Simone Athayde

Especial para o Jornal Opção

Recebi de presente do jornalista Euler de França Belém, há alguns meses, o livro “Lisboaleipzig” (Assírio & Alvim, 2014), de Maria Gabriela Llansol, escritora e tradutora portuguesa falecida em 2008 (aos 76 anos) — pouco conhecida no Brasil. O título é a junção de Lisboa, onde nasceu, com Leipzig, cidade na Alemanha. A obra veio acompanhada de uma dedicatória que terminava assim: “A literatura de Llansol provoca uma sensação de estranhamento que não sei explicar. Você terá de explicar para os leitores”.

Depois de ler o livro e reler algumas partes, senti a mesma estranheza, a sensação de que algo realmente nos escapa, de tal forma que não cheguei à conclusão se gostei. Para usar as palavras da autora, digo que simpatizei. Antipatizei. Tentarei explicar, se for possível.

Maria Gabriela Llansol: uma das mais inventivas escritoras de Portugal | Foto: Reprodução

A obra de Llansol é extremamente desafiadora, pois, além de sair totalmente do lugar conhecido dentro da literatura, a história com começo, meio e fim, também desconstrói a própria noção de categorias literárias. Tal singularidade causa a impossibilidade de classificá-la dentro de algum gênero. “

“Lisboaleipzig” compõe-se de dois livros: “O Encontro Inesperado do Diverso” e “O Ensaio de Música”. Separando os dois, temos uma sessão intitulada “Dedico-vos estes textos”, contendo discursos que a autora proferiu ao receber alguns prêmios. O começo é composto por textos contendo a data e a cidade onde foram escritos, mas que não se concretizam como um diário ou como relatos de dias vividos. São fragmentos carregados de estranha subjetividade e beleza, nos quais se misturam aspectos biográficos da autora com um tipo peculiar de metalinguagem:

 ___________ ao lado da minha mesa de trabalho está a mesa onde

Bach poderia ensinar crianças,

se existissem crianças. A meio das duas, eu traçaria a separação in-

visível de um eixo, que ele gostaria de as ver ultrapassar; mas

quando entraram ___ autênticas máquinas duras _______ tudo

na sala se imobilizou e retomou, de súbito, o seu sopro próprio.

Introduziram no ambiente uma corrente gelada de agressivi-

dade, e de poder minúsculo abominável.

A mesa de trabalho da escrita, a mesa de trabalho da música,

deram uma volta de desespero sobre si mesmas, enrodilhando-se.

O que não deve, de modo algum, acontecer porque o único corpo

da língua, que contém o fio da música, só pode ser bebido por

quem intui a distinção.

Por isso, ciclicamente, temos saudades de uma verdadeira

criança. E ter filhos não é o mesmo. (15 de janeiro de 1983 – Herbais)

Maria Gabriela Llansol: jovem | Foto: Reprodução

Depois desse início no qual aparece o músico Bach, começam a surgir outras personalidades históricas, como o poeta Fernando Pessoa (representado com o nome Aossê), São João da Cruz, o filósofo Espinoza, além das personagens femininas criadas pela autora.

O desafio ao leitor, chamado de “legente”, é procurar algo de familiar numa leitura na qual os elementos constitutivos do texto narrativo foram subvertidos. Não há um enredo com forma tradicional, mas quadros, imagens fraturadas e entrecortadas por outros fragmentos de textos e até pelos discursos; há personagens, que podem ser até mesmo um cão que filosofa ou o próprio texto personificado, há diálogos, mas não conversas, pois neles há uma ausência, seja de sentido mesmo, seja de continuidade; as noções de espaço e de tempo também são quebradas, pois personalidades de épocas distintas interagem num mesmo tempo e num mesmo lugar, sem que seja devido a uma óbvia viagem no tempo. Aliás, nada no texto dessa autora é óbvio. Tanto é que os críticos, ao estudarem a obra de Llansol, acharam por bem denominar de não-tempo e não-lugar o quando e o onde esses encontros inesperados e diversos acontecem. 

Outra novidade muito interessante é a presença da autora como uma espécie de observadora da cena e do texto que se escreve, como se ele fosse uma entidade com vida própria. A autora cria assim uma espécie de não-narradora e de não-personagem, algo que eu ainda não havia visto em nenhum outro livro. Essas imagens que Llansol presencia foram denominadas por ela como “cenas fulgor”, e as personagens ela chamou de “figuras”, que tanto podem ser representações de humanos, quanto de animais ou objetos, todos com a mesma importância e com poder de fala: E a momento dado senti que o Diário ia tornar-se um livro/obra, com seus moventes e figuras contracenando comigo na primeira pessoa; tinha sido pouco a pouco, em ritmo de vida e de ternura, que crescera no ermo; quanto mais sabia por contactos imediatos, menos imaginava; quanto mais me julgava só __________;

Maria Gabriela Llansol: um pouco de James Joyce e Laurence Sterne na sua prosa fragmentada? | Foto: Reprodução

Llansol repete personagens e até cenas de outros livros seus, não como acontece nas trilogias ou séries, mas num dialogismo que, embora possa soar como falta de criatividade, subverte o esperado. É como se a autora quisesse mostrar que um livro não precisa necessariamente ter um fim quando suas páginas acabam e que um texto pode transcender a necessidade de ser entendido pelo leitor. Também aparecem nas páginas muitos espaços em branco, além de travessões de diversos tamanhos, que podem ser interpretados como um tempo de pausa. A leitura que Llansol nos apresenta parece ter sido criada a partir de sinestesias, ou seja, ao invés de criar uma história, ela prefere oferecer uma experiência na qual as sensações e a musicalidade têm papel importante.

As maiores qualidades do texto de Llansol, a liberdade de criação e sua estranheza, são também aquilo que pode afastar os leitores. Em um cenário assim tão diferente, passar por 374 páginas pode ser frustrante se o leitor acreditar que vai haver, ao longo do texto, uma união das partes, que o todo fará um sentido em algum momento. Como a autora teve liberdade para criar algo totalmente à parte, é preciso também que o leitor se liberte da necessidade de preencher os espaços (literais e simbólicos) que a obra traz. Para isso, é necessário tempo, paciência e uma contemplação para o que está além do texto, qualidades difíceis para nossos dias apressados e utilitaristas. Nas palavras da própria autora: O meu texto não avança por desenvolvimentos temáticos, nem por enredo, mas segue o fio que liga as diferentes cenas fulgor. Há assim unidade, mesmo que aparentemente não há lógica, porque eu não sei antecipadamente o que cada cena fulgor contém.

Maria Gabriela Llansol: como classificar sua escrita? Talvez seja inclassificável e definível só por sua própria literatura | Foto: Reprodução

 Por trás desse aparente caos criado por Llansol, os críticos percebem (e seguem pistas através das próprias falas da autora) que ela fundou sua obra sobre os alicerces de um projeto bem definido no qual ela gastou toda sua vida. Nos discursos da parte “Dedico-vos estes textos”, também bastante complexos, temos algumas pistas desse projeto e das ideias da autora sobre a humanidade:

Eles queriam saber

Por que é que o Amor parece amar tão mal;

Por que é que os homens morrem tristes, ainda em vida;

Por que é que sempre aceitaram fazer parte dos fantasmas de um tirano.

Nessa desconstrução e na criação, simultânea, de algo novo, que ainda não foi classificado, parece residir a importância da obra de Llansol, que talvez fique sendo seu legado à matéria literária, pois sabe-se que a Literatura sobrevive por contar histórias atrativas, mas também precisa do sopro da inovação e do estranhamento para continuar se renovando.

Simone Athayde é crítica literária e escritora. É colaboradora do Jornal Opção.