Os “Cinco Magníficos” de Cambridge: Comunistas, Homossexuais e Espiões – parte 2
30 novembro 2017 às 14h41
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Continuação do texto sobre os agentes duplos que pertenceram ao topo da hierarquia dos serviços secretos de Inglaterra mostra como foram ganhando posição, influência e acesso a informações progressivamente mais sensíveis e decisivas
FRANK WAN
Especial para o Jornal Opção
Como em todos os grandes acontecimentos da história humana, a sorte e o acaso tiveram um papel decisivo. É impressionante o número de vezes em que os “cinco magníficos” de Cambridge (Kim Philby, Donald Duart Maclean, Guy Burgess, Anthony Blunt e John Cairncross) conseguiram passar ao lado do desastre total por um triz. A lista desses acontecimentos seria gigantesca e aborrecida. Em todos eles, cada um dos “cinco” foram ganhando posição, influência e acesso a informações progressivamente mais sensíveis e decisivas.
Ao acompanhar a evolução inicial de cada um dos cinco, facilmente vemos já luzes de “sorte” a brilhar. É este acaso-sorte que os vai colocar na posição em que os veremos mais tarde.
Um exemplo revelador do papel da sorte: Kim Philby era agente da anterior NKVD e depois da KGB. Nasceu na região do Punjab, na Índia, e mais tarde foi para Londres. Era um clássico “indian english”, recebeu o nome de Kim por ressonância do livro de Rudyard Kipling. Em Londres, estudou na Escola de Estudos Eslavos onde aprendeu russo. Típico inglês de boa cepa, nem com estes meios todos, conseguiu falar russo com um mínimo de qualidade. Dedicou-se ao jornalismo, atividade que costuma acolher todos os desafinados da literatura.
Philby viajou até Sevilha, em 1937, período da “Guerra Civil” conduzida do lado “Nacionalista” pelo General Francisco Franco. Ele viajou na qualidade de jornalista, como correspondente do jornal britânico “Times”, e teve acesso total ao lado franquista. Levava na agenda missões entregues, quer pelos soviéticos, quer pelos ingleses. Segundo algumas fontes, Stálin pretendia assassinar Francisco Franco, e essa seria a missão de Philby, mas, no decorrer dos acontecimentos, Stálin mudou de ideia – esta tese está longe de ser unânime entre os diversos especialistas das diversas áreas vizinhas.
O mais espantoso ao estudar estes assuntos é a semelhança com os filmes de espionagem. Por exemplo, para contatar os russos, Philby contatou uma pseudonamorada de nome Mle Dupont (registre-se a falta de imaginação típica), com quem trocava cartas criptografadas, típica cena de filme de espionagem. Para o lado inglês, a informação era simples de transmitir através de Handaye.
Philby estava presente na famigerada “Batalha de Teruel”. Viajou com os correspondentes da Associated Press, Newsweek e Reuters. Pegara carona com um grupo republicano, cujo carro sofreu uma explosão matando a todos, menos Philby, que saiu ileso, apenas com algumas escoriações. Após o acidente, Philby foi considerado um herói, recebendo a supermedalha “Cruces del Mérito Militar” das mãos de Francisco Franco, e passou a ter acesso ilimitado às elites fascistas. Relembro que na Espanha, os jornalistas ingleses eram conhecidos como bêbados, homossexuais e comunistas, combinação que nem sempre é lisonjeira.
A ideia dos “jornalistas ingleses serem todos comunistas” vinha da participação maciça de ingleses nas brigadas internacionais. O próprio Franco mudou de ideia acerca deles depois. Um general também pode-se enganar no labirinto dos seus preconceitos: Philby era comunista e homossexual.
Xadrez político
Como sempre, todos os acontecimentos em matéria de espionagem são uma mistura de verdades e mentiras. Os interessados na verdade total da ligação de Philby aos russos podem consultar as perturbadoras informações de Walter Krivitsky, antigo membro da GRU (Main Intelligence Directorate) que desertou, e que em todos os depoimentos que prestou perante todas as comissões (inglesas e americanas) afirmava sempre nada saber sobre as atividades de Philby na Espanha. Ou não disse tudo – os desertores nunca contam a verdade total –, ou estava a reservar-se para outra ocasião. Walter foi assassinado num hotel em Washington pouco depois das declarações, e muita coisa morreu com ele.
Entretanto, Guy Burgess tornou-se radialista, posição que na época dava grande notoriedade e permitia ter acesso às grandes figuras do xadrez político inglês e até internacional. As grandes entrevistas que conduziu para a BBC deram-lhe uma invejável agenda de contatos. Contatava, convidava, almoçava, trocava ideias prévias e posteriores às entrevistas e crescia pessoalmente e como “agente”, em qualquer sentido da palavra. Impressionou e tornou-se um contato e, algumas vezes, íntimo de pessoas que vão de Churchill a Rothschild.
Uma das grandes perguntas que as “pessoas simples” colocam a estes homens brilhantes é: como é que após a “traição” de Stálin, ao assinar o tratado germano-soviético, gente tão esclarecida não percebeu imediatamente quão pérfido Stálin era? Note-se que esse acontecimento não alterou nada em nenhum deles: nem a visão, nem o trabalho. Resta sempre a tese ténue de que seria demasiado tarde para qualquer um deles admitir erros e mudar de rumo.
Obviamente, os cinco eram arrogantes, davam-se ares de muito importantes e tomavam-se por superiores. A tentação é grande, uma vez que a gigantesca maioria da elite social, financeira e política inglesa é constituída por ignorantes, depravados, viciosos e cabeças ocas. Entre estes, os “cinco magníficos” destacavam-se quase sob qualquer aspecto. É essa arrogância que lhes sairia cara: as cabeças ocas e medíocres esperaram o seu momento e fizeram-nos pagar por todas as humilhações e superioridades a que se arrogaram.
Agente recrutador
Em 1940, houve o gigantesco alistamento. A Inglaterra está em guerra nessa ocasião. MI5 e MI6 e outras secções são, quase do dia para a noite, alargadas e superativadas. Dá-se uma captação de todos os bons cérebros e competências disponíveis. Dois dos elementos dos Cinco Magníficos vão ser imediatamente integrados. Donald Maclean é integrado no Foreign Office, com acesso aos planos chamados de “Top Secret”, mas é Guy Burgess que vai ter um papel decisivo.
Do lado soviético, Burgess foi recrutado para fins de contrainformação, devido aos seus conhecimentos do mecanismo de comunicação social; do lado do MI5, Burgess passa a ser utilizado como agente recrutador. O fato de ele ser homossexual e extremamente sedutor tem um peso decisivo. Esta condição dava-lhe acesso ao “gay world” (mundo gay), dominante naqueles meios e dava-lhe condições privilegiadas de sedução, em todos os sentidos da palavra, a todos os novos agentes.
Burgess movia-se com desenvoltura entre o “mundo gay”, o mundo da mídia e o mundo da espionagem. Todos os que conviveram com ele são unânimes: era extremamente inteligente e excêntrico. A extrema excentricidade, normalmente contraproducente num espião “de carreira”, por um paradoxo de que a vida é fértil, servia-lhe de disfarce: ninguém alguma vez acreditaria que um fala-barato, barulhento e espalha-brasas daqueles fosse um temível espião.
Burgess trouxe Philby para os serviços secretos. Philby foi colocado na famosa seção D para se formar. De noite, copiava as informações do MI5 e entregava-as ao KGB. Philby tinha tempo, acesso e meios. Vasculhou detalhadamente todos os ficheiros. Com isto, o KGB sabia quem eram todos os agentes colocados em toda a parte do mundo – na prática, para que fique bem claro, muitas vezes, entregando colegas (ingleses e não só) à morte.
Essa era a situação geral de 1940: Philby, Burgess e Blunt entregavam aos russos todas as informações de tudo o que havia de mais secreto no MI5. Estranhamente, no entanto, John Cairncross é quem vai entregar as informações mais importantes.
(Continua)
Frank Wan vive em Portugal. É ensaísta, poeta, tradutor e professor