é professora titular de Literatura Brasileira da Universidade Federal de Goiás (UFG). O texto acima é o prefácio de “Outros Guardados”, de Sônia Marise. O título original do ensaio é “Das raízes aos frutos”. Por motivos editoriais, o Jornal Opção optou por outro título.