A bibliotheca abscondita do grande crítico austro-brasileiro pode esconder surpresas para bibliófilos e pesquisadores

Otto Maria Carpeaux: ensaísta, jornalista, crítico literário, crítico de arte, crítico de música e historiador austríaco naturalizado brasileiro | Foto: Reprodução

Mário Zeidler Filho **
Especial para o Jornal Opção

Nos idos de março de 1938, em meio à anexação da Áustria pela Alemanha nazista, o escritor Otto Maria Karpfen (1900-1978), católico de origem judia, deixa às pressas sua casa em Vienna, carregando consigo apenas um velho missal – todo seu arquivo e sua biblioteca ficariam para trás. Passando pela Itália e depois se fixando brevemente na Bélgica, Karpfen consegue se manter como jornalista e recuperar, através de amigos, parte dos livros perdidos. Mas a situação na Europa é cada vez mais perigosa e, temendo perseguições inevitáveis, Karpfen decide partir para a América; no dia 3 de junho de 1939, consegue, com a ajuda de amigos italianos, a intercessão do Papa Pio XII junto a Getúlio Vargas para a obtenção de um visto de permanência no Brasil. Além de grande parte de sua biblioteca pessoal, ficariam na Europa vários livros de sua autoria.

Ao chegar ao Rio, em outubro de 1939, Karpfen escreve uma carta a Alceu Amoroso Lima, anexando um curriculum vitae, e solicitando uma visita ao famoso crítico católico. E foi na condição de intelectual cristão que Karpfen procurou estabelecer-se no Brasil, embora de começo sem muito sucesso. Após dois meses de desentendimentos com um certo Arczynski, secretário do comitê de auxílio a refugiados da Ação Católica, Otto Karpfen e sua mulher Helene são enviados a Rolândia, no interior do Paraná. Vivendo “num chalé no meio da mata, com uma senhora alcoólatra e doente mental que nos atormenta”, o casal desiste da vida no campo e parte para São Paulo. De lá, Otto informa a Alceu que tem um “pequeno arquivo” de assuntos europeus, principalmente ligados à imprensa católica, e envia ao crítico carioca alguns artigos de sua autoria. Esses artigos, que se saiba, não chegaram a ser publicados por nenhum veículo brasileiro.

Pouco depois, bastante doente e com recursos cada vez mais escassos, Otto começa a pedir ajuda de Alceu para partir do Brasil – primeiro para Nova York, depois para a Bélgica e, finalmente, para Buenos Aires, que o aceita – mas seu passaporte austríaco não tem validade, e Karpfen tenta sem sucesso uma autorização do governo brasileiro para sair do país. Perto do Natal de 1940, Otto envia outra carta melancólica a Alceu Amoroso Lima declarando que, tendo dedicado todo seu tempo no Brasil a aprender nossos costumes, nossa história e nossas letras (Karpfen lia bem o português, embora ainda não escrevesse em nossa língua e se correspondesse em francês), poderia utilizar seus conhecimentos da Europa para ajudar a cultura brasileira e a causa católica, mas sem uma oportunidade de trabalho digno, teria que resignar-se a morrer de fome. Esta é a última carta de Otto Karpfen para Alceu Amoroso Lima.

Em 1938, Alemanha nazista anexa a Áustria na Anschluss. Foto: Reprodução

Mas Karpfen sobreviveu, e o ano de 1941 começa mais alentador: em 19 de abril, Álvaro Lins anuncia “um novo companheiro” em seu rodapé do Correio da Manhã; no dia seguinte, já sob o nome de Otto Maria Carpeaux, Karpfen começa a colaborar naquele jornal com o célebre ensaio “Jakob Burckhardt: o profeta de nossa época”. Em 1942, consegue também a vaga de bibliotecário na Faculdade Nacional de Filosofia; mas o período não é só de tranquilidade – mesmo conseguindo alguma segurança material, Karpfen/Carpeaux enfrentaria ainda grandes dificuldades no meio intelectual e político brasileiro.

O artigo de Álvaro Lins, recolhido em O Relógio e o Quadrante (Civilização Brasileira, 1963), além de apresentar Carpeaux aos leitores brasileiros traz algumas curiosidades dignas de nota. Embora afirme ser “o único, sem dúvida, dos seus colegas brasileiros a conhecê-lo de fato”, as credenciais que o pernambucano confere ao austríaco são reproduções quase literais do curriculum enviado a Alceu Amoroso Lima já em 1939. Além dos ensaios preparados para publicação no jornal, escritos em francês e traduzidos por Carlos G. Lima Cavalcanti, Lins anuncia a leitura de “um seu caderno de notas pessoais” e a preparação de um livro sobre a “Experiência da Europa”, já em esboço. Estes primeiros ensaios estão entre os mais importantes e polêmicos da carreira de Carpeaux. Dos poucos livros que conseguiu trazer da Europa (e para além dos que vendeu, em São Paulo, para sobreviver), Carpeaux mantinha uma seleção de autores pouco ou nada conhecidos no Brasil – entre eles Franz Kafka, em sua famosa e anedótica primeira edição de O Processo.  “Kafka e o mundo invisível” foi o segundo ensaio de Carpeaux publicado no Correio da Manhã, e o primeiro ensaio brasileiro sobre Kafka. Apesar de mencionado posteriormente por outros autores, esse “caderno de notas” tem, hoje, paradeiro desconhecido; e o prometido Experiência da Europa nunca foi publicado, restando perdido também seu esboço.

Álvaro Lins: Artigo recolhido em O Relógio e o Quadrante (Civilização Brasileira, 1963), além de apresentar Carpeaux aos leitores brasileiros traz algumas curiosidades dignas de nota |Foto: Reprodução

Não foram os únicos “cadernos pessoais” e “livros em preparo” perdidos na trajetória de Otto Maria Carpeaux. Em maio de 1943, a José Olympio anunciava com algum estardalhaço a preparação coletiva de uma monumental História da Literatura Brasileira, em 12 volumes, dirigida por Álvaro Lins. De acordo com a proposta do editor, cada volume deveria ser confiado a um autor específico, e Otto Maria Carpeaux ficaria responsável pelo segundo, versando sobre “influências e correntes estrangeiras”. O alarido não era sem razão: além de Carpeaux, colaborariam também Gilberto Freyre, Abgar Renault, Luís da Câmara Cascudo, Sérgio Buarque de Holanda, Roberto Alvim Corrêa, Astrogildo Pereira, Otávio Tarquínio de Sousa, Aurélio Buarque de Holanda, Lucia Miguel Pereira, Tristão de Athayde [Alceu Amoroso Lima] e o próprio Álvaro Lins. A repercussão do projeto foi instantânea e a “reação” não se fez esperar. Poucos dias depois do anúncio, Vianna Moog, que propunha uma história da literatura brasileira pelo método “regionalista”, interpelou Álvaro Lins em carta aberta, questionando a utilização do “velho método cronológico”; em breve, outros autores que se sentiam maltratados nos rodapés de Álvaro Lins seguiram o exemplo, em geral fazendo ataques pessoais.

Em junho, Afrânio Coutinho envia de Nova York o artigo “A Crítica e os Rodapés”, conflagrando uma das maiores e certamente a mais duradoura das polêmicas literárias brasileiras: o embate entre a crítica dita “impressionista”, dos rodapés, e a chamada crítica “científica”. Essa “batalha dos rodapés”[1] teve seus embates mais sangrentos em novembro daquele ano, quando Lins e Coutinho travaram um verdadeiro duelo nas páginas da revista Diretrizes, dirigida por Samuel Wainer. Otto Maria Carpeaux, apontado como lugar-tenente de Lins no que Álvaro Moreyra chamou de “Exército do Pará” (formado por “mercenários” provincianos e estrangeiros em busca de sinecuras e glória literária), foi atacado por católicos por ter origem judaica, por nacionalistas por ser austríaco, por comunistas por ser católico… Não obstante, tudo indicava a vitória do grupo de Álvaro Lins, e Manuel Bandeira interveio por uma pax critica. Mas as sementes da desagregação já estavam plantadas: dos doze volumes planejados para a História da Literatura Brasileia dirigida por Lins, apenas dois chegaram a ser publicados: Literatura Oral (1956), de Luís da Câmara Cascudo, e Prosa de Ficção de 1870 a 1920 (1957), de Lúcia Miguel Pereira.

Em janeiro de 1944, é o próprio Carpeaux quem nos informa sobre aquele que seria um dos mais importantes dos seus livros perdidos. Em uma nota sobre “A linguagem de Kafka”, publicada na coluna No mundo dos livros, de O Jornal, Carpeaux comenta sobre o acento austríaco da língua falada pelos judeus alemães da Tchecoslováquia, e confessa: “Eu mesmo, que conheço intimamente aquele ambiente hoje desaparecido, estou encontrando dificuldades consideráveis traduzindo O Processo, tradução da qual, há meses, o Instituto Nacional do Livro me incumbiu”. Se tivesse chegado ao público, essa tradução seria a primeira de Kafka no Brasil, feita exatamente pelo primeiro e principal divulgador de sua obra. Outra tradução brasileira direta de O Processo, a de Modesto Carone, só seria publicada, pela Editora Brasiliense, em 1988.

A linguagem de Kafka de Carpeaux  Se tivesse chegado ao público, essa tradução seria a primeira de Kafka no Brasil, feita exatamente pelo primeiro e principal divulgador de sua obra. Foto: Reprodução

Os anos 1940, 1950 e início dos 1960 foram talvez os mais fecundos e produtivos da crítica literária brasileira em geral, e da carreira de “crítico militante” de Capeaux em particular. É possível que encontremos, em arquivos dessa época, ainda vários outros livros perdidos de sua autoria. Em 1964, um outro crítico pernambucano, Fausto Cunha, anunciou a edição de um deles: O Sim e o Não, que faria parte da coleção Mimesis [2], dirigida por ele para a editora Lidador. E não só nos jornais: o O Sim e o Não está relacionado entre os títulos da coleção na quarta-capa ou nas orelhas de quase todos os volumes publicados entre 1964 e 1966, não havendo, que se saiba, explicação para sua não-publicação. Mas há, nesse caso, um provável “reencontro”: na “Nota Prévia” de Vinte e cinco anos de Literatura (Civilização Brasileira, 1968), o “testamento literário”[3] de Carpeaux, encontramos o seguinte parágrafo: “Devo a Fausto Cunha a sugestão de publicar um volume de ensaios selecionados. A sugestão foi realizada graças à compreensão e amizade de Ênio Silveira e Mário da Silva Brito”. Aparentemente, Fausto Cuinha havia se afastado da Editora Lidador (outro livro anunciado na coleção Mimesis, a segunda edição de República das Letras, de Homero Senna, foi publicado também em 1968 pela Gráfica Olímpica, de São Paulo). Por outro lado, já em 1965 Otto Maria Carpeaux havia publicado dois livros de artigos políticos pela Civilização Brasileira, O Brasil no Espelho do Mundo e A Batalha da América Latina. A correspondência entre Carpeaux e Fausto Cunha, caso um dia apareça, poderá esclarecer esse e outros casos da nossa crítica.

É também desse período o mais famoso desses livros perdidos: sua História da Literatura Russa, encomendada pela José Olympio e noticiada por Herberto Sales na coluna “Atividades Literárias”, de O Jornal, em 1946. A nota expõe em detalhes o plano de “interpretação ideológica e sociológica” da literatura russa, apoiando cada eixo em um autor representativo. Podemos supor, entretanto, que este material foi aproveitado para as diversas seleções de literatura russa organizadas por Carpeaux – como a monumental Antologia do Conto Russo, em 9 volumes (!), editada pela Lux em 1961 – e capítulos correspondentes da História da Literatura Ocidental. Essa “recomposição” da História da Literatura Russa tem sido tema de discussão entre editores e pesquisadores de Carpeaux, e se fosse possível encontrar seus primeiros planos e manuscritos, teríamos certamente a possibilidade de uma boa edição, atualizada e enriquecida pelos inúmeros ensaios que Carpeaux dedicou ao assunto, não excluídas aqui as polêmicas, a exemplo da possibilidade de plágio encontrada recentemente pelo tradutor Bruno Gomide entre o ensaio “Rússia Sacra”, de Otto Maria Carpeaux, e “O Narrador”, de Walter Benjamin. Esse assunto, que caiu num silêncio inexplicável após a descoberta de Gomide, bem como o esclarecimento sobre as relações pessoais e intelectuais entre Carpeaux e Benjamin, tem sido também motivo de estudo incansável por parte de pesquisadores como Eduardo Zomkowski, organizador da edição mais recente de A Cinza do Purgatório [4] (Danúbio, 2015), que já identificou, por exemplo, menções a “O. M. Karpfen” na correspondência de Benjamin durante o período em que escrevia “O Narrador”.

Otto Maria Carpeaux, nascido Otto Karpfen: em 1933[4], converteu-se à religião católica e acrescentou Maria e Fidelis ao seu nome
A pesquisa em fontes estrangeiras é fundamental, obviamente, para outra “recomposição” importantíssima: a do passado europeu de Otto Maria Carpeaux, incluindo os livros de sua autoria publicados na Europa. Sobre isso, é preciso notar que o próprio Carpeaux aparentemente decidiu abandonar seus livros europeus, não fazendo questão, em vida, de publicá-los no Brasil. Apesar das insinuações políticas que já se levantaram sobre isso – principalmente em suas relações com o chamado “austro-fascismo” de Engelbert Dolfuss – o motivo parece ser outro: mesmo podendo voltar à Europa após a guerra, Carpeaux decidiu permanecer no Brasil, tornando-se, de fato, brasileiro; assim, renunciava também ao seu doloroso passado europeu. Somente cerca de vinte anos depois de sua morte é que se realizou um estudo de maior porte sobre esse passado. Em sua pesquisa de doutorado, Mauro Souza Ventura coligiu informações preciosas sobre a vida e a formação de Carpeaux na Europa, reunidas no volume De Karpfen a Carpeaux (Topbooks, 2002), espécie de biografia intelectual que busca estabelecer, como nos diz o subtítulo, a relação entre “formação política e interpretação literária na obra do crítico austríaco-brasileiro”. Nele, Ventura lista oito livros publicados por Carpeaux na Europa, sob vários pseudônimos, em alemão, francês e holandês, além de excertos de um deles, Österreichs europäische Sendung [Missão europeia da Áustria], traduzidos pelo próprio Ventura. Desses livros, apenas um, de caráter confessional, foi publicado no Brasil: Caminhos para Roma (Vide Editorial, 2014. Trad. Bruno Mori). Ventura também encontrou documentos da vida universitária de Otto Karpfen, como seu certificado de doutorado, cancelado pelos nazistas e posteriormente reabilitado pelas autoridades austríacas. Mais recentemente, Eduardo Zomkowski localizou, entre outros, uma série de ensaios de crítica musical e diversas resenhas de seus livros publicadas em jornais europeus. Da mesma forma, a enorme produção jornalística de Carpeaux no Brasil ainda não foi de todo rastreada, e há material inédito já localizado para mais de um volume. É possível que tenhamos, num futuro próximo, acréscimos substanciais à bibliografia carpeauxiana. Desde que o mercado editorial brasileiro sobreviva…

Há ainda os livros perdidos não escritos por Carpeaux, mas da sua biblioteca. Além dos volumes abandonados na Europa ou vendidos em sebos de São Paulo, agora já impossíveis de rastrear, os livros de sua biblioteca no Brasil também tiveram destino incerto. Como se sabe, a biblioteca brasileira de Carpeaux era notável não pela amplitude, mas, ao contrário, por sua modéstia. Talvez pela dolorosa memória de sua biblioteca europeia, Carpeaux tenha decidido manter, em seu apartamento em Copacabana, apenas os livros mais básicos para sua atividade. Considerando a enorme quantidade de exemplares que ele devia receber de autores e editoras, podemos dizer com alguma certeza que manter uma biblioteca menor era fruto de uma decisão consciente. Mas mesmo essa “biblioteca mínima” teve um destino atribulado após a morte de Carpeaux, destino comum, ainda hoje, às bibliotecas e arquivos de vários escritores brasileiros[5]. O caso de Carpeaux é uma confirmação anedótica desse descaso. Sabe-se que sua viúva, Helena Carpeaux, procurou diversos escritores e autoridades amigas do casal para dar um destino à biblioteca e a outros itens do espólio de seu marido. Com a intermediação do crítico Fábio Lucas, os livros foram doados à Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo. Mas o próprio Fábio Lucas nos conta, num ensaio sobre Kafka publicado no primeiro número da revista Cult, em julho de 1997: “Infelizmente, a diretora da Biblioteca não preservou o acervo e o dispersou gloriosamente na classificação universal. Somente ficou, identificável, o volume Der Prozess, encaminhado à seção de obras raras”. A quantidade de livros que pode ter desaparecido nessa “gloriosa dispersão” é incalculável, como é incalculável o que perdemos de informação apenas com as possíveis anotações de Carpeaux nesses exemplares [6].

Alceu Amoroso Lima | Foto: Reprodução

Finalmente, talvez o mais importante dos seus “livros perdidos”. Em março de 1981, Helena Carpeaux envia a seguinte carta ao “muito prezado mestre e amigo” Alceu Amoroso Lima:

Aproveitando da entrega do 5º vol. Da História da Literatura [Ocidental], pela gentileza do editor sr. Campello[7], tomo a liberdade de pedir-lhe um grande favor. Desde a morte de meu marido, preocupa-me muito o destino de uns poucos objetos pessoais que, depois de mim, acabariam inevitavelmente num lugar impróprio – e eu não tenho coragem de destruí-los. De tanto pensar nesse assunto, lembrei-me de que um simples pequeno cartão de Robert d’Harcourt despertara seu interesse ao ponto de guardá-lo em seu arquivo; o que me animou a pedir-lhe que conceda igual privilégio a essas poucas lembranças (insignificantes na aparência, mas inda carregadas de emoção), juntando-as àquele pequeno cartão cujo original também aqui incluo:

– o missal de meu marido, com várias anotações dele (já quase apagadas pelo tempo); único livro que Otto levou na precipitada fuga de Viena;

– uma medalha de São Bento, dada a Otto como amuleto por uma amiga que, por acaso, estava em nossa casa no dramático momento em que ele teve de abandoná-la definitivamente. Otto pendurou essa medalha no pescoço sem jamais tirá-la; e nem na clínica deixou que a tirassem, enquanto podia resistir.

– o último manuscrito de Otto – a Biografia – escrita quando ele já estava muito doente, mas com inabalável entusiasmo. Esta, aliás, teve pretendente (que sabia que Otto escreveu sempre só à mão). Mas eu preferi oferecê-la ao senhor, com a imensa gratidão de sempre.

Essa perdida (auto)biografia de Carpeaux, infelizmente, parece não estar mais nos arquivos de Alceu Amoroso Lima. Mas é certamente um dos documentos mais importantes da vida intelectual brasileira do século XX, e poderia esclarecer e enriquecer todo o debate e estudo em torno desse período. É possível que esteja nas mãos ou no espólio de algum bibliófilo (o tal “pretendente”, talvez?). Resta-nos esperar que um dia, como os outros “livros perdidos” de Carpeaux, esse manuscrito apareça. Mas sabemos: na situação em que andam nossos arquivos, isso já é pedir muito.

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[1] Essa disputa transformou-se em verdadeira guerra de trincheiras quando Afrânio Coutinho, voltando dos Estados Unidos, começou no Diário de Notícias a coluna Correntes Cruzadas, pregando o new criticism contra os impressionismos personificados em Álvaro Lins. As consequências dessa guerra são até hoje perceptíveis, como se vê nas últimas e penúltimas polêmicas erguidas no meio crítico atuante. Sobre essa “batalha dos rodapés” tenho preparado um ensaio mais detalhado que espero publicar em breve.

[2] A coleção Mimesis é também um dos acontecimentos mais importantes para a nossa crítica literária, e foi responsável pelas primeiras traduções, no Brasil, de autores como Edmund Wilson e Lionel Trilling. Infelizmente, não há ainda estudo sistemático sobre ela ou sobre a extraordinária atuação editorial de Fausto Cunha nesse sentido.

[3] Na mesma “Nota Prévia”, Carpeaux declara que já não pode trabalhar como crítico literário: “Minha cabeça e meu coração estão em outra parte. O que me resta, de capacidade de trabalho, pertence ao Brasil e à luta pela libertação do povo brasileiro”, isto é, à luta política. Vale lembrar que o livro foi publicado pouco antes do Ato Institucional nº 5.

[4] A Cinza do Purgatório foi o primeiro livro de Carpeaux publicado no Brasil (C.E.B., 1942). O segundo, Origens e Fins (C.E.B., 1943), também teve reedição recente organizada por Zomkowski (Danúbio, 2018), que organizou ainda o volume O Canto do Violino (Danúbio, 2016), coletânea de textos de crítica musical e literária inéditos em livro.

[5] Para dar poucos exemplos, podemos citar os casos lamentáveis das bibliotecas de Paulo Rónai (https://goo.gl/PyQ57d)  e de Antônio Cândido (https://goo.gl/5R9fuF).

[6] A esse respeito, vale também referir um outro “livro perdido”: em carta a Alceu Amoroso Lima, enviada do “Centro de Formação Intercultural” de Anápolis (GO), o padre e filósofo Ivan Illitch, autor de Sociedade sem Escolas, comenta: “Deixei o livro do Carpeaux com o Frei João Batista, depois de haver transferido suas notas a outro volume”. Se encontrados, esses dois exemplares de uma obra de Carpeaux anotada por Alceu Amoroso Lima seriam preciosidades bibliográficas.

[7] Joaquim Campelo Marques era proprietário da editora Alhambra, que publicou a segunda edição de História da Literatura Ocidental. Em 2008, organizou a terceira edição para a Editora do Senado, onde era assessor, e em 2012 protagonizou, talvez involuntariamente, um episódio lamentável envolvendo essa edição: a cessão integral dos arquivos do livro para a editora Leya, que a republicou de forma idêntica, trocando apenas as capas dos quatro volumes. Editoras como a Topbooks, que vinha investindo pesadamente na publicação das obras de Carpeaux (os dois volumes dos Ensaios Reunidos somam quase duas mil páginas) reclamaram, com razão, do “favorecimento indevido” recebido pela Leya. O entrevero foi motivo da reportagem “Uma história da esperteza editorial”, de Murilo Ramos, na revista Época:

 http://revistaepoca.globo.com/tempo/noticia/2012/01/uma-historia-da-esperteza-editorial.html

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**Mário Zeidler Filho (foto ao lado) é editor na Editora Caminhos